Os autores informam não haver conflito de interesse.
MEDICAL-EXPERT CONSIDERATIONS FOR THE ASSESSMENT OF FUTURE DAMAGE
Jonas Aparecido Borracini (1)
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1531-5235
Lucas Pedroso Fernandes Ferreira Leal (1)
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4910203611295452
Élcio Rodrigues da Silva (1)
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1847-1009
Viviam Paula Lucianelli Spina (1)
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8042791240784011 – ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9196-3061
Fabio Tadeu Panza (1)
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5528930004210470 – ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7841-7461
(1) Núcleo de Perícias Clínicas do Instituto de Medicina Social e Criminologia do Estado de São Paulo (IMESC) – SP
E-mail: j.borracini@me.com
RESUMO
No âmbito da avaliação de danos corporais, a prova pericial é essencialmente médica e deve obedecer a normas especificas do âmbito do Direito. A função do perito é saber dar resposta ao objeto da perícia, procurando traduzir a complexidade da avaliação técnica em um conjunto de conclusões fundamentadas, contribuindo com a Justiça. É fundamental que o dano seja identificado, descrito e valorado de acordo com rigoroso método científico. A valoração do dano futuro deve basear-se em conteúdo técnico, por ser particularmente difícil de identificação e valoração, dada a sua inexistência no momento da avaliação pericial. No campo da prática médico pericial, faz-se necessária uma abordagem mais rigorosa e integral na avaliação do dano corporal, incluindo a possibilidade do dano futuro, ante sua previsibilidade. Entendemos que o mais adequado e justo, na realidade da prática pericial brasileira, seria que a ponderação do Dano Futuro fosse realizada por ocasião do exame pericial inicial, permitindo que o indivíduo gozasse desde logo do ressarcimento que lhe fosse atribuído pelo magistrado, à luz do conhecimento médico. Desta forma, este artigo sustenta uma quantificação do dano futuro que pode não ser precisa quanto à sua extensão, mas certamente lógica e fundamentalmente científica, contribuindo para a Justiça.
Palavras-chave: dano futuro, dano corporal, perícia médica, responsabilidade civil.
ABSTRACT
Medical expert evidence must comply with legal proceedings. In the assessment of personal injuries, physicians must respond to the object of litigation, translating the complexity of technical evaluation into a set of reasoned conclusions, contributing to Justice. The medical report needs to be complete. It is essential that the damage is identified, described and assessed according to a rigorous scientific method as well as the actual situation of the individual. The Future Damage is particularly difficult to identify and assess, given that it is not present at the time of the expert’s assessment, however, it must be considered, given its predictability based on technical and epidemiological content. We defend that the assessment and the repair of future damage would be fair and appropriate to the Brazilian reality if it is already performed in the initial medical evaluation, thus enabling the individual to enjoy the assigned compensation. In this way, this article seeks to establish that the specialized medical literature combined with the Law would allow a quantification that may not be precise as to its extent, but it is certainly logical and fundamentally scientific, contributing to Justice.
Keywords: future damage, body damage, medical evaluation, civil responsibility.
1. INTRODUÇÃO
A sociedade contemporânea vem buscando, insistentemente, ampliar os seus direitos civis, requerendo condutas mais igualitárias, isonômicas e justas. No campo da prática pericial, faz-se necessária uma abordagem mais rigorosa e integral por parte do perito médico, no sentido de uma análise global e mais detalhada das variáveis possíveis, principalmente nas ações cíveis em que se pleiteiam indenizações (1-3). Esta avaliação mais detalhada e integral do dano no âmbito da responsabilidade civil, sem nos prendermos na superficialidade, mas nos detalhes, no contexto e na personalização, faz com que um ponto bastante obscuro no meio jurídico e pericial seja trazido à tona: o Dano Futuro.
O prévio conhecimento dos dogmas da responsabilidade civil clássica se mostra necessário para posteriormente adentrarmos ao mérito da reparação do risco atual de afecção futura. A reponsabilidade civil clássica é definida como a obrigação de indenizar, por meio do restabelecimento do status quo ante (4),, e tem como pressupostos da reparação do dano os seguintes elementos: o ato ilícito (conduta humana), a culpa, o nexo de causalidade e o dano (5,6).
- O ato ilícito é a conduta humana, a qual se concretiza numa ação ou omissão. Além disso, a conduta humana deve ser consciente e voluntária, pois, se o agente não tem consciência ou controle de suas ações, não será responsabilizado.
- A culpa é adotada em sentido amplo, por abranger indistintamente as condutas dolosa e culposa, strictu sensu, como fato gerador da responsabilidade civil.
- O nexo de causalidade compõe um dos elementos base para caracterização da responsabilidade civil, haja vista que sem nexo, responsabilidade não há.
- O dano é entendido, no meio jurídico, como sendo o prejuízo que alguém sofre na sua alma, corpo ou bens, quaisquer que sejam o autor e a causa da lesão.
Verifica-se que a sociedade atual não está suficientemente amparada pelos meios de reparação proporcionados pela teoria clássica da responsabilidade civil. Ao contrário dos danos materiais – os quais são calculados com base na diminuição no patrimônio do ofendido, no prejuízo decorrente de perda, destruição ou danificação de bens já existentes à data da lesão, nas despesas em que se tenha que incorrer (dano emergente) e no que razoavelmente se deixou de obter em consequência da lesão, na totalidade dos rendimentos perdidos (lucro cessante) -, os danos morais são insuscetíveis de categórica apreciação econômica (5-9). Não existem tabelas, fórmulas, parâmetros nem critérios fixos que vinculem o magistrado na fixação do dano moral; ao contrário, o sistema adotado pelo ordenamento brasileiro, o do livre arbitramento como regra geral, atribui ao juiz a mais ampla liberdade para determinar o valor da indenização. Num cenário de imprevisibilidade e de insegurança jurídica, ante as controvérsias e a diferença de sentenças proferidas relativas ao mesmo bem jurídico violado perante um quadro de fato similar, verifica-se que se arbitram quantias indenizatórias díspares e raramente as decisões de reparação de danos são suficientemente motivadas (8), especialmente no que tange à sua quantificação frente às diversas peculiaridades do caso concreto.
O Dano Futuro constitui um parâmetro de avaliação do dano corporal que corresponde ao agravamento certo e seguro das sequelas, podendo traduzir-se em uma série de outros danos, temporários e permanentes, que não apenas em especial no aumento do déficit funcional permanente (1,10). Destarte, ainda que por vezes encerre uma vertente patrimonial, pode, muito além, constituir um dano extrapatrimonial (não-econômico) que, pela sua gravidade, mereça a tutela do direito (9,11). Por serem a literatura nacional e mundial muito escassas em estudos científicos a respeito do assunto, muitos peritos e magistrados desconhecem a relevância do dano futuro e ainda não há um consenso formado a respeito do tema. Numa análise mais ampla, podemos incluir danos que vão além do agravamento de incapacidades permanentes, em todas as possíveis formas de apresentação, podendo assim haver lugar a outros novos parâmetros de danos (1,3,10), como, por exemplo, um agravamento de dano estético, dano sexual ou mesmo do prejuízo da afirmação pessoal.
O Dano Futuro não se associa a nenhum tipo específico de caso, nem quanto à tipologia dos danos, nem quanto à sua gravidade, ainda que seja mais facilmente considerado após traumas com lesões ortopédicas e em situações em cuja valoração do quantum doloris se atribuiu grau maior que 4, numa escala de 7 graus de gravidade crescente (10). Engloba condições como artrose, redução ou impotência funcional, agravamento da dor e de diversas situações clínicas pós-traumáticas, com um nível de evidência aceitável, que ainda não se concretizou, mas que ocorrerá, tendo em conta a evolução comum conhecida daquele tipo de lesão e a experiência de casos análogos, conforme a evolução habitual.
Há de se salientar que situações como as necessidades de intervenções cirúrgicas, de tratamentos médicos, de fisioterapia, de terceira pessoa, de ajudas medicamentosas e/ou de substituição de prótese, bem como uma probabilidade de aparecimento de lesões neurológicas, de infecções ou de agravamento, não são passíveis de constituir, de per se, o dano futuro, o que constitui coisa diferente (10). É preciso que se tenha em mente o que é uma evolução prevista, certa e segura das sequelas e o que é uma evolução meramente potencial e interpretativa. Não se considera dano futuro aquele que não passa de uma hipotética eventualidade (não uma condição suficientemente previsível, provável e sabida), e, como tal, não há como ser valorizada, nem consequentemente indenizável, conforme o conceito da teoria da responsabilidade civil clássica.
Este dano é particularmente difícil de identificação e valoração, dada a sua inexistência no momento da avaliação pericial, mas, no entanto, é necessário que seja considerado, por ser certo e previsível num momento futuro. É possível e, principalmente, imperioso prevê-lo de forma objetiva, precisa e rigorosa, tendo em conta os critérios fundamentais para sua caracterização, garantindo-se assim uma avaliação mais concisa, pormenorizada e individualizada do dano (1,2). Defendemos, neste sentido, que o perito deve tecer suas considerações e oferecer a sua análise do caso, mas, sobretudo, deve explicar, em seu laudo, o que cada parâmetro de ponderação e cada pontuação expressa através de uma escala quantitativa-descritiva de sete graus de gravidade crescente (proposta originalmente por Thierry e Nicourt) significam (1,3), deixando o magistrado se inteirar, clara e seguramente, sobre tudo o que aquilo efetivamente implica. É fundamental que o dano pessoal seja identificado, descrito e valorado de acordo com rigoroso método científico difundido em nosso meio, como propõe a Escola Portuguesa (1-3, 7, 11).
Estudo realizado junto à Universidade do Porto (Portugal) (10) identificou que 65,6% (n=208) dos casos relacionavam-se a traumas com algum acometimento ortopédico. Na totalidade da amostra estudada (n=307), foi identificado que 8% dos casos apresentavam graus variáveis de dano futuro, quer seja por piora funcional, estética ou do quantum doloris. Ainda, demonstrou-se que em 29% dos casos os peritos judiciais ao menos cumpriram as normas metodológicas de descrição, fundamentação e quantificação do dano. Entendemos que, certamente, o valor apurado de Dano Futuro (8%) pode estar subestimado.
Vale salientar que mesmas lesões ou sequelas orgânicas podem ter impactos e reflexos totalmente diferentes em termos pessoais e profissionais (3); é isso que sustenta a Classificação Internacional de Funcionalidade e Incapacidade e Saúde (CIF-OMS), quando menciona que de fato há de se levar em consideração o corpo, as capacidades e as situações da pessoa, uma vez que duas pessoas com a mesma sequela podem ter níveis diferentes de funcionamento, e duas pessoas com o mesmo nível de funcionamento não têm, necessariamente, situações sequelares idênticas (12). Acreditamos que, para além de se averiguar o déficit funcional permanente, deve o perito explicar que reflexos tem em termos de atividades profissionais, escolares e de formação, em termos dos atos essenciais da vida cotidiana, em termos de relações afetivas e de atividades familiares, em termos de atividades de lazer, dentre outros, sopesando-se todos fatores ambientais e pessoais envolvidos.
O déficit funcional permanente constitui fonte de dano futuro de natureza patrimonial, traduzido na muito previsível frustração de ganhos, na mesma proporção do handicap físico ou psíquico, independentemente da prova de prejuízos imediatos nos rendimentos do trabalho da pessoa (10). Há de se considerar a existência de repercussão permanente sobre a capacidade de ganho do indivíduo, avaliando-se o dano também na perspectiva profissional (3,9,11). A situação mais comum no âmbito de dano futuro é a perda de capacidade de ganho plena e absoluta gerada por uma qualquer situação de incapacidade que afete a produtividade do lesado enquanto trabalhador, o que se traduziria numa perda econômica de rendimentos ou maior penosidade na execução das suas tarefas profissionais, exigindo o seu desempenho maiores esforços e adaptações para manter o mesmo nível salarial, ou que poderia traduzir a desvalorização funcional numa menor ascensão na carreira, por exemplo, independentemente de se traduzir, ou não, em perda imediata de proventos. Note-se que situações que não originem prejuízo funcional efetivo com reflexo na perda da capacidade de ganho, não se tendo rebate profissional significante com perda de rendimentos, não devem ser consideradas a título de dano futuro, sem prejuízo de outros danos serem atendidos em sua caracterização, como, por exemplo, o dano estético. Cremos que merecem também análise cuidada os danos que têm repercussão não-patrimonial, haja vista os prejuízos de monta implícitos para fruir a vida (9).
Um questionamento que emerge nesta seara é: Pode a pessoa sequelada ser indenizada no presente por um dano à sua saúde que apenas será percebido e sentido anos depois? O entendimento é que o dano no presente cria no indivíduo um risco atual de agravamento futuro, antes inexistente, que é entendido como um prejuízo certo e efetivo, e, portanto, hábil a gerar o dever contemporâneo de ser reparado (4,8,9).
2. DISCUSSÃO
As hipóteses de abordagem do Dano Futuro são: desconsiderar simplesmente a possibilidade do dano futuro; reconhecer a possibilidade, descrever e prever a reabertura processual futura para nova avaliação e consequentemente mensuração do dano; e reconhecer a possibilidade, descrever e quantificar o dano no momento atual, bem como estimar o agravamento, a fim de se promover a compensação imediata do dano futuro.
Preveem-se diversas dificuldades, já que muitos peritos judiciais não estão familiarizados com o tema, nem sensibilizados ou capacitados para reconhecer e avaliar de forma fundamentada este tipo de dano. O estabelecimento de nexo de causalidade no futuro pode, eventualmente, ficar prejudicado pelo lapso temporal e possíveis adventos. Não há regulamentação jurídica definida para aplicação pelos magistrados. E não existe metodologia científica consagrada reconhecida para quantificação do dano futuro e, portanto, estimativas podem ser consideradas meras opiniões pessoais.
2.1 POSSIBILIDADES DE ABORDAGEM DO DANO FUTURO
2.1.1. Desconsiderar o dano futuro
Como colocado acima nas possibilidades de abordagem do dano futuro, simplesmente desconsiderá-lo seria uma medida omissa do ponto de vista técnico, bem como, totalmente divergente do sentido de ampliação dos direitos civis e distanciando-se do objetivo de se atingir a Justiça Social. Esta possibilidade somente é aceita nos casos em que a fundamentação técnica do dano futuro não é possível de ser verificada pela ciência médica, por se tratar de dano muito remoto.
2.1.2. Reconhecimento da possibilidade de dano futuro e reavaliação pericial posterior com reconsideração sobre a quantificação do dano
Esta possibilidade, inicialmente, nos parecia ser a mais técnica, mas, em nosso entendimento, é menos abrangente no que tange à ampliação dos direitos civis. O simples reconhecimento da existência da figura do dano futuro, consignando-se tão unicamente a possibilidade de agravamento futuro (quer seja do dano patrimonial quer seja do dano extrapatrimonial), não nos parece a melhor alternativa. É imperioso que a reparação do dano seja devida e gozada pelo indivíduo numa situação mais favorável, isto é, o mais breve possível, numa idade menos avançada, com menores limitações funcionais, o que entendemos ser, concessa vênia, o mais justo. Assim também tanto evita-se a reavaliação médica do indivíduo após anos, contribuindo-se para a maior celeridade processual, quanto não se macula o princípio da segurança jurídica e dissipam-se eventuais questionamentos que pode haver quanto ao nexo de causalidade entre o evento primário e seu agravamento, ante o lapso temporal decorrido (1,4).
2.1.3. Reconhecimento da possibilidade de dano futuro, mensuração do dano atual e avaliação estimada do dano futuro.
Entendemos que o mais aceitável, adequado e justo seria que a reparação do Dano Futuro fosse realizada já na sua valoração inicial, possibilitando assim que o indivíduo gozasse do ressarcimento que lhe fosse atribuído. Parece-nos importante e necessário proceder a uma análise aprofundada sobre este parâmetro de dano, desde logo, devidamente descrita no relatório médico-legal a fundamentação para a sua atribuição, o que tem em vista, sobretudo, resolver as dificuldades associadas à eventual reavaliação em processos judiciais por agravamento das sequelas em Direito Civil, e contribuir para promover um melhor conhecimento sobre a realidade do indivíduo, apoiando, desta feita, as decisões judiciais que venham a ser tomadas após a avaliação pericial médico-legal realizada de forma rigorosa, objetiva e clara.
A valoração do dano futuro não pode dispensar o recurso à equidade, de forma técnica e epidemiológica, tendo-se em conta se os resultados de estudos envolvendo o tipo de lesão em tela apontam para uma alta ou baixa probabilidade de agravamento. Desta forma, a literatura médica especializada, aliada à medicina legal, serão, definitivamente, dois instrumentos a serviço do Direito na identificação de riscos atuais de desenvolvimento do dano futuro, permitindo uma quantificação que pode não ser precisa quanto à sua extensão, mas é certamente lógica e, fundamentalmente, científica.
Determinar o valor exato do dano futuro, obviamente, não é possível. Há de se apoiar o perito em elementos que possam ser comprovados, em dados técnicos e outros meios para apurá-lo (3). Ademais, deve-se considerar a idade do indivíduo, bem como sua expectativa média de vida, já que o dano futuro se reflete conforme o parâmetro de dano em evidência. Enquanto o dano futuro patrimonial pode até vir a ser considerado até a idade da aposentadoria do indivíduo, uma vez que a frustração de ganhos pode comprometer os rendimentos até o fim do previsível período da vida ativa da pessoa, ante sua respectiva perda de salário, o dano futuro não-patrimonial merece respeitar a sua expectativa média de vida, pois seus rebates acompanharam o indivíduo ao longo de toda ela (9).
As artroplastias de joelho, quadril e ombro são procedimentos que requerem implantação de componentes protéticos, os quais podem ser confeccionados em liga de metal, polietileno e cerâmica, fixados com ou sem cimento ósseo. Observa-se que, ao longo dos anos, ocorre desgaste, com algumas variações. Ainda é previsto, tanto nas artroplastias cimentadas quanto nas não-cimentadas, que também ao decorrer do tempo ocorre a soltura desses componentes protéticos, necessitando-se assim de substituições através de nova abordagem cirúrgica. Outrossim, a literatura médica aponta que em cada substituição necessária ao longo da vida, quer seja por desgaste dos componentes ou por soltura dos mesmos, a chance de insucesso e/ou complicações aumenta significantemente, inclusive com risco de óbito (13). As principais causas de insucesso e/ou complicações são a perda óssea (13-15), fraturas periprotéticas (14), rigidez articular, encurtamento do membro, trombose venosa profunda, tromboembolismo pulmonar e infecção (13-15).
2.2. EXEMPLO DE UM CASO REAL COM AVALIAÇÃO PERICIAL INICIAL E APÓS 10 ANOS
2.2.1 Avaliação Inicial:
Histórico: Jovem, sexo feminino, envolvida em acidente automobilístico (carro versus motocicleta) apresentou fratura central do acetábulo esquerdo, sendo socorrida, submetida a osteossíntese do acetábulo por dupla via de acesso. Evoluiu satisfatoriamente nos pós-operatório, recebendo alta hospitalar após sete dias e retornando ao trabalho após seis meses.
Exame clínico: Marcha claudicante com auxílio de bengala por recomendação médica. Cicatriz em região glútea esquerda de 18,5 cm, discretamente alargada; cicatriz em região anterior da asa do ilíaco de 24,0 cm com bom aspecto. Mobilidade do quadril com limitação global leve. Encurtamento do membro inferior esquerdo de 2,3 cm em relação ao contralateral.
Documentos médico-legais: radiografias com fratura central de acetábulo (Figura 1) e após osteossíntese (Figura 2)

Figura 1: fratura central do acetábulo esquerdo.

Figura 2: osteossíntese do acetábulo esquerdo.
Discussão: Considerando-se os conceitos e o método de ‘Avaliação do Dano Corporal Pós-Traumático’ utilizados pela Escola Portuguesa (Instituto Nacional de Medicina Legal – Universidade de Coimbra), no âmbito do Direito Civil, ajustados à realidade brasileira (1,3,7), pode-se afirmar, dentre os diversos parâmetros de dano, em síntese, o seguinte:
- O nexo de causalidade é admitido entre o evento automobilístico relatado e a fratura do acetábulo esquerdo.
- A repercussão temporária sobre a atividade profissional foi de 180 dias.
- O Quantum doloris, correspondente ao sofrimento físico-psíquico suportado pela pessoa no decorrer do tratamento, estima-se ser de magnitude 4 numa escala de 1-7.
- As alterações evidenciadas no exame clínico, à luz do conceito de unidade funcional, correspondem, por analogia a base na Tabela SUSEP, a 17,5% de déficit funcional permanente. Considerando-se ser o caso de leve repercussão, isto é, aplicando-se 25% sobre o valor previsto para perda funcional do membro inferior, que é de 70%.
- Atualmente apresenta incapacidade laboral parcial e permanente, devendo ser reabilitada para funções com menor demanda nos membros inferiores e que exijam posições desfavoráveis.
- O Dano estético, considerando as características das lesões, idade, sexo e numa perspectiva dinâmica e estática, estima-se ser de magnitude 4 numa escala de 1-7.
- As sequelas determinam prejuízo leve para atividades de lazer, sociais e familiares que exijam maior demanda e destreza com os membros inferiores, estimando-se ser de magnitude 3 numa escala de 1-7.
2.2.2 Reavaliação após 10 anos:
Histórico: Pericianda submetida a osteossíntese de acetábulo esquerdo há 10 anos. Refere que há 2 anos iniciou quadro álgico associado a limitação da mobilidade articular, sendo diagnosticado osteoartrose secundária do quadril esquerdo. Foi submetida a artroplastia total do quadril há 09 meses. Evoluiu com infecção no sítio cirúrgico, sendo realizadas limpezas cirúrgicas e, por último, indicada retirada dos componentes protéticos. Atualmente queixa-se de dor, limitação da mobilidade e necessidade de auxílio de muletas para deambulação.
Exame clínico: Marcha claudicante com auxílio de muletas obrigatória. Cicatriz em região glútea esquerda de 18,5 cm, discretamente alargada; cicatrizes em região anterior da asa do ilíaco e em face lateral, respectivamente, de 24,0 e 22,5 cm, sendo a última alargada. Mobilidade do quadril com limitação global severa pela instabilidade articular devida a retirada dos componentes protéticos. Encurtamento do membro inferior esquerdo de 7,4 cm em relação ao contralateral por disjunção fêmuroacetabular.
Documentos médico-legais: radiografias evolutivas, artroplastia de quadril (Figura 3) e após cirurgia de Gildestone com disjunção femoroacetabular (Figura 4).

Figura 3: artroplastia total de quadril.

Figura 4: após cirurgia de Gildestone com disjunção femoroacetabular.
Discussão: Considerando-se os conceitos e o método de ‘Avaliação do Dano Corporal Pós-Traumático’ utilizados pela Escola Portuguesa (Instituto Nacional de Medicina Legal – Universidade de Coimbra), no âmbito do Direito Civil, ajustados à realidade brasileira (1,3,7), pode-se afirmar, dentre os diversos parâmetros de dano, em síntese, o seguinte:
- O nexo de causalidade é admitido entre o evento automobilístico relatado e a fratura do acetábulo esquerdo, com evolução para o quadro artrósico.
- A repercussão temporária sobre a atividade profissional foi de 360 dias, com outros períodos de afastamento.
- O Quantum doloris, correspondente ao sofrimento físico-psíquico suportado pela pessoa no decorrer do tratamento, estima-se ser de magnitude 6 numa escala de 1-7.
- As alterações evidenciadas no exame clínico, à luz do conceito de unidade funcional, correspondem, por analogia a Tabela SUSEP, a 52,5% de déficit funcional permanente. Considerando-se ser o caso de intensa repercussão, isto é, aplicando-se 75% sobre o valor previsto para perda funcional do membro inferior, que é de 70%.
- Atualmente apresenta incapacidade laboral total e permanente, desde a data do procedimento de artroplastia total do quadril.
- O Dano estético, considerando as características das lesões, idade, sexo e numa perspectiva dinâmica e estática, estima-se ser de magnitude 6 numa escala de 1-7.
- As sequelas determinam prejuízo intenso para atividades de lazer, sociais e familiares que exijam maior demanda e destreza com os membros inferiores, estimando-se ser de magnitude 6 numa escala de 1-7.
Com o exemplo acima, fica claro que a omissão a respeito da caracterização de dano futuro seria, na mais simplista das análises, uma forma muito superficial da interpretação da lesão e de suas consequências médico-legais. Nota-se claro agravamento da lesão dentro dos diversos parâmetros de danos temporários e permanentes, com aumento do número de dias de repercussão temporária na atividade profissional de 180 dias para 360 dias, Quantum doloris de 4 para 6, déficit funcional permanente inicialmente de 17,5% para 52,5%, dano estético de 4 para 6, e de repercussão leve para intensa nas atividades de lazer, sociais e familiares, de 3 para 6.
Acreditamos que, em casos como o reportado acima, o dano futuro pode e deve ser considerado; trata-se de situação certa e segura, e não eventual nem hipotética, portanto indenizável, haja vista os dados de literatura médica abundantes demonstrando o agravamento ao longo do tempo neste tipo de lesão. O que poderia ensejar discussão no caso em comento não seria o nexo de causalidade, mas sim a forma de mensuração do dano atual e do dano do dano futuro, consoante a proposta de abordagem apresentada.
2.3. PROPOSTA DE AVALIAÇÃO DE DANO FUTURO
Defendemos que no laudo médico-legal devem constar tanto a avaliação atual do dano do indivíduo quanto a perspectiva futura estimada do agravamento de sua condição clínica, mormente seu déficit funcional permanente, dentre outros parâmetros valorizáveis do dano, disponibilizando os elementos técnicos, de acordo com a doutrina médica, para maior esclarecimento do magistrado. Compete às autoridades judiciais proceder à apuração final do dano e determinar a sua reparação, a qual se faz geralmente de acordo com as referências da prova técnica (16).
No que tange às crianças, é aconselhável que se faça menção no relatório pericial da necessidade de nova avaliação médico-legal terminado o período pubertário, especialmente nos casos do foro ortopédico, em que esteja atingida uma cartilagem de conjugação. É preciso que se continue a descrever a possibilidade de um agravamento vir a se manifestar e referir a importância de uma nova apreciação médico-legal nessa altura, considerando-se que, para além do dano futuro, também se deve fazer referência ao dano potencial, nestes casos em específico, para que se possa ter uma eventual reabertura do processo, caso venha a surgir um agravamento que não era, contudo, seguro (10).
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para além dos parâmetros de danos temporários e permanentes apreciados, deve-se inserir e atender ao dano futuro, muitas vezes esquecido ou desvalorizado. Este dano deve aparecer referido e ser quantificado com a dimensão real que lhe deve ser atribuída, de modo consistente e fundamentado, ante o juízo de equidade. Não bastam apenas indicações sumárias relativamente ao fato que estará na origem da atribuição do dano futuro. A boa prática não permite que se caia na tentação da Justiça subjetiva, emocional, fundada em opiniões face ao caso concreto, mas em critérios científicos e jurídicos (3,8,9). É indiscutível que seja essencial uma ponderada decisão com os ajustamentos que o caso concreto aconselhar, frutos das considerações médicas orientadoras e explicativas ao juízo (16). Temos de ser nossos agentes da mudança e, se conseguirmos, de fato, fazer isso, seguramente teremos perícias no presente muito melhores e mais evoluídas do que aquelas que tínhamos no passado (3). Trata-se, contudo, de aspecto que necessita de maior reflexão e de trabalho de formação e capacitação continuadas, pois mais complexo e exigente se tornará o mister dos verdadeiros peritos (10), designadamente no que se refere à fundamentação deste parâmetro de dano, na perspectiva em que é definido pela doutrina médico-legal.
Em consonância com outros profissionais especializados em avaliação do dano corporal (1,2,7.10,11), defendemos que o dano não só é individual, mas uno, e que não pode ser analisado apenas desde uma lesão anatômica e sua perspectiva laboral. Antes, pelo contrário, deve ser avaliado numa ótica transversal que abarque todas as implicações na vida do lesado, de modo global e contextualizado. É, portanto, em nosso entender, um dano pessoal, avaliável em função dos elementos que o constituem e traduzível em dano com conteúdo patrimonial e não-patrimonial. Esta é a perspectiva que a perícia médico-legal deve ter em conta, deixando para o Direito a transformação do dano pessoal real em indenização, já que as consequências de uma lesão semelhante podem não ser as mesmas em indivíduos distintos, o que determina uma valoração diferenciada. A perícia médico-legal na avaliação de danos deve ser técnica, orientada e qualificada, e pressupõe uma descrição minuciosa, discriminada e circunstanciada dos prejuízos nos diversos domínios (1,3,9,12), disso dependendo uma adequada e integral reparação do objeto imediato, que é a pessoa em concreto, para o que a perícia tem de contribuir, sob pena de não facultar os elementos adequados e necessários à quantificação da indenização pelo tribunal.
Referências bibliográficas
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