O artigo faz um levantamento histórico a respeito da Antropologia Forense, enquanto ciência no Brasil e mostra indicadores da necessidade do fortalecimento dessa ciência, em âmbito Nacional.

Artigos Doutrinários

NOTAS HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA FORENSE: CONTEXTO INTERNACIONAL E NACIONAL

Como citar: Paiva LA. NOTAS HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA FORENSE: CONTEXTO INTERNACIONAL E NACIONAL. Persp. 2019; 8 sup.

https://dx.doi.org/10.47005/040107

Luiz Airton Saavedra de Paiva (1)
Thais Torralbo Lopez-Capp (2)

(1) Médico Legista Classe Especial aposentado da Superintendência da Polícia Técnico-Científica de São Paulo, São Paulo-SP, Brasil
Professor Titular de Medicina Legal do Curso de Medicina do Centro Universitário São Camilo
Diretor do Instituto de Ensino e Pesquisa em Ciências Forenses – IEPCF

(2) Doutora em Ciências Odontológicas – Área de concentração em Odontologia Legal, São Paulo-SP, Brasil

RESUMO


O artigo faz um levantamento histórico a respeito da Antropologia Forense, enquanto ciência no Brasil e mostra indicadores da necessidade do fortalecimento dessa ciência, em âmbito Nacional.

ABSTRACT


This article gives an inventory of Forensic Anthropology as science in Brazil and shows how it needs to be strengthened nationwide

 

As revisões das memórias bibliográficas nos fazem perceber que apesar da longa trajetória da consolidação da Antropologia Forense enquanto ciência, no Brasil,
ainda é considerada uma ciência incipiente em processo de amplificação e sedimentação. Os achados históricos nos mostram que os estudos pioneiros em
Antropologia Física realizados por Galeno são datados do segundo século, porém foi apenas em 1501 que o médico, filósofo e teólogo, Magnus Hudnt publicou o livro intitulado “Antropologium de hominis dignitate, natura et proprietatibus, de elementis, partibus et membris humani corporis”, com o objetivo de explicar o corpo humano não apenas baseado em conceitos anatômicos ou fisiológicos, mas também utilizando uma análise filosófica e religiosa (1). Nos séculos subsequentes, os estudos em Anatomia Humana e Antropologia Física foram aprimorados (1-3), e o termo Antropologia Física foi atualizado para Antropologia Biológica, adequando-se mais fielmente ao seu conceito fundamental como o estudo do homem quanto aos preceitos biológicos.

Assim como a Antropologia, a Antropologia Biológica também apresenta subcampos para facilitar a compreensão e o direcionamento dos estudos, sendo assim
segundo a Associação Americana de Antropologia (American Anthropological Association)(4), pode-se citar: Paleoantropologia (estudo dos hominídeos antigos),
Osteologia (estudo dos ossos), Antropologia Nutricional (estudo da nutrição humana), Primatologia (estudo dos primatas), Genética das populações humanas (estudo genético das populações), Variação biológica humana (estudo da variabilidade da espécie humana), Paleopatologia (estudo das patologias dos antigos hominídeos), Bioarqueologia (estudo dos restos humanos em um contexto arqueológico) e a Antropologia Forense (aplicação dos conceitos de Antropologia biológica no âmbito jurídico).

Na Europa, o primeiro registro publicado correlacionando a análise do esqueleto humano ao contexto forense foi realizado na França, em 1755 pelo anatomista e
cirurgião Jean-Joseph Sue (1710-1792), que realizou um estudo com medidas realizadas em cadáveres de diversas idades incluindo fetos até adultos jovens para
cálculo da estatura. Posteriormente, Matthieu-Joseph-Bonaventure Orfila (1787-1853) suplementou as medidas realizadas por Jean-Joseph Sue e por muitos anos estes bancos de dados foram referência para as investigações médico-legais. Em 1859, Pierre Paul Broca (1824-1880), cientista, médico, anatomista e antropólogo francês fundou a Sociedade Antropológica “The Société d’Anthropologie” na cidade de Paris.
Posteriormente, Paul Topinard (1830-1911), Leonce Manouvrier (1850-1927), Karl Pearson (1857-1936), Ilse Schwidetzky (1907-1997), continuaram implementando os estudos na área no continente europeu39. Ressaltando o trabalho realizado por Alphonse Bertillon (1853-1914), que desenvolveu o primeiro banco de dados criminal que tinha por objetivo identificar os reincidentes utilizando 11 medidas antropométricas(5).

