Artigo Original

ASPECTOS DA ANÁLISE PERICIAL EM DOENÇA FALCIFORME

Como citar: Kroger FL et al. Aspectos da análise pericial em doença falciforme. Persp Med Legal Pericia Med. 2019; 4(3).

https://dx.doi.org/10.47005/040304

Recebido em 08/09/2019
Aceito em 02/10/2019

Os autores informam não haver conflito de interesse.

ASPECTS OF THE EXPERT ANALYSIS IN SICKLE CELL DISEASE

Fernanda Lima Kroger (1)

LATTES: http://lattes.cnpq.br/1225921482711960 – ORCID:  https://orcid.org/0000-0002-0233-9126

Lysla Cardoso Sudário (2)

LATTES: http://lattes.cnpq.br/1036927764552410 – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0425-3828

Olivia Franco dos Santos (3)

LATTES: http://lattes.cnpq.br/8545615311863028 – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0903-8748

Ianka Cristina Ernesto (4)

LATTES: http://lattes.cnpq.br/3425620376349839 – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9224-375X

Marina Schuffner Silva (4)

LATTES:  http://lattes.cnpq.br/1785784479363613 – ORCID:  https://orcid.org/0000-0002-6688-5097

Natália Cristina Sales de Paula (5)

LATTES: http://lattes.cnpq.br/3340558267222162 – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2178-3484

Daniela de Oliveira Werneck Rodrigues (5)

LATTES: http://lattes.cnpq.br/0213828680695864 – ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3062-2954

Raquel Barbosa Cintra (6)

LATTES: http://lattes.cnpq.br/0110754349138042 -ORCID: http://orcid.org/0000-0001-9838-1312

(1) Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo-SP. (autor principal)

(2) Hospital e Maternidade Therezinha de Jesus, Juiz de Fora-MG. (co-autor)

(3) Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, Juiz de Fora-MG. (co-autor)

(4)  Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC, Juiz de Fora-MG . (co-autor)

(5) Fundação Hemominas, Belo Horizonte-MG. (co-autor)

(6) Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e Mogi das Cruzes, Mogi das Cruzes-SP. (co-autor)

E-mail: danielawerneckhemato@hotmail.com

RESUMO

A Doença Falciforme (DF) é uma patologia hereditária monogênica autossômica recessiva com alta prevalência no Brasil, inserida na Classificação Internacional das Doenças (CID 10) 10ed no Capítulo III: Doenças do sangue e dos órgãos hematopoiéticos grupo D57. Segundo o Ministério da Saúde, há 25 a 30 mil casos de DF, com incidência de 3.500 casos/ano. A maioria dos portadores de DF evolui com episódios de agudização que podem levar a internações prolongadas, períodos de incapacidade laboral e complicações severas que resultam em afastamento laborativo permanente e aposentadoria por invalidez. O objetivo deste trabalho foi verificar o número de aposentadorias pelo CID 10: D57 e estudar elementos técnicos que possam auxiliar o perito na elaboração do laudo previdenciário para concessão de auxílio-doença e aposentadoria na DF. Foi realizado um levantamento bibliográfico nas bases de dados científicos, uma busca de dados quantitativos disponíveis nos anuários do Ministério da Previdência Social e uma análise documental metodológica conforme Bardin. No período de janeiro a junho de 2019, de acordo com dados do Instituto Nacional do Seguro Social, o total de aposentadorias por invalidez foi de 168.749, sendo 2,96% concedidas com o CID 10 D57. Considerando a alta prevalência da DF, o que a torna um problema de saúde pública, o aspecto previdenciário é um assunto de extremo interesse. A história clínica, o exame pericial, subsidiados por relatórios do médico assistente, são a base para a conclusão da perícia em relação à limitação laboral, pois o diagnóstico de DF por si só não implica incapacidade.

Palavras-chave: doença falciforme, absenteísmo, licença médica, laudo pericial, medicina legal.

