Genival Veloso de França
Membro da Academia Nacional de Medicina Legal
A Medicina Pericial não chega a ser propriamente uma especialidade médica, pois aplica o conhecimento dos diversos ramos da Medicina às solicitações do Direito e da Justiça. Mas pode-se dizer que o ato médico pericial é Ciência, Técnica e Arte ao mesmo tempo.
É Ciência porque sistematiza seus métodos para um objetivo determinado, exclusivamente seu, sem com isso formar uma consciência restrita nem uma tendência especializada, daí exigir uma cultura maior e conhecimentos mais abrangentes do que em qualquer outro campo da Medicina. É inquestionavelmente ciência pois ela interpreta e justifica seu pensamento seguindo as exigências dos princípios da filosofia da ciência estabelecidos desde Aristóteles. No dizer de José Jozefran Berto Freire ela é ciência mesmo sem as exigências do necessário matemático (in Medicina Legal – Fundamentos filosóficos, São Paulo: Editora Pilares Ltda., 2010). Portanto a Medicina Pericial não é apenas um saber técnico: ela congrega num corpo de doutrina uma série de conhecimentos que transcende o campo puramente médico.
Não há como deixar de incluir o agir médico pericial no rol das ciências mesmo sem um grau de certeza absoluta. Seus laudos estão de acordo com os cânones rigorosos da Filosofia das Ciências. Basta ler os enunciados de Aristóteles ao expor os fundamentos do pensamento científico. Seus fundamentos, seus temas e sobretudo sua doutrina é ciência de acordo com aqueles critérios. E finalmente é ciência porque seu conhecimento é especialmente testado e obtido através do método científico.
O ato médico pericial é Técnica porque utiliza métodos sofisticados em busca da verdade tendo-se sempre o cuidado de usá-la no seu tempo certo: sem sua tirania e sem seu monopólio na construção do pensamento. Sem o seu caráter de dominação e de hegemonia que subestima a inteligência. Haja vista os escorregos advindos da sacralização e da divinização dos exames em DNA.
Ninguém discute que a tecnologia constitua na atualidade a principal força produtiva da sociedade. Nem podemos deixar de reconhecer que a não-tecnologia é uma atitude de lesa humanidade. A tecnologia exige um profundo conhecimento do por quê e do como seus objetivos são alcançados e não apenas um conjunto de habilidades e competências que se admite como eficazes na busca de melhorar uma prática de viver. Não é ético limitar o conhecimento humano. Mas, cabe à inteligência disciplinar seu uso e dirigir seus resultados.
O ato médico pericial é Arte também porque, mesmo aplicando técnicas e métodos em busca de uma verdade reclamada, necessita de qualidades instintivas para demonstrar de forma significativa, por exemplo, a sequência lógica do resultado dramático da lesão violenta. Não é aquela arte que se exalta pelo brilho da ficção. Mas a que realça os traços puros e simples da verdade sem qualquer artificio com suas próprias cores e particularidades.
Tudo isso sujeitado à ciência – uma arte forçosamente científica. Aqui não se pode dizer que seja uma arte voltada para a produção de efeitos estéticos, nem para a manifestação fantástica e ilusória a que o virtuosismo espiritual aspira e promove, mas uma arte estritamente objetiva e racional, capaz de colocar o analista dos fatos diante de uma concepção precisa e estritamente coerente. A Arte neste sentido é inserir na descrição do laudo no devido entendimento que se deve ter de sua leitura na exata compreensão do fato analisado. Como dizia Alves de Menezes: “tem-se de construir sua frase como se não estivesse escrevendo, mas fotografando”. E mais: “a arte que serve a uma pericia é, portanto, aquela em que a dialética está a serviço exclusivo de uma realidade, sem quaisquer artifícios emergidos das divagações estéticas”. O ato médico pericial, desse modo, é um exercício de arte científica.
O fazer da Medicina Pericial é técnico e científico a exigir recursos e práticas, mas a montagem da diagnose é puramente arte. Como ciência experimental ela é um saber dedutivo, e não indutivo: tem uma conclusão empírica, nunca completa, e, às vezes, suas conclusões são prováveis. Mesmo assim, aqui o provável nunca é uma abstração, mas aquilo que se situa entre o possível e o real: a chamada “probabilidade objetiva”. A medicina pericial é bem mais uma ordem do pensar do que do ser.
Assim, por exemplo, há necessidade de se rever certos conceitos, entre eles o do visum et repertum – este velho mantra, que se vem repetindo de forma cansativa e dogmática, no qual a perícia médico-legal é apenas “ver e relatar”. Hoje se sabe que é muito mais. É também discutir, fundamentar e até deduzir, se preciso for, no sentido de que a busca da verdade seja feita por um modelo de persuasão mais ampliado, principalmente quando algumas evidências são indicadoras ou sugestivas de determinados fatos e quando o pensamento pode levar a certas discussões de ordem contemplativa. Para entender isto basta ler o Protocolo de Istambul no que diz respeito à pericia em casos de tortura.
O próprio livre convencimento do julgador sobre a prova legal não é um critério de valoração alternativo ao seu bel prazer, mas um princípio racional e metodológico que o leva a aceitar ou rejeitar um resultado pericial e fundamentar sua decisão.
Este é o grande desafio aos novos magistrados: além dos indispensáveis conhecimentos humanísticos e jurídicos: o da interpretação racional da prova. Só assim se justifica o seu verdadeiro destino de informar e fundamentar de maneira objetiva e imparcial os elementos constitutivos do fato conflitante, fazendo com que a dúvida não atormente a Justiça e o julgamento não se converta numa tragédia.
Hoje, mais do que nunca, o ato médico pericial se apresenta como uma contribuição da mais alta valia e de proveito irrecusável. É um campo de atuação de amplas possibilidades e de profunda dimensão pelo fato de não se resumir apenas ao estudo da ciência hipocrática, mas de se constituir da soma de todas as especialidades médicas acrescidas de fragmentos de outras ciências acessórias, destacando-se entre elas a ciência do Direito. Significa dizer que a Medicina Pericial é um encontro de muitos saberes compartilhados.
A Medicina Pericial relaciona-se, especificamente, no campo da Medicina, com todas as suas especialidades.
Com as Ciências Jurídicas e Sociais, a Medicina Pericial empresta sua colaboração ao estudo do Direito Penal nos problemas relacionados com lesões corporais, aborto legal e aborto criminoso; infanticídio, homicídio e crimes contra a liberdade sexual. Com o Direito Civil, nas questões de paternidade, anulação de casamento e testamento, início da personalidade e direitos do nascituro. Com o Direito Administrativo, quando avalia as condições dos funcionários públicos, no ingresso, nos afastamentos e aposentadorias.
Com o Direito Processual Civil e Penal, quando estuda a psicologia da testemunha, da confissão, do delinquente e da vítima. Contribui com o Direito Trabalhista no estudo das doenças do trabalho, das doenças profissionais, do acidente do trabalho, com a prevenção de acidentes, com a insalubridade e a higiene do trabalho. Com o Direito Ambiental, quando se envolve nas questões ligadas às condições de vida satisfatórias em um ambiente saudável, seja nos locais de trabalho, seja fora deles. E também com o Direito Administrativo, quando se presta aos interesses da administração pública no sentido de apreciar as admissões, licenças, aposentadorias e invalidezes dos servidores públicos.
Com o Direito dos Desportos, analisando detidamente as mais diversas formas de lesões culposas ou dolosas verificadas nas disputas desportivas e no aspecto do “doping”, principalmente nos chamados desportos de competição. Com o Direito Internacional Público, ao considerar as razões médico-legais implicadas nos tratados dos quais nosso país é signatário no concerto das nações. Com o Direito Internacional Privado, ao decidir as questões civis relacionadas com o estrangeiro no Brasil. E com o Direito Canônico, no que se refere, entre outras coisas, à anulação de casamento em que a perícia de conjunção carnal pode resultar fundamental na apreciação do processo pelo Tribunal da Santa Rota.
Assim, a Medicina Pericial tem um extenso raio de atividades nos diversos ramos do Direito. Ainda se relaciona com a História Natural no estudo da Antropologia e da Genética, nos problemas da identidade e da identificação, e no estudo da Entomologia, no processo de determinação do tempo de morte pela fauna cadavérica.
Relaciona-se com a Química, a Física, a Toxicologia, a Criminalística e a Criminologia. Com a Sociologia, a Economia e a Demografia, no estudo do desenvolvimento e nos aspectos da natalidade. Com a Filosofia, a Estatística, a Informática e a Ecologia.
Hélio Gomes asseverava que “não basta um médico ser simplesmente um médico para que se julgue apto a realizar perícias, como não basta a um médico ser simplesmente médico para que faça intervenções cirúrgicas. São necessários estudos mais acurados, treino adequado, aquisição paulatina da técnica e da disciplina. Nenhum médico, embora eminente, está apto a ser perito pelo simples fato de ser médico. É-lhe indispensável conhecimento da legislação que rege a matéria, noção clara da maneira como deverá responder aos quesitos, prática na redação dos laudos periciais. Sem esses conhecimentos puramente médico-periciais, toda a sua sabedoria será improfícua e perigosa”.
Mesmo cientes da incorporação de novas técnicas, do avanço da ciência e da contribuição multiprofissional, a Medicina Forense em nosso país dispõe no campo pericial de um pequeno progresso, mediante a atuação de alguns setores públicos na criação, recuperação e aparelhamento dos laboratórios nas instituições especializadas, e na reciclagem do pessoal técnico. Acreditamos que só com a total incorporação de tais recursos a sociedade resistirá ao resultado anômalo e perverso de uma violência medonha que cresce e atormenta.
A Medicina Pericial no campo experimental no Brasil ainda se mostra incipiente e tímida. Apenas em alguns centros acadêmicos de pós-graduação, ainda se verificam alguns focos esparsos de pesquisa. As publicações de trabalhos em periódicos desta área, seja em quantidade ou qualidade, são desanimadoras.
No terreno doutrinário, em que a Medicina Forense contribui de forma tão eloquente no ajuste dos institutos do direito positivo, tudo ocorrerá a partir das solicitações mais concretas que essas formas de direito venham a fazer e da evolução do próprio pensamento médico-jurídico.
No aspecto pedagógico, tomando como exemplo a Medicina Legal, nosso país já viveu dias mais iluminados, quando as cátedras eram regidas pelos grandes mestres, os quais criaram em torno de si eminentes discípulos e respeitáveis escolas. Hoje, com honrosas exceções, diante da desordenada e irresponsável criação de cursos médicos e jurídicos, recrutam-se profissionais sem nenhuma qualificação e intimidade para o ensino da matéria. Assim, essas cátedras estão muito a dever à nossa tradição e, certamente, se não houver um trabalho bem articulado na tentativa de recuperar tal prestígio, no futuro teremos a Medicina Legal ensinada em um padrão muito distante de suas insupríveis necessidades. O exemplo disso é que muitas das Faculdades de Direito já têm esta disciplina como matéria optativa e, noutras, ainda pior: a disciplina não existe. Vai sendo ocupada por outras disciplinas de existência e utilidade duvidosas. Resta, disso tudo, a dúvida sobre a qualidade desses futuros profissionais que estão sendo formados.
Por fim, não há negar que o problema da pesquisa e da investigação de interesse médico-jurídico é mais complexo ainda. O interessante nesse aspecto é sensibilizar as Universidades públicas ou privadas em relação à contratação de pesquisadores, cuja tarefa seria a de possibilitar a produção científica de qualidade nesta área de concentração.