Nos Estados Unidos, apenas após a metade do século XIX que a Antropologia Física começou a se sedimentar enquanto carreira, porém ainda no início do século XX, não era reconhecida enquanto ciência (Stewart 1979). Nesta época apenas uma universidade americana apresentava dentre os seus programas de doutorado a obtenção do título em Antropologia Física, fato este peculiar pois, neste período, a Antropologia encontrava-se estabelecida dentro dos currículos das grandes
universidades americanas. Contudo o desenvolvimento dos estudos em identificação humana por meio da análise do esqueleto humano era realizado por anatomistas.
Segundo documentação histórica, o anatomista, Thomas Dwight (1843-1911), considerado o “Pai da Antropologia Forense Americana”, foi o primeiro cientista a
escrever diversos artigos sobre identificação humana pautado na análise do esqueleto (6-13), tendo publicado em 1878 o compêndio “The identification of the human skeleton. 
A médico-legal study
”. George Amos Dorsey (1868-1931), se destacou por ser o primeiro profissional treinado a se envolver com aspectos forenses (2,39). Em 1848 criou-se a American Association for the Advancement of Sciences (AAAS), presente até os dias atuais, com a missão de promover o avanço e edificação da ciência no mundo.
Após análise dos arquivos referentes ao número de estudos apresentados nos encontros anuais promovidos por tal instituição, no que tange a Antropologia Física, fica evidente que durante o período de 1849-1901 os estudos se concentravam principalmente nas áreas de Arqueologia e Etnologia (14). Em 1879, oficializou-se no Congresso americano a criação do Departamento de Etnografia Americana (Bureau of American Ethnology-BAE), objetivando a transferência de arquivos, registros e materiais relativos aos índios da America do Norte para o Museu Nacional da História Natural (Smithsonian Institution of National Museum of Natural History), pautado no enfoque do desenvolvimento e consolidação das pesquisas nas áreas de etnologia e arqueologia.
Por outro lado, segundo Spencer (1981), a criação do referido departamento acabou ofuscando e desacelerando o desenvolvimento da Antropologia Forense nas Américas.

Em 1881, uma grande referência para a Antropologia Física, Aleš Hrdlička (1869-1943) migrou para os Estados Unidos e em 1903 se tornou o primeiro curador do departamento de Antropologia Física da Instituição Smithsoniana do Museu Nacional da História Natural (Smithsonian Institution of National Museum of Natural History) na cidade de Washington, D.C. Em 1918, lançou a primeira edição da revista de grande renome na área “American Journal of Physical Anthropology- AJPA”(15); realizou vários estudos na área com os mais variados temas como ancestralidade e traumatologia, em 1920, publicou o trabalho intitulado “Anthropometry” The study of anthropology in the United State; e em 1930 fundou a Associação Americana de Antropologia Física
(American Association of Physical Anthropology- AAPA), além disso, auxiliou na resolução de casos do Federal Bureau of Investigation (FBI). Earnest A. Hooton (1887-1954), antropólogo físico que desenvolvia estudos na área forense, foi contratado, na época, por Hrdlička para auxiliar no treinamento dos alunos de medicina, tornou-se membro do comitê de organização da AAPA e posteriormente, em 1930, professor de tempo integral na Universidade de Harvard, e curador de somatologia do “Harvard´s Peabody Museum of Archaeology and Ethnology”. Após a morte de Aleš Hrdlička, Thomas W. Todd (1885-1938), Thomas Dale Stewart (1901-1997), Wilton Marion Krogman (1903-1987), Charles E. Snow (1910-1967), Mildred Trotter (1899-1991), John Lawrence Angel (1915-1986), Thomas McKern (1920-1974) continuaram com o trabalho pioneiro desenvolvido por Hrdlička no âmbito da Antropologia Forense(6, 7, 16-22).