ABSTRACT

Sickle cell disease (SCD) is an autosomal recessive monogenic hereditary pathology with high prevalence in Brazil, inserted in the International Classification of Diseases (CID 10) 10th edition, Chapter III: Diseases of blood and hematopoietic organs group D57. According to the Ministry of Health there are 25 to 30 thousand cases of SCD, with an incidence of 3,500 cases/year. Most patients with SCD have developed acute episodes that can lead to prolonged hospitalizations, periods of disability and severe complications that result in permanent work absence and disability retirement. The objective of this research was to verify the number of retirements by CID 10: D57 and the study of technical elements that may assist the expert in the preparation of the social security medical report for granting sickness benefit and disability retirement in SCD. A bibliographic survey was performed in the scientific databases, a search of quantitative data available in the yearbooks of the Ministry of Social Security and a methodological documentary analysis proposed by Bardin. From January to June 2019, according to data from the National Institute of Social Security, total disability pensions amounted to 168,749, of which 2.96% were granted with CID 10 D57. Considering the high prevalence of SCD, which makes it a public health problem, the social security aspect is a matter of extreme interest. Clinical history, expert examination, supported by reports from the attending physician, are the basis for the conclusion of the expertise regarding labor limitation, as the diagnosis of SCD alone does not imply disability.

Key words: sickle cell disease, absenteeism, medical leave, expert report, forensic medicine.

1. INTRODUÇÃO

A doença falciforme (DF) é doença hereditária, monogênica autossômica recessiva causada por mutação pontual que leva à troca de ácido glutâmico pela valina na sexta posição da cadeia de ß-globina. O defeito genético produz alterações na hemoglobina fazendo com que, em baixas tensões de oxigênio, essas moléculas sofram um processo de polimerização e perda da flexibilidade típica dos eritrócitos, deixando-os com aspecto de “foice”. Essas hemácias falcizadas se aglomeram no interior dos capilares sanguíneos, causando obstrução parcial ou total da luz vascular, vaso-oclusão, processos inflamatórios pró-trombóticos e disfunção endotelial (1, 2). Os sinais e sintomas clínicos da DF estão relacionados à anemia grave, complicações vaso-oclusivas e hemólise crônica, sendo a crise vaso-oclusiva a principal causa de afastamento e absenteísmo laboral (1). Atualmente, avanços no tratamento determinaram a redução da morbimortalidade e aumento da sobrevida, com a expectativa de vida na DF encontrando-se entre 45 e 50 anos (3).

O termo DF é designado a um grupo com desordens hematológicas, caracterizado pela presença da hemoglobina (Hb) S em homozigose (Hb SS) – também chamada de Anemia Falciforme (AF), ou em heterozigose associado com outras hemoglobinas variantes (Hb SC, Hb SD-Punjab, etc.), e, ainda, em interação com as talassemias (Hb S/β0 talassemia, Hb S/β+ talassemia, Hb S/α talassemia) (4). Essas hemoglobinopatias constituem as enfermidades genéticas de maior prevalência no mundo, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), em torno de 5% de toda a população mundial (2,5). A AF é a doença hereditária mais prevalente no Brasil. Segundo dados do Ministério da Saúde, há de 25 a 30 mil casos de anemia falciforme com 3.500 casos novos por ano. Em relação ao traço falciforme (Hb AS), a prevalência varia de 4% na população geral e entre 6 a 10% nos afrodescendentes. No Brasil, nascem 200 mil crianças portadoras da hemoglobina S (Hb AS) anualmente (6, 7).

Alguns determinantes genéticos e sociais têm sido estudados para correlacionar a variabilidade clínica e fenotípica da doença, tais como tipo de DF, níveis de hemoglobina fetal, haplótipos da cadeia de beta-globina, coexistência com a talassemia, polimorfismo de nucleotídeo único (SNPs), etc. (8). A AF é uma doença que predomina na população de baixa renda e de grande vulnerabilidade social. Entre os fatores adquiridos mais importantes estão o nível socioeconômico e o grau de escolaridade dos cuidadores e dos pacientes, com as consequentes variações nas qualidades de alimentação, de prevenção de infecções e acesso à assistência médica e à rede de saúde pública (9).

