Editorial

Medicina Legal e Perícias Médicas – Perspectivas

https://dx.doi.org/10.47005/010101

A Medicina Legal enquanto área do conhecimento humano, mais especificamente do cotidiano médico, existe desde o século XVI. Essa designação, que atrela o conjunto das ciências que compõem a medicina àquelas que emanam dos fundamentos das sociedades humanas – ou seja, o Direito, a Filosofia, a Antropologia, a Sociologia, e ainda outras -, foi resultado de cinco séculos de evolução, aperfeiçoamentos conceituais e muito esforço doutrinário.

 

Além do acima referido, está constituída no Brasil com uma ótica ampliada ainda mais complexa, ou seja, envolvendo todo e qualquer ato praticado por médico que enseje a formulação de documento que construa uma prova (meio produzido pelo ser humano na busca da verdade) e oriente um julgador, permeie processos nas diversas áreas do Direito, permita ao médico ser técnico que processa informações e que ao mesmo tempo julgue e assim estabeleça a realidade (aqui sob a ótica kantiana) e, também, seja instado a demonstrar o seu trabalho com a devida perícia e assim faça ciência, com a denominação de Medicina Legal e Perícias Médicas desde a resolução CFM 1.973 de 14/07/11.

 

Devido à crescente complexidade da vivência social hodierna, a diversidade que é inerente aos sistemas complexos pode propiciar a tolerância com o diferente, porém, muitas vezes, pode acarretar divergências não suportáveis que desaguam em eventos violentos ou, ainda, conflituosos, que às vezes exprimem direitos e deveres a serem respeitados e soluções civilizadas. É nessa perspectiva que deve se instalar a Medicina Legal e Perícias Médicas, enquanto, área do conhecimento eivada de ciências médicas, dos conteúdos do direito e das diversas ciências do homem (sob a ótica de Gilles Gaston Granger) e dirigida ao tecido social.

 

O termo perspectiva tem origem no verbo latino perspicio, encontrado no livro de Cesar (Commentarii De Bello Gallico citações: 2,17,4), e que significava: olhar através de, ver bem, olhar atentamente. Há também citações em textos de Cícero (Verrinas 2, 4) e ainda outras em Cesar (Commentarii De Bello Gallico 7, 36, 1) com os significados de: examinar com cuidado, reconhecer claramente, perceber, observar atentamente, examinar, aprofundar.

 

Os significados subsequentes do termo partem desde: técnica de representação tridimensional, técnica de projeções cilíndricas ortogonais, daquilo que é possível ver a distância, daquilo que é aparente, sentimento de esperança, expectativa, etc.

 

Segundo Lalande (1999, p. 810), Nietzsche teria dado o nome de Perspectivismo ao fato de “todo conhecimento ser perspectiva” (grifo nosso), ou seja, “relativo às necessidades, e especialmente às necessidades vitais do ser que conhece e de quem, em particular, a natureza da consciência animal exige uma representação do mundo geral e conceptual que se opõe à realidade profunda e essencialmente individual dos seres.” Essa representação do “mundo geral e conceptual” deve, parafraseando Nietzsche, ser uma das vertentes da Revista.

 

O caráter necessariamente científico e técnico da Revista Perspectivas enquanto instrumento de divulgação é perpassado pelo pensar lógico de Gilles Gaston Granger quando ele fala do que é ciência (episteme – episteme) e do que é técnico (techné – techne) (aqui sob o viés aristotélico), pois a Medicina Legal e Perícias Médicas tanto se coloca na vertente doutrinária da ciência quando esta se refere ao que é necessário e universal e permite demonstração, quanto ao conhecimento racional dos fenômenos e ao conhecimento de técnicas que propiciem o agir que se fundamenta na experiência e na arte está estabelecido. Isto pode aqui denotar um certo viés individual, porém a techné (techne) aristotélica não trata do conhecimento individual, mas do conhecimento humano.

 

O fazer ciência (apesar de aqui se conferir um certo utilitarismo na linha de John Stuart Mills ao proceder médico pericial) é o foco do agir quando se fala de ato médico pericial. A ciência e especialmente o agir científico do médico perito, além de ser essencialmente vivenciado, necessita de demonstrações, e uma das boas maneiras de se demonstrar ciência é o publicar-se, ou seja, evidenciar a doutrina e o método usados e ainda a verificação e até o falseamento das proposições (aqui na visão de Karl Popper) como forma demonstrativa da ação na ciência.

 

Essa ação pode ser atendida se for bem examinada, se permitir ser olhada através de pensamento metódico, ou seja, dentro dos critérios que substanciam o termo perspectivas, desde a antiguidade clássica, como o referenciado acima ao citar-se as origens do termo.

 

As perspectivas que se podem delinear no evoluir e, portanto, no atualizar-se a construção doutrinária da Medicina Legal e Perícias Médicas deverão ser fundadas tanto na experiência de cada um quanto na experiência compartilhada da comunidade profissional que a exercita, como será ainda essencial o refletir e o pensar a ciência e, a partir desse refletir, se propor ideias, projetos e conceitos.

 

Construir o conhecimento é gerar conceitos e interliga-los com outros já estabelecidos, ou seja, o logoi (logoi) proposto por Aristóteles no tratado Da Interpretação. Quando relacionamos conceitos, construímos uma rede de conhecimentos que facilita a aquisição e a incorporação de outros e que, sucessivamente, tornarão real a proposta de atualização conceitual acima citada.

 

As perspectivas a serem permanentemente buscadas na Medicina Legal e Perícias Médicas não são diversas daquelas que embasaram a Medicina Legal ao longo dos últimos cinco séculos. Antes, é e deve ser um evoluir com bases doutrinárias sólidas, mas bases essas que permitam a renovação e o gerar expectativas, dúvidas, respostas, talvez num movimento dialético do tipo produzir conjecturas e a seguir as refutações, como ensinava Karl Popper, pois nesse mover-se vive a ciência.

 

Vive a Medicina Legal e Perícias Médicas em nosso país um momento peculiar. Devido à sua amplitude e consequente complexidade, múltiplos horizontes, ou seja, perspectivas se manifestam, quer sejam aquelas emanadas dos denominados protocolos de condutas médicas, estes advindos dos fundamentos da clínica médica, como dos elementos diversos das denominadas ciências físicas, tão presentes na prática Médico Pericial.

 

À guisa de simples exemplos, pode-se elencar situações tais como: a aplicação da causalidade e da concausalidade nos diversos eventos que suscitam algum tipo de reparação, dos critérios temporais do início da doença e também da incapacidade laborativa, dos aspectos técnicos específicos da concessão de benefícios por parte do poder público e que dependem da avaliação médico pericial, dos aspectos técnicos e da saúde no ambiente de trabalho, das constatações de distúrbios tanto somáticos quanto psicossomáticos do exercício profissional tanto no ambiente individual quanto coletivo, ou seja, da experiência.

 

Como manifestação do outro extremo, temos fundamentos doutrinários tão sólidos enquanto manifestações da ciência em todo seu rigor – tais como os conceitos de vida e de morte, de lesão corporal, de identidade e identificação, de agentes vulnerantes, do nascer com vida, do nascer sem vida, dos danos morais, corporais e estéticos -, que tornam a especialidade singular pelo menos em sua complexidade e historicidade, dificultando, às vezes, uma benvinda unificação doutrinária.

 

O que torna possível a unificação doutrinária acima referida? Ora, a palavra, pois, parafraseando Gilles Gaston Granger em seu livro “Filosofia, Linguagem, Ciência”, toda ciência é estruturada como uma língua. Ou seja, a língua, caracterizada como objeto da ciência em sua relação com os sistemas formais e pelos métodos próprios de cada uma das ciências propriamente ditas – em nosso caso, a Medicina Legal e Perícias Médicas -, pois esta tem como objeto a construção doutrinária e metódica de documento, texto escrito para servir de prova.

 

Ao se falar de estrutura, deve-se levar em conta aquilo que Jean Piaget (2003, p. 8) define como tal, ou seja, “os caracteres de totalidade, transformações e de auto regulação”. Esses três caracteres da estrutura encaminham a Medicina Legal e Perícias Médicas a grandes desafios. Em primeiro lugar, a busca de uma unificação doutrinária diante de perspectivas nem sempre confluentes; em segundo lugar, o viés transformativo de uma sociedade complexa, especialmente aquele derivado da adaptação humana a esquemas sociais. Na ambiência da Medicina Legal e Perícias, as transformações tanto científicas quanto técnicas conduzidas por forte premência temporal reforçam ainda mais a necessidade da devida estruturação. Em terceiro lugar, a possibilidade dos mecanismos de autorregulação exigirão da especialidade uma forte perspectiva doutrinária que a fundamente.

 

Há à nossa frente o problema da demarcação de horizontes doutrinários, científicos e técnicos e ainda a melhor integração possível ao tecido social, na busca de uma sistematização, atendendo-se ao repto kantiano quando ele estabelece o que é uma arquitetônica da razão (1994, p. 657):

 

“Por arquitetônica entendo a arte dos sistemas. Como a unidade sistemática é o que converte o conhecimento vulgar em ciência, isto é, transforma um simples agregado desses conhecimentos em sistema, a arquitetônica é, pois, a doutrina do que há de científico em nosso conhecimento em geral e pertence assim, necessariamente, à metodologia. Sob o domínio da razão não devem os nossos conhecimentos em geral formar uma rapsódia, mas um sistema… por sistema entendo, a unidade de conhecimentos diversos (reunidos) sob uma ideia.”
(Grifo nosso)

Há uma ideia que nos unifica, nos sistematiza, torna os diversos saberes científicos e técnicos que permeiam o nosso cotidiano em conjunto ordenado e sistêmico. Isto é, a conjunção (elemento da lógica) das ciências médicas com os diversos conceitos das denominadas ciências físicas, ou melhor ainda, também com aqueles das ciências do homem (sob a ótica de Gilles Gaston Granger, talvez o maior filósofo das ciências dos séculos XX e XXI), que, devidamente pensados e aplicados, constituem os fundamentos doutrinários em que se podem estabelecer a Medicina Legal e Perícias Médicas.

 

A devida sistematização conceitual da nossa especialidade é desafio perene, pois, como em toda ciência que se preze, há o movimento, neste, o tempo, neste, o evoluir e, assim, as perspectivas.

 

Perspectivas em Medicina Legal e Perícias Médicas pretende ser o instrumento de divulgação adequado à publicação dos trabalhos científicos da especialidade, de tal forma que se consubstancie cada vez mais a cientificidade da nossa vivência profissional, propicie-se o demonstrar ciência, o abrir-se expectativas, o tornar-se mais dinâmica a interação com as demais áreas do conhecimento, o possibilitar-se a visualização dessa ciência pela sociedade.

 

Referências:

 

GRANGER, Gilles Gaston. Filosofia, Linguagem, Ciência. Trad. Ivo Storniolo e José Luiz Cazaroto. São Paulo: Editora Ideias & Letras, 2013.

 

KANT, Imamanuel. Crítica da Razão Pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.

 

LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. Trad. Fátima Sá Correia, Maria EmiliaV. Aguiar, José Eduardo Torres e Maria Gorete de Souza. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1999.

 

PIAGET, Jean. Estruturalismo. Trad. Moacir Renato de Amorim. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2003.


Referências bibliográficas