Em 1935, Glaister Jr, eminente cientista e professor de Medicina Forense da University of Glascow, e Brash, professor de anatomia da University of Edinburgh,
realizam uma notável identificação de um corpo encontrado mutilado, em adiantada putrefação, no sul da Escócia, como pertencente a Isabella Ruxton, esposa de um bem situado médico indiano, Dr. Buck Ruxton, residente em Lancaster, Inglaterra. Neste caso, de grande repercussão na imprensa da época, utilizam-se pela primeira vez da técnica forense de sobreposição fotográfica crânio-facial, realizam a identificação individual de Isabella e determinam a causa de sua morte por asfixia constritiva do pescoço, conduzindo à responsabilização e condenação do marido à pena de morte(23).

Com a ausência de coleções osteológicas documentadas, o desenvolvimento de pesquisas na área ficava cada vez mais precário, fato este de suma importância até os dias atuais. A constituição de coleções de referência para estudos na área de Antropologia Forense continua sendo um desafio para os pesquisadores na área. Neste contexto, Robert J. Terry (1871-1966) estruturou uma coleção osteológica documentada, denominada Terry Collection, com 1.728 esqueletos humanos,
atualmente pertencente à Instituição Smithsoniana do Museu Nacional da História Natural. Terry contribuiu significantemente para o desenvolvimento da a Anatomia Comparada e Antropologia Física enquanto ciência, pautada na análise da variabilidade existente no corpo humano (24).

Concomitante, Carl August Hamann (1868-1930) e Thomas W. Todd (1885-1938) produziram um grande impacto na comunidade cientifica. Construíram um acervo osteológico documentado de 3.300 esqueletos e crânios humanos, 600 esqueletos e crânios de antropoides e 3.000 esqueletos e crânios de mamíferos. Tal coleção recebeu o nome de seus fundadores, Hamann-Todd Collection, atualmente sob guarda do Museu de História Natural de Cleveland. Todd, nos marcos históricos do desenvolvimento da Antropologia Forense, apresenta contribuições preponderantes no que tange ao crescimento e maturação do esqueleto humano(25). Todd foi um grande influenciador no trabalho pioneiro desenvolvido por Wilton M. Krogman, focando os conceitos da Antropologia Física para a resolução de casos forenses e desenvolvendo, dentro da academia, pesquisas na área de Antropologia Forense. Por décadas, também foi consultor de várias agências na área forense. Assim, fica patente que a consolidação da Antropologia, enquanto ciência, ocorreu meramente após a eclosão da Primeira
Guerra Mundial. Krogman lutou durante sua carreira para evidenciar a importância da antropologia física na resolução de casos forense, e a consolidação deste fato se deu após a convocação dos antropólogos físicos como membros ativos do processo de identificação dos mortos provenientes da guerra dos EUA (Snow, 1982). Em 1939, Krogman publicou o livro “Guide to the Identification of Human Skeletal Material”, referência amplamente utilizada para fomentar o processo de identificação humana e em 1962 publicou o consagrado “The Human Skeleton in Forensic Medicine”.

O período referente à Antropologia moderna iniciou-se com a criação do Departamento de Antropologia Física na Academia Americana de Ciências Forenses
(American Academy of Forensic Sciences – AAFS) em 1972, resultado do trabalho dos antropologistas forenses Ellis R. Kerkley (1924-1998) e Clyde Collins Snow (1928-2014) (6, 16). Após cinco anos, criou-se o “American Board of Forensic Anthropology” (ABFA) com o objetivo de promover a acreditação de antropologistas forenses na América do Norte. Atualmente existem diversos pesquisadores ao redor do mundo contribuindo para a evolução desta ciência, auxiliando no desenvolvimento de padrões para as diferentes populações com um objetivo em comum, auxiliar nos processos de identificação
humana. Apesar de Krogman ter influenciado de forma evidente na criação da Antropologia Forense, enquanto disciplina, foi apenas após a década de 1960 que o
número de pesquisas realizadas na área ao redor do mundo aumentou expressivamente, consolidando cada vez mais a importância desta ciência para a
identificação médico-legal, judiciária e policial (26-35).