Em estudo realizado por Paiva e Silva (10), no Hemocentro de Campinas (Unicamp), foram entrevistados 80 pacientes com AF e evidenciou-se que o nível socioeconômico era extremamente baixo, com uma renda per capita inferior a um salário mínimo e meio em 85% dos pacientes. Dentre esses, 84% tinham o primeiro grau completo ou incompleto e 10% tinham o segundo grau completo ou incompleto. Essa estatística ainda se mantém nos dias atuais. Em outro estudo realizado por Rodrigues et al., na Fundação Hemominas de Juiz de Fora-MG, em 2015, com 110 pacientes, foi encontrado um perfil socioeconômico semelhante, com renda per capita de até dois salários mínimos em 72,8% dos casos e 60,9% dos cuidadores tinham apenas ensino fundamental completo (11).

As manifestações clínicas da DF costumam ocorrer a partir dos primeiros seis meses de vida e se estendem durante toda a vida do paciente, apresentando grande variabilidade. O problema clínico mais frequente é a crise dolorosa vaso-oclusiva, principal causa de admissão hospitalar (12). Nos pacientes adultos, é comum a necrose asséptica da cabeça do úmero ou do fêmur, causada pela isquemia óssea crônica em territórios pouco vascularizados. Atinge aproximadamente metade dos pacientes até 35 anos de idade (13).

A síndrome torácica aguda é a segunda causa mais comum de internação hospitalar. A gravidade varia, mas 13% dos pacientes necessitam de ventilação mecânica e 3% deles vão a óbito. As úlceras de membros inferiores são complicações frequentes em adultos com DF. Ocorrem entre 8% a 10% dos pacientes homozigotos, e nas áreas tropicais há relatos de incidência maior de 50% (14).

O Acidente Vascular Encefálico (AVE) é uma das complicações relacionadas à alta morbidade e mortalidade da DF. Aproximadamente 11% dos pacientes com DF vão apresentar um episódio de AVE isquêmico antes dos 20 anos de idade; o AVE hemorrágico é consequência do rompimento dos pequenos vasos de circulação colateral após lesões isquêmicas, denominadas moyamoya. Ocorre mais comumente após os 20 anos, com média de idade de 31,7 anos. A mortalidade oscila entre 24% a 50% (15). O dano renal é quase inevitável na DF e decorre de infarto renal e necrose de papila, além de fibrose com glomeruloesclerose segmentar e focal (16). As manifestações oculares mais impactantes na DF são representadas pela retinopatia, que pode evoluir para amaurose (17). Os pacientes podem apresentar déficits visuais e auditivos por alterações neurossensoriais (13, 17).

A DF faz parte das doenças inseridas na Classificação Internacional das Doenças 10 ed (CID-10), estando no Capítulo III, no qual constam as “Doenças do sangue e dos órgãos hematopoiéticos e alguns transtornos imunitários”. O foco especial deste artigo será dado aos transtornos falciformes, codificados na CID-10 como D57.

O direito ao trabalho está assegurado a todos os cidadãos (Artigo XXIII da Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Brasil pelo artigo 6º da Constituição Federal de 1988). Os portadores de DF têm sido privados do seu direito ao trabalho, privação legitimada por decisão médica que equivocadamente leva à consideração apenas o fato de o candidato apresentar determinada doença. Tais indivíduos compõem uma parcela economicamente ativa na sociedade brasileira e, devido à patologia de base, em algum momento de sua vida, apresentarão manifestações clínicas que determinarão o afastamento do trabalho, ocasião em que serão avaliados em perícia médica previdenciária no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para definir sua capacidade laboral.    

A DF é uma enfermidade crônica que, embora tratável, apresenta alto grau de sofrimento para o paciente e seus cuidadores, em decorrência de internações frequentes e por apresentarem diversas doenças associadas e danos orgânicos severos. Suas complicações comprometem a qualidade de vida do paciente e podem levar à incapacidade laborativa (18). Sendo assim, tais pacientes passarão por perícia previdenciária e o médico perito do INSS defrontar-se-á com o quesito básico: A doença falciforme acarreta incapacidade laborativa?

2.       OBJETIVO

Verificar o número de aposentadorias pelo CID 10: D57 e identificar os elementos técnicos que possam auxiliar o perito na elaboração do laudo médico pericial previdenciário de concessão de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez em portadores da DF.

