Artigo de Revisão

BREVES CONSIDERAÇÕES EM TORNO DOS ASPECTOS PSICOSSOCIAIS DO SUICÍDIO

Como citar: França GV. Breves considerações em torno dos aspectos psicossociais do suicídio, Persp Med Legal Perícia Med. 2017; 2(3).

https://dx.doi.org/10.47005/020301

 Os autores informam não haver conflito de interesse.

BRIEF CONSIDERATIONS ON PSYCHOSOCIAL ASPECTS OF SUICIDE

Genival Veloso de França (1)

Lattes: http://lattes.cnpq.br/9895711498326444 

(1) Academia Nacional de Medicina Legal, BR (Autor Principal)
 
E-mail: gvfranca@uol.com.br

RESUMO

O autor, de forma breve, faz considerações de ordem psicossociais sobre o suicídio, chamando a atenção principalmente para o número cada vez mais assustador desta atitude; faz referências às diversas teorias que explicam o ato autocida e relata suas possíveis causas e consequências.

Palavras-chave: suicídio, processo psicossocial, causas e consequências.

ABSTRACT

The author makes brief psychosocial considerations about suicide by drawing attention primarily to its frighteningly increasing numbers and by referencing to various theories that explain the suicidal act, its causes and consequences.

Keywords: suicide, psychosocial process, causes and consequences.

1.INTRODUÇÃO

O aumento do número de suicídios e suas tentativas no mundo contemporâneo passam a exigir um estudo mais sério de suas causas e consequências, além de uma política de prevenção mais efetiva tendo em conta os problemas epidemiológicos e sociais agora criados. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 1 milhão de pessoas morrem por ano, com prevalência entre adolescentes e jovens menores de 25 anos, sendo que nestas últimas décadas vem se registrando um número assustador tendo como causa maior a influência dos meios modernos de informação, como a internet, pelo seu poder amplo, rápido e fácil de acesso.

O suicídio é um ato de coragem ou de covardia?  Não existe uma resposta pronta ou convincente porque as razões do suicídio são ambíguas e complexas. No entanto, uma coisa é certa: o suicida não está alheio ao seu ato nem as suas consequências.

2. REVISÃO E DISCUSSÃO

2.1. CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS

De acordo com Freud, o suicídio tem suas causas nas depressões oriundas dos estados emocionais de agressividade, frustração, medo e vingança. Há também aquele que é consumado como forma de protesto ou em defesa de uma causa considerada legítima. Pode parecer que este autor não tenha dado muita importância à questão do suicídio, mas a verdade é que, em seus estudos psicanalíticos, como em “Sobre uma psicogênese de um caso de homossexualidade feminina”, ele discute o assunto em um caso de uma jovem que tenta o suicídio, em face da intransigência dos pais contrários a suas tendências homossexuais. Neste caso, ele justifica a tentativa como uma manifestação não só para punir-se, mas também para realizar um desejo inconsciente. Diz também: “(…) não se pode esquecer que o suicídio não é nada mais que uma saída, uma ação, um término de conflitos psíquicos”.

Emile Durkheim se posicionou contra os defensores da teoria da hereditariedade-degeneração, mostrando que o suicídio é um fenômeno social que não depende de raça, estado interior, hereditariedade, insanidade ou degeneração moral. Para esse autor, o autoextermínio não é explicado em termos absolutos por fatores internos como os transtornos mentais e do comportamento, mas principalmente por fatores externos oriundos da sociedade na qual ele se insere. Segundo sua teoria, o suicídio é, antes de tudo, um indicador do estado moral da sociedade que tem um viés exigente e opressor. Dessa maneira, o meio social impõe valores e normas, que “embora sejam comuns em uma sociedade, ganham maior ou menor adesão em cada grupo social” (1).

Tanto é assim que as pessoas de conduta e reputação reprováveis são mais refratárias ao suicídio. Quanto mais zelosa for a pessoa quanto a sua dignidade e seus valores mais engrossa as estatísticas de atentado a sua própria vida. Por isso, quando um detento, de maus antecedentes for apontado como suicida, principalmente estando ele detido em presídios ou delegacias, deve-se apurar tal gesto com muito cuidado.

Durkheim afirma que não é a depressão ou o desconforto que levam o indivíduo a exterminar sua vida. Estes estados são apenas o cume do mal-estar social em que ele vive.

A religião tem um papel significativo na construção de símbolos para a tomada de consciência pelo seu papel agregador, mesmo entre indivíduos de concepções e naturezas diferentes, mas voltados para determinada forma de crença pressionada pelo medo ao sobrenatural. Mesmo que as religiões tenham simbologias diferentes e explicações das mais diversas, há uma uniformidade de princípios através de um número razoável de exigências, principalmente no campo moral e no aspecto retributivo como garantia a quem respeita seus postulados. Por isso pode-se dizer que, em tese, o medo ao sobrenatural funciona, entre outros, como um fator repelente do suicídio. Esta consciência coletiva pode ser comparada a Deus, como dizia Durkheim.

Esta crença no sobrenatural funciona, em termos, como um meio contentor ao suicídio, ora pela ameaça do castigo iminente ora pelo fato das esperanças criadas. Esta inclinação mística da humanidade sempre foi impregnada de ameaças de sentenças trágicas e isto, queira-se ou não, funciona como um muro de proteção para certos atos considerados maus. Os aspectos psicológicos em torno do sobrenatural não atingem apenas os menos ilustrados. A luta entre a ordem e o caos, entre a treva e a luz, sempre gerou um clima de proveito próprio, O crente sempre vive à sombra do medo ao que é sobrenatural, embora quando se volta à análise das razões criminogênicas vê-se que a influência deste medo é irrisória nos seus aspectos quantitativos e qualitativos. O medo por si só já é um meio importante do instinto de conservação, e o medo do sobrenatural funciona como um escudo de autodefesa dentro da complexa hierarquia do misticismo tendo em conta as condições culturais e o grau de instrução de cada um, principalmente influenciando no terror das sentenças fatais e dos castigos eternos.

Mesmo que a mais tradicional das religiões entre nós tenha nascido sob a inspiração do amor e do perdão, da misericórdia e da compreensão não deixou de promover ou patrocinar os massacres coletivos do martírio das fogueiras embasados por uma doutrina que impunha a ideia do medo e de um culto ao sobrenatural. Assim, muito do que se construiu ao longo dos séculos no “aprimoramento espiritual do homem” foi à sombra do medo. Até certo ponto sem uma explicação concreta, isso, como se viu, não funcionou no que diz respeito à pratica da criminalidade, tanto aqui como em outros climas. E o pior é que as convicções criadas em torno do medo ao sobrenatural vai pouco a pouco perdendo sua força no coração e na mente dos homens.

Uma das causas que parece influenciar o suicídio é o instinto de imitação, tendo nisto uma combinação de atos e de pensamentos que se generalizam. Não é tão raro acontecerem suicídios de modo semelhante logo após tal ocorrência, principalmente se o suicida é pessoa conhecida ou se houve muita divulgação pela mídia. Não é incomum a ocorrência de suicídios em determinados locais como certos prédios, pontes ou logradouros. Todavia, é importante salientar que o fenômeno da imitação não chega a alterar as taxas sociais do suicídio, e se houver certo aumento isto será apenas por pouco tempo. A imitação apenas faz eclodir um estado que já é latente. Por isso é discutível se a proibição da divulgação de casos de suicídio tem alguma importância na diminuição do gesto autocida. O perigo está apenas na maneira como se aborda o fato. Há países que proíbem a divulgação de motivação dos suicídios, o que parece não trazer nenhum benefício.

Na maioria das vezes, as causas dos suicídios são contabilizadas por meio dos relatórios das conclusões apressadas dos inquéritos policiais que muitas vezes estão rotulados como de motivação financeira, familiar, amorosa ou por doenças. Quando uma estatística é apresentada de forma burocrática, é claro que isto reflete um resultado sem nenhum critério na avaliação de suas razões, sem qualquer interpretação em face das informações superficiais e apressadas, sem trazer as verdadeiras motivações que subsidiem um estudo sério para uma melhor compreensão de tão complexo fenômeno e sem condições para se investir na sua prevenção.

A importância da família bem estruturada não pode ser desconsiderada como fator moderador nos casos de suicídio pelo seu papel agregador e pelo seu modelo de persuasão. Para Durkheim as explicações do gesto autocida são motivadas pelas pressões sociais e culturais sobre o indivíduo centradas em três tipos: o egoísta, em que o indivíduo se afasta dos demais; o anômico, em que seus atores acreditam no desmoronamento do mundo social em torno deles; e o altruísta, por um impulso de lealdade a uma ideia ou uma causa.

O suicídio egoísta seria a forma mais comum e é caracterizado pela apatia e por um individualismo exigente. Nele o indivíduo perde a ligação com a sociedade por entender que seus desejos ou estilo de vida já não correspondem com a realidade em que vive e o que ela lhe dá não o satisfaz, no lugar disso traz-lhe tédio e desprazer.

O suicídio altruísta é caracterizado por uma integração social intensa e forte, em que o indivíduo está intensamente vinculado e comprometido com seus ideais ou por motivações hierárquicas a que ele se submete de forma determinada. Neste caso, o individuo não está desintegrado de seu meio. Muitas vezes ele se sente apenas obrigado moralmente a praticar o suicídio. Esta forma é muito parecida com o chamado “suicídio heroico”.

O suicídio anômico é o mais frequente e é preocupante nos dias atuais porque está vinculado à falta de uma maior exigência social dita moderna, cada vez mais egoísta e mais indiferente.

De acordo com Raymond Aron, “nestas sociedades, a existência social não é regulada pelo costume; os indivíduos estão em competição permanente uns com os outros; esperam muito da existência e exigem muito dela, e encontram-se perpetuamente rondados pelo sofrimento que nasce da desproporção entre as suas aspirações e as suas satisfações” (2).

Garma justifica o suicídio por meio da influência de dois fatores: o ambiente desfavorável e a constituição do indivíduo, dando ênfase à depressão resultante do luto e da melancolia, ao papel do objeto perdido, à deformação masoquista da personalidade e à internalização das agressões do ambiente. Desta composição evoluía a personalidade autodestrutiva (3).

Emile Durkheim (1) estudou suicídios ocorridos em alguns países da Europa no século XIX, de 1841 a 1872, levando em conta principalmente a significação social do suicídio e a denúncia individual de uma crise coletiva. Sua obra O Suicídio foi publicada em 1897 e mesmo assim tendo passado tanto tempo, sua obra é um referencial de qualidade nos dias de hoje.

Todavia, não se pode debitar à sociedade um ato isolado tomado por determinado indivíduo, sabendo que ele tem o livre arbítrio e age e se move no seio social com certa desenvoltura. Isto fica muito claro quando se estudam vídeos, cartas e bilhetes deixados pelos suicidas (“mensagens de adeus” ou “voz dos suicidados”) e os relatos dos sobreviventes com suas motivações e justificativas mais variadas. Eles têm muito a dizer. Em geral, os autores dividem os motivos em bons e maus sentimentos.

O estudo deste material tem muita importância sob o ponto de vista psiquiátrico, psicológico e médico forense, pois ele pode revelar o pensamento do suicida antes de tomar a decisão de livrar-se da vida. Só excepcionalmente pode ocorrer o contrário: quando o suicida não mostra certa coerência refletida pelo seu gesto. Tais escritos não podem significar apenas uma justificativa apressada para se concluir a causa, os motivos e as razões do autocídio, mas antes de tudo um material de certa significação para uma análise mais profunda do gesto exterminador.

A leitura mais explicável destas mensagens é que o suicídio é um fenômeno que se traduz pelas contradições, como se fora uma porta de saída para justificar uma situação em que o diálogo do indivíduo falhou na sua comunicação onde ele vive e se relaciona. Como se fora a última e desesperada forma de manifestação de quem perdeu o rumo e a vontade de lutar. Viver é sustentar uma alma que teima e não se entrega.

Mesmo que não existam naquelas mensagens deixadas uma explicação lógica do seu gesto pelo menos pode haver uma mensagem simbólica de sua atitude aos demais, tentando justificar aquilo que não soube explicar em vida.

Tudo faz crer que o suicídio se efetiva dentro de um complexo processo elaborado dentro de uma relação entre uma atividade mental perturbada ou determinada e o universo das condicionantes sociais que leva o indivíduo a conviver com graves conflitos.

O Estado também não deixa de ser um órgão que oprime as pessoas com regras que, embora justificadas em motivos aparentemente justos, algumas vezes se mostram exigentes pelo seu legalismo intransigente ou pela insignificância de suas regras. É do conhecimento de todos que nas grandes crises econômicas que atingem uma sociedade há uma tendência para o aumento de suicídios. Assim foi no “crack” da Bolsa de Paris em 1982, como chamou a atenção de Durkheim (1).

O fato de alguém suicidar-se é algo muito perturbador e desafiante porque este modelo não toca apenas a vítima e seus familiares. Abala o mundo das outras pessoas, perturba os interesses da sociedade, compromete a paz pública e pode desencadear um processo perigoso de novos casos.

Não há um tipo de psicopatia que tenha uma relação coincidente com o suicídio nem uma incidência maior nestes doentes do que entre os não atingidos por ela. Mesmo que em determinada população exista uma incidência maior, isto não quer dizer que ela seja a sua causa primeira. Deve-se voltar para outros fatores mais determinantes. Não se pode dizer que o alto índice de embriaguez habitual em uma comunidade ou em uma família possa ter influência nas cifras de suicídio.

Também não se pode dizer que determinadas raças sejam mais predispostas ao suicídio. Não existe fundamento científico que justifique tal assertiva. Aqui se deve entender como raça um conjunto de indivíduos com certas semelhanças adquiridas por hereditariedade. O máximo que se pode dizer é que os genes podem transmitir um tipo de temperamento e que isto possa predispor alguém a atos suicidas. O fato de o suicídio ocorrer várias vezes em uma mesma família deve-se muito mais ao fator contagioso do exemplo, e por isso eles se dão quase sempre da mesma forma e na mesma fase de vida.

À primeira vista parece que é nas estações mais frias e mais escuras que ocorre a maioria dos suicídios. Mas não é. O período mais incidente desta ocorrência é na primavera, talvez pelo contraste entre o viver penoso e o esplendor da natureza, e ocorre com mais frequência durante o dia, entre as 6 e 11 horas.

Uma razão apontada seria porque é durante o dia que as relações sociais são mais intensas. Os dias da semana de menor frequência do suicídio são sexta-feira e sábado, dias em que há menor intensidade da vida. Estatisticamente, o dia de maior frequência é a terça-feira, inclusive porque, entre outros, é o dia dos amantes (suicídio passional).

A chamada “necropsia psicológica” em casos de suicídio, criticada por alguns – principalmente como determinação da causa jurídica de morte –, é baseada em certas informações retrospectivas sobre fatos referentes à vitima. Este método nem sempre é aceito como de valor absoluto. Seu risco está na valorização de fatos aos quais todas as pessoas estejam sujeitas.

3. CONCLUSÃO

Face o exposto neste trabalho resta-nos evidente que a morte de um indivíduo por autocídio não deve ter sua responsabilidade debitada a ele exclusivamente, mas avaliar cuidadosamente caso a caso uma responsabilidade coletiva, se não para tirar a culpa do suicidado mas refletir sobre a importância das mediações sociais sobre o ocorrido.


Referências bibliográficas

  1. Durkheim E. O Suicídio São Paulo: Martins Fontes; 2011.
  2. Aron R. As etapas do pensamento sociológico São Paulo: Martins Fontes; 2003.
  3. Garma A. Los suicídios: in La fascinación de la muerte Buenos Aires: Paidós; 1973.