William Marvin Bass, seguindo os ensinamentos de seu professor, Krogman, amplificou os estudos e publicações na área e se tornou um dos antropólogos forenses mais conhecidos ao redor do mundo. Fundou a primeira instituição de pesquisa na área (Forensic Antropology Research Facility) e foi pioneiro no estudo dos processos tafonômicos própios da decomposição do corpo humano, como resultado de sua atuação na investigação de uma vala comum proveniente da Guerra Civil Americana.
Fundou a “Body Farm”, um campo de estudo próximo a Universidade do Tennesse, que tem como objetivo principal entender o processo de decomposição do corpo humano.
Em 1987, publicou a primeira versão do Guia de Campo Para Identificação Humana, “Field Guide for Human Skeletal Identification”, referência utilizada até o presente.
Grande influenciador na área, Bass foi responsável pelo crescimento exponencial e fortalecimento da Antropologia Forense. Richard Jantz, foi seu discipulo desenvolvendo posteriormente um banco de dados forense, o “Forensic Data Bank”, em âmbito mundial com informações demográficas, métricas e não métricas, o qual pode ser alimentado por pesquisadores ao redor do mundo. Jantz posteriormente desenvolveu funções discriminantes para auxiliar o processo da tétrade antropológica (sexo, idade, ancestralidade e estatura), que resultou na criação do programa computacional FORDISC, que tem como propósito auxiliar no processo da estimativa da ancestralidade baseado na análise discriminante multivariada de mensurações craniométricas (36, 37).

Douglas H. Ubelaker, também é considerado um pesquisador de destaque para a Antropologia Moderna, responsável pela consolidação da antropologia forense como ciência. Em 1976 assumiu a responsabilidade pelos casos forenses do FBI no Museu Nacional da História Natural (Smithsonian Institution of National Museum of Natural History), tendo publicado desde então diversos estudos na área. Atualmente é o curador do Departamento de Antropologia do Museu Nacional de História Natural e consultor, como Antropólogo Forense, do FBI (38).

Em decorrência do grande número de pesquisadores atuando nesta área ao redor do mundo, surgiu uma tendência global para o desenvolvimento de protocolos e
regulamentações em uma tentativa de padronizar e assegurar a qualidade das perícias forenses (31-33). Além disso, existem instituições que realizam processos de certificação e acreditação de profissionais, treinamentos e encontros científicos na área da Antropologia Forense, com o objetivo de garantir e controlar a qualidade da formação profissional dos Antropólogos Forenses. Dentre estas instituições podemos citar:
Forensic Anthropology Society of Europe (FASE), The Scientific Working Group for Forensic Anthropology (SWGANTH), British Association for Forensic Anthropology (BAFA), American Board of Forensic Anthropology (ABFA), Royal Anthropological Institute (RAI) e Associacón Latinoamericana de Antropología Forense (ALAF).