3.       METODOLOGIA

O presente estudo mescla a revisão bibliográfica e análise documental na busca de elementos que possam facilitar e padronizar a avaliação pericial na doença falciforme. Foi realizada pesquisa bibliográfica nos principais bancos de dados online, SciELO (Scientific Eletronic Library Online), PubMed (National Library of Medicine), LILACS e BIREME, no período de 1992 a 2019. Foram incluídos na análise os artigos científicos escritos nas línguas inglesa e portuguesa, com exclusão de estudos que discursavam sobre crianças com DF. Para o levantamento, foram usadas as palavras-chave obtidas por meio dos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS e MeSH): Doença Falciforme, Absenteísmo, Licença Médica, Laudo Pericial, Medicina Legal. A análise documental foi conduzida através da metodologia de Bardin, nos anuários de informações epidemiológicas dos Benefícios Concedidos (subseção A da Previdência Social – Benefícios Concedidos) extraídas dos bancos de dados do Ministério da Previdência Social no período de janeiro a junho de 2019, para a verificação do número de aposentadorias pelo CID 10: D57 e nos manuais de DF sobre aspecto laboral. A interpretação de conteúdo conforme Bardin busca representar de forma condensada as informações provenientes dos elementos pesquisados, permitindo elaborar um documento secundário técnico com o máximo de informações pertinentes sobre a temática em foco, no caso DF auxiliando na criação de um formulário de orientação e avaliação de laudo pericial, proposta deste estudo. Para Bardin, a análise documental é “uma operação ou um conjunto de operações visando representar o conteúdo de um documento sob a forma diferente do original, a fim de facilitar, num estado ulterior, a sua consulta e referenciação”. 

4.       RESULTADOS

Foram encontrados e analisados 40 artigos nacionais e internacionais, além de manuais e normas da legislação. O anuário estatístico da Previdência Social (19-21) só permite a pesquisa sobre a quantidade de benefícios concedidos com relação à CID-10, capítulo III, que abrange “doenças do sangue e do tecido hematopoiético e alguns transtornos imunitários”, não sendo possível sua busca exclusivamente para “transtornos falciformes”, representado pela CID-10 D57.

Através de pesquisa realizada no site da previdência social foi encontrado o número de aposentadorias concedidas por invalidez nos anos de 2010 (183.678), 2011 (183.301), 2012 (182.818), 2013 (193.562), 2014 (189.651), 2015 (161.850), 2016 (169.575) e 2017 (202.481). Em relação ao auxílio-doença, foram concedidos em 2010: 1.900.728; 2011: 2.022.613; 2012: 2.158.346; 2013: 2.273.074; 2014: 2.328.151; 2015: 1.828.337; 2016: 2.190.808, e em 2017: 1.988.169 benefícios.

Os dados referentes às aposentadorias concedidas, auxílios-doença, no período de 2010 a 2017, por doenças hematológica, Capítulo III do CID 10 em relação ao sexo e valor financeiro da aposentadoria são apresentados nas Tab. 1 e 2:

AnosAposentadorias por invalidez concedidas
QuantidadeValor (R$ mil) 
TotalSexoTotalSexo 
MasculinoFemininoMasculinoFeminino 
20102351468919513560 
20112411439822514481 
201222211310922414084 
20132091208923415183 
2014246137109286170116 
201514977721739677 
20161809684225125100 
2017234111123329171158 

Tab. 1: Quantidade e valor de aposentadorias (urbanas e rurais) por invalidez concedidas, por sexo do segurado, segundo capítulos da CID- 2010/2017.

Fonte: Ministério da Previdência Social, 2012 (19), 2015 (20) e 2017 (21).

AnoQuantidade de auxílios-doença concedidos
TotalSexo
MasculinoFeminino
2010368415592125
2011359814792119
2012380214872315
2013399015792411
2014396115972364
2015306612501816
2016374514712274
2017354914092140

Tab. 2: Quantidade de auxílios-doença (urbanos e rurais) concedidos, por clientela e sexo do segurado, segundo capítulos da CID- 2010/2017.

Fonte: Ministério da Previdência Social, 2012 (19), 2015 (20) e 2017 (21).

O número de aposentadorias por invalidez pelo CID D 57, no período de janeiro a junho de 2019, foi extraído dos relatórios nacionais pela equipe do Ministério da Previdência Social e INSