Artigos Doutrinários

FUNDAMENTOS DA SEXOLOGIA FORENSE

Como citar: Leme CP. FUNDAMENTOS DA SEXOLOGIA FORENSE. Persp. 2019; 8 sup.

https://dx.doi.org/10.47005/040108

 

                                                                                                     Chu-En-Lay Paes Leme (1)

(1) Médico Legista – Membro do Conselho Técnico Científico (MT)

RESUMO


Os fundamentos da sexologia forense, elencados neste artigo, como linhas mestras da sexologia forense, mostram como são as ferramentas necessárias para a realização, com sucesso, da perícia dos crimes sexuais.


ABSTRACT


The foundations of forensic sexology are discussed in this article as guidelines of forensic sexology to show what the necessary tools are like for the successful.

 

A sexologia forense está ancorada nas linhas mestras que a estruturam e que representam seus fundamentos. A sua essência é a tutela da liberdade sexual da pessoa humana. A garantia da inviolabilidade do direito à liberdade está prevista no artigo 5º da Constituição Federal (CF) que diz: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Quem garante a inviolabilidade do direito à liberdade, neste caso a liberdade sexual, é o Estado. Por meio do Poder Legislativo o Estado define como crime as condutas que violam esta garantia. A sexologia forense tem como finalidade estudar as práticas libidinosas definidas pela lei penal como crime. Este estudo é do interesse judicial. Uma vez ocorrida infração à lei cabe ao Estado apurar a infração e sua autoria para então processar, julgar e quando cabível aplicar, ao infrator, a pena adequada. As Instituições Públicas encarregadas desse trabalho são: a Polícia Judiciária, o Ministério Público e o Poder Judiciário. O artigo 156 do Código de Processo Penal (CPP) orienta: A prova da alegação incumbirá a quem a fizer. Em outras palavras este artigo diz que o ônus da prova é da acusação. No crime quem acusa é o Estado por meio do Ministério Público. Por esta razão é do Estado o ônus de provar que o crime ocorreu e Ele o faz por meio das Instituições acima citadas. É da atribuição da polícia judiciária apurar a infração penal e sua autoria conforme preceitua o artigo 4º do CPP. Nesta fase inquisitorial cabe à autoridade policial reunir todos os elementos probatórios que possam indicar evidências da infração. Dentre eles está previsto o exame de corpo de delito conforme normatiza o inciso VII do artigo 6º do CPP. Já o artigo 158 do CPP disciplina: Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão de acusado. Este artigo torna o exame de corpo de delito indispensável, mesmo diante da confissão do acusado, isto porque ele é a base para a produção da prova técnica que é considerada a melhor das provas, por ser realizada por técnico especializado. O artigo 159 do CPP particulariza como privativa do perito oficial a realização do exame de corpo de delito. Os vestígios que formam o corpo de delito, principalmente nos crime sexuais, são perecíveis e em poucos dias desaparecem, por isso o seu exame deve ser realizado logo após o cometimento do delito. Trata-se de prova cautelar, não repetível e por isso antecipada, como são as provas oriundas do exame de corpo de delito, que sempre serão produzidas na fase do inquérito policial, porque não podem ser reproduzidas na fase processual pelos motivos acima apresentados. A prova tem como finalidade demonstrar a realidade do fato delituoso, ela é o instrumento que objetiva revelar a verdade da ocorrência da infração. Mas revelar a verdade é tarefa árdua. A verdade se estratifica em verdade real e verdade material. A verdade real é aquela que aconteceu durante a prática da ação delituosa, ela é prisioneira daquele momento, depois dele não pode mais ser alcançada. Ficam disponíveis apenas os vestígios deixados pela prática do delito, sendo estes utilizados, posteriormente, para reconstituir a verdade. Pelo exame dos vestígios só é possível reconstituir, apenas, a verdade material ou formal, que é a verdade contida nos papeis, ou seja, nos laudos técnicos e nos depoimentos. A verdade formal ou material, logicamente, é inferior à verdade real.

A prova técnica de boa qualidade é uma das linhas mestras da sexologia forense. Ela carrega em seus ombros uma grande responsabilidade. Ela tem a atribuição de ser um instrumento, um meio de demonstrar a ocorrência do delito e ao fazer isso ela dá sustentação para o inquérito policial. A autoridade policial convencida, de que o inquérito policial contem elementos probatórios que evidenciam a prática do delito, o encaminha ao Ministério público, que o examina e se ele se convencer de que há indícios de prova ele oferece a denúncia ao Judiciário, que também irá analisá-lo. Se o magistrado, também, identificar que há evidência probatória ele aceita a denúncia e abre o processo penal. A prova técnica é elemento essencial nesta fase pré-processual. A prova técnica tem, ainda, a atribuição de dar sustentação probatória, de que o fato alegado ocorreu, durante toda a tramitação do processo penal. Para alcançar este objetivo ela deverá resistir ao contraditório e ao ataque do assistente técnico e se manter incólume até as alegações finais. Ela também é essencial na fase processual. Ao final a prova técnica, aliada aos outros indícios de prova tem a importância de oferecer, ao magistrado, os elementos necessários para que ele forme sua convicção a respeito do fato alegado e possa julgar de forma segura e justa, como estabelece o artigo 155 do CPP que diz: O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. A prova é a essência do processo penal, sem ela não há o processo penal. É necessário que o perito oficial tenha isto presente quando realiza o exame pericial. Ele deve ter consciência da relevância do seu laudo técnico por ser ele a essência da persecução penal. Ele deve se empenhar para realizar da melhor maneira possível, o seu trabalho. O seu laudo técnico sustenta: a fase pré-processual, a fase processual e, ao final, serve para o magistrado, ao avaliá-lo, ter os elementos para formar sua convicção a respeito da prática do delito.

A realização do exame pericial é requisitada pela autoridade policial, de ofício, conforme preceitua o artigo 6º do CPP que diz: Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:

VII – determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias. O artigo deixa claro que a requisição do exame de corpo de delito é uma determinação. O perito deve ter isto presente. Não é um pedido, uma solicitação, é uma determinação e ele deverá cumpri-la. O que o perito examina é o corpo de delito, que são os vestígios deixados pelo ato delituoso. A requisição de exame pericial é uma das linhas mestras que sustentam a sexologia forense. A autoridade policial, ao requisitar o exame pericial, deverá sempre, de forma impreterível, informar qual infração está apurando e quando ela ocorreu. Isto porque o exame de corpo de delito tem por escopo encontrar vestígios de um crime. Só é possível encontrar vestígio de um crime específico ou suspeito quando se sabe qual ele é. Se o perito não souber qual crime motivou o exame, mesmo encontrando algum vestígio ele irá estabelecer nexo causal com qual crime se o desconhece? É também atribuição do perito oficial, para que o laudo seja tecnicamente correto, estabelecer nexo temporal entre o vestígio encontrado, com a data da ocorrência do crime, porque é isso que a lei espera que ele faça, e isto só é possível se o perito souber quando o delito ocorreu. Se o perito não souber qual crime motivou a realização do exame, nem quando ele ocorreu, ele jamais será capaz de fazer um laudo médico legal de boa qualidade técnica. Uma perícia tecnicamente correta depende essencialmente de uma boa requisição de exame feita pela autoridade policial. No Brasil as requisições de exame, de uma forma geral, são deploráveis. Elas, sem as informações essenciais, são um convite, ao perito oficial médico legista, a realizar uma perícia de baixa ou sem nenhuma qualidade técnica. Urge que os gestores façam tratativas para aprimorar as requisições de perícias requisitadas pelas autoridades policiais no Brasil. Essa tarefa é, também, de todos nós que realizamos o trabalho pericial oficial. Idealmente nenhuma perícia oficial poderia ser realizada sem essas informações.

Outra das linhas mestras que sustentam a sexologia forense é a preservação dos vestígios deixados pela prática do crime. Uma boa perícia só é possível se os vestígios estiverem presentes e bem preservados. Se os vestígios estiverem ausentes não há como realizar de forma conclusiva a perícia. Os vestígios são perecíveis, podem ser removidos por higienização, duchas, banhos e podem ser eliminados com o passar do tempo, etc.. Além dos vestígios deixados pelo agressor, podem estar presentes, no corpo da provável vítima, vestígios deixados por práticas libidinosas consentidas ocorridas próximo à data da prática do delito. O perito precisa ter cautela e realizar uma boa entrevista com a provável vítima, para conhecer criteriosamente, tudo que ocorreu com ela, principalmente se praticou algum ato libidinoso consentido próximo à data do evento, e assim ter todos os elementos para realizar uma perícia tecnicamente correta, caso contrário ele poderá materializar um delito utilizando vestígio de uma prática libidinosa consentida. Neste caso o laudo não representa a realidade da ocorrência do crime e o perito, ao emiti-lo, pode induzir a autoridade policial a deter um inocente. O laudo tecnicamente deficiente ao invés de ser fonte para fazer justiça, passa a ser fonte de injustiça. Esta praticada diretamente pelo perito oficial ao elaborar o laudo técnico sem ter os conhecimentos necessários.

Outra das linhas mestras que sustentam a sexologia forense é a padronização do trabalho pericial. Infelizmente apesar de mais de dois séculos da perícia no Brasil, ainda não existe uma padronização do trabalho pericial no país. Esta lacuna é simplesmente inexplicável. Não houve empenho da Associação Brasileira de Medicina Legal, depois da Associação Brasileira de Medicina Legal e Perícias Médicas, nem foi tema dos mais de 25 Congressos Brasileiros de Medicina Legal, ocorridos, fora os Congressos Regionais, para estabelecer uma padronização da perícia oficial. Não houve empenho de cada um dos médicos legistas para lutar por esta causa de extrema relevância. Por quê? Cabe a cada um encontrar a resposta. Mas uma das linhas mestras que integra os fundamentos da sexologia forense é a padronização da atividade pericial. O eixo do trabalho pericial é, minimamente, a estrutura do laudo técnico. Ele deve ser composto pelo: Preâmbulo; Quesitos para o exame de práticas libidinosas; Histórico; Descrição; Discussão ou Comentários; Conclusão e Resposta aos Quesitos. Há muitas localidades, no país, onde os laudos não têm esta estrutura. Muitos não apresentam o tópico: Discussão, nem a Conclusão. Ainda hoje, em 2018, há localidades onde os quesitos utilizados nos laudos nada têm a ver com a Lei N. 12.015/2009, que alterou a definição dos crimes sexuais. Estes quesitos estão dissociados da legislação atual, por isto não atendem a lei vigente. Porém os laudos emitidos por estas localidades ainda hoje utilizam estes quesitos ultrapassados, insatisfatórios para esclarecer o delito. Porque isto acontece? Ninguém tem nada a ver com isso? Houve uma iniciativa tímida da SENASP (Secretaria Nacional de Segurança Pública)/MJ, que realizou um trabalho, com um grupo de peritos brasileiros, para estabelecer o Procedimento Operacional Padronizado (POP) para a Perícia Criminal, que foi editado em 2013. O termo tímido, aqui empregado, é porque este POP ainda não foi adotado por muitos dos Estados da federação. Qual é a explicação para esta resistência?

Outra das linhas mestras que sustentam a sexologia forense são os quesitos para a realização do exame de práticas libidinosas de acordo com a legislação penal atual. Os quesitos propostos que estão no livro Medicina Legal Prática Compreensível e no livro da SENASP, são os seguintes:

Quesitos para exame de práticas libidinosas.

1º Houve conjunção carnal que possa ser relacionada ao delito em apuração?

2º Houve outro ato libidinoso que possa ser relacionado ao delito em apuração?

3º Houve violência para essa prática?

4º Qual o meio dessa violência?

5º Da conduta resultou para o (a) periciando (a): incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias, ou perigo de vida, ou debilidade permanente de membro, sentido ou função, ou aceleração de parto, ou incapacidade permanente para o trabalho, ou enfermidade incurável, ou perda ou inutilização de membro, sentido ou função, ou deformidade permanente, ou aborto? (resposta especificada)

6º Tem o (a) periciando (a) idade menor de 18 e maior de 14 anos?

7º É o (a) periciando (a) menor de 14 anos?

8º Tem o (a) periciando (a) enfermidade ou deficiência mental?

9º O (A) periciando (a), por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência?

10º Da conduta resultou gravidez?

11º O agente transmitiu para o (a) periciando (a) doença sexualmente transmissível?

 Estes quesitos foram adotados no Estado de Mato Grosso em outubro de 2009. Uma iniciativa de um perito oficial médico legista que, após estudar a nova legislação, propôs esta quesitação a qual foi discutida com diretores do IML de Cuiabá, que a levou à direção da POLITEC, e após uma reunião de acertos o diretor da POLITEC fez tratativas junto ao Secretário de Segurança Pública, que convocou uma reunião com a Direção Geral de Polícia, o Ministério Público, a direção da POLITEC e a Direção do IML, para apreciação da proposta. Os quesitos foram aceitos. O Secretário de Segurança Pública editou norma para que eles fossem adotados em Mato Grosso.

Estes quesitos, que foram extraídos, ipsis literis, da Lei N. 12.015/2009, funcionam como uma bussola para que o perito faça seu exame sem perder o crime de vista e saiba exatamente o que tem que procurar para elaborar o laudo de forma segura e clara.

A última das linhas mestras da sexologia forense é justamente o perito oficial médico legista. Este profissional é o experto qualificado para realizar o trabalho técnico com todo o rigor que o laudo médico legal necessita para cumprir sua finalidade. O perito oficial médico legista é qualificado pelo adjetivo: legista, o que significa que ele executa seu trabalho de acordo com a legislação penal vigente. Significa que este profissional conhece com segurança: a Constituição Federal, o Código Penal Brasileiro, o Código de Processo Penal Brasileiro, o Código de Trânsito Brasileiro, a Lei das Contravenções Penais, a Lei N. 11.343/2006, que Instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD, entre outras legislações, o que lhe permite realizar, cada perícia, atendendo especificamente o que a lei que motivou o exame pericial espera que ele esclareça. O perito oficial médico legista, que realiza seu trabalho sem conhecer esta legislação, pode ser tudo, menos um perito oficial médico legista, porque ao desconhecer a legislação ele simplesmente não merece receber o qualificador: legista. Ele é remunerado pelo Estado justamente para esclarecer, exclusivamente, assunto dessa legislação. O Estado para garantir direitos essenciais individuais e coletivos necessita de uma perícia oficial que lhe ofereça um laudo técnico que tenha a capacidade de demonstrar a realidade do fato alegado. O perito oficial médico legista precisa, ainda, ter os conhecimentos extraídos da doutrina médico-legal, deve conhecer a metodologia que norteia a realização do exame, deve conhecer os elementos que tipificam cada crime, deve ter bom senso, cautela e prudência, para saber, com segurança: porque fazer, o que fazer, quando fazer, como fazer, como descrever e como fundamentar, com lógica, com técnica, com clareza e com bom senso seu laudo oficial médico legal. É isto que a sociedade espera que ele faça. Os fundamentos da sexologia forense, aqui elencados como linhas mestras da sexologia forense, são as ferramentas necessárias para a realização, com sucesso, da perícia dos crimes sexuais.


Referências bibliográficas