A Antropologia Forense, por ser uma ciência multidisciplinar, envolve o conhecimento de diversas áreas, dentre elas podemos citar o importante papel da
Odontologia Forense nas pericias antropológicas. As primeiras evidências de utilização dos elementos dentários para identificação humana são datadas em 47-50 d.C, quando Agripina, mãe do imperador romano Nero, identificou Lollia Paulina, através da análise dos dentes (39). Nos Estados Unidos, Paul Revere praticante da Odontologia, em 1776, identificou os restos mortais do General Joseph Warren através da uma prótese fixa confeccionada por ele (33). Porém, em 1897, a Odontologia Forense passou a ter um papel fundamental no processo de identificação. Foi em meados deste ano que o doutor Oscar Amoedo Valdés (1863-1945), cubano, presidente da Sociedade Odontológica Francesa e professor da Escola Dental de Paris, desenvolveu o primeiro tratado sobre identificação usando a arcada dentária. Em 04 de maio deste mesmo ano, Amoedo, em Paris, realizou a primeira identificação odontológica. Este marco histórico da Odontologia Forense aconteceu no incêndio do Bazar da Caridade, onde morreram 126 pessoas(2), passando a desempenhar um papel fundamental nos processos de
identificação humana (40-43). Porém foi no final do século XX que a Odontologia Forense ganhou destaque internacional, fato explicado pelo fim dos processos
ditatoriais nos países emergentes, pelos avanços tecnológicos e o aumento dos desastres em massa, sejam eles decorrentes da ação de forças naturais, como os
furacões, terremotos, temporais, enchentes entre outros, ou provenientes da ação do homem ou da inventiva humana, como os incêndios, explosões, acidentes rodoviários, aeroviários, marítimos e por irradiação. Segundo Genival Veloso de França, devido aos deslocamentos em transportes coletivos cada vez mais rápidos, o emprego assustador de substâncias nocivas, o uso indiscriminado de algumas modalidades de energia e a convivência cada vez mais frequente em grandes edificações levam a conclusão de que o homem atual vive a “era do risco” (44).

Os primeiros indícios da Odontologia Forense brasileira aparecem em 1897 com a publicação do livro intitulado “Lesões dos dentes” de autoria de Nina Rodrigues. Posteriormente aparecerem outros nomes de destaque para o desenvolvimento desta ciência em âmbito nacional, dentre os quais podemos citar Henrique Tânner de Abreu, Luiz Lustosa Silva, Guilherme Oswaldo Arbenz, Valdemar da Graça Leite, Moacyr da Silva e Eduardo Daruge.

 

ANTROPOLOGIA FORENSE NO BRASIL: O CONTEXTO NACIONAL

A Antropologia Forense, entendida como um campo de conhecimento da antropologia física (antropologia biológica) aplicado ao interesse jurídico, representa
uma área de atividade de reconhecimento relativamente recente em nosso país. No Instituto Médico Legal de São Paulo, o Núcleo de Antropologia, só passa a existir como tal a partir do ano de 1999. Antes disso, funcionava como um serviço subordinado ao Núcleo de Patologia. Isto bem demonstra a crescente importância que essa atividade vem conquistando junto, não só da opinião pública, como dos responsáveis pela administração dos órgãos encarregados pelas perícias forenses.

Ao buscar os antecedentes históricos dessa atividade em nosso país, vamos encontrar os primeiros registros documentais a partir do século XIX, principalmente no acervo do Museu Nacional, possivelmente a instituição com mais longa tradição no campo da antropologia física no Brasil(45), hoje ligada à UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

O Brasil do século XIX apresentava alguns espaços onde se produzia ciência, muito antes da criação das primeiras universidades brasileiras(46). Os museus, não só no Brasil como no exterior, foram um dos espaços institucionais onde a história natural se desenvolvia como uma prática social e científica(46). Em 1818 criou-se no Rio de Janeiro o Museu Real de História Natural, tornando-se um museu metropolitano, de caráter universal, na esteira de seus congêneres criados na Europa e na América Latina, posteriormente transformado em Museu Nacional(46).

Em fins do século XIX notabilizaram-se também os importantes registros realizados por Nina Rodrigues que, num artigo publicado na prestigiosa “Gazeta Médica da Bahia”, e no “Brasil Médico” do Rio de Janeiro, em 1890, utiliza o termo “antropologia patológica”. Em uma nota apoia a iniciativa do Prof. Braz do Amaral, professor de “Elementos de Antropologia”, no “Instituto de Instrução Secundária de Salvador”, de formar uma coleção de “objetos antropológicos” – esqueletos, chumaços de cabelo e recortes de pele dos índios do estado(47). Em 1892 publica, pela primeira vez na Gazeta Médica, um artigo sob o título “Antropologia Criminal” e, em 1894 edita seu famosíssimo primeiro livro, “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil”(47).

Fato inusitado e marcante em nossa história foi o “caso Fawcett”, experiente explorador, coronel do exército inglês desaparecido na região do Xingu, no Brasil
Central, em 1925, quando se propunha, acompanhado de um filho e de um amigo deste, a encontrar tesouros de uma cidade perdida na selva. Em abril de 1951, foram desenterrados à beira do rio Culuene, um formador do Xingu, ossos que foram atribuídos, seguindo relatos indígenas obtidos com a ajuda de Orlando Villas Boas, a Fawcett. Os ossos foram periciados por duas equipes de antropólogos, uma inglesa do Royal Anthropological Institute, e outra brasileira do Museu Nacional. Ambas afastaram que se tratasse de Fawcett, um homem de 1.86 m de altura, já que as estimativas de altura do esqueleto, obtidas através de seus ossos longos foi de 1,70 m para os peritos ingleses e de 1,66 m a 1,68 m segundo laudo assinado pelo Dr. Tarcísio Messias, do Museu Nacional(48). Perdeu-se aqui uma grande oportunidade de identificação antropológica que, talvez pela grande cobertura dada pela imprensa na época, tivesse produzido o reconhecimento de que precisava em nosso país para implementar seu desenvolvimento.

Em 1985 uma descoberta da Polícia Federal atraiu a atenção da mídia internacional para nosso país. Descobriu-se que o carrasco nazista Josef Mengele,
conhecido como “Anjo da Morte”, vivera sossegadamente no Brasil, desde os anos sessenta sob identidade falsa, tendo morrido, acidentalmente afogado em Bertioga, praia do litoral norte de São Paulo em 1979. Enterrado no Cemitério de Embu das Artes, nos arredores de São Paulo, com o nome de Wolfgang Gerhard, foi então exumado e submetido à perícia antropológica nas de pendências do IML de São Paulo. Além das equipes de Antropologistas Forenses que vieram da Alemanha, dos Estados Unidos e de Israel, desempenharam importante papel os médicos legistas brasileiros José Antônio de Melo, Daniel Munhoz e Wilmes Roberto Gonçalves Teixeira, como também os odontolegistas Moacyr da Silva e Carlos Ferreira Valério Filho. A grande repercussão mundial dessa perícia serviu, sem dúvida, para conscientizar a sociedade brasileira e seus governantes da importância da aplicação forense da Antropologia Forense e contribuiu para uma maior difusão do seu ensino e pesquisa por todo o país.

Importante referência da escassa literatura brasileira no assunto, o magistral compêndio “Medicina Legal e Antropologia Forense”, editado por Guilherme Oswaldo Arbenz, eminente professor de Medicina Legal e Odontologia Legal (Universidade Mackenzie e Universidade de São Paulo) em 1988, e que, esgotado nas livrarias, é motivo de grande procura por representar ainda um marco no ensino básico da Antropologia Forense.

Finalizando, registramos a denotada competência demonstrada pelas perícias de realizadas pelo Núcleo de Antropologia Forense do IML de São Paulo, na
identificação das 199 vítimas do acidente com aeronave da TAM em julho de 2007, com a possível rapidez e presteza.

Após análise do contexto Nacional e Internacional da Antropologia Forense fica evidente a necessidade do fortalecimento desta ciência, em âmbito Nacional. A
capacitação de profissionais é de suma importância para atingirmos tal concretude e, além disso, o fomento para o desenvolvimento de pesquisas neste campo auxiliará neste processo, aproximando a academia dos serviços de identificação humana. Em relação ao contexto Internacional, a Antropologia Forense brasileira ainda se encontra muito incipiente, porém em crescimento exponencial, fato este de grande estímulo para os múltiplos profissionais que atuam nessa área.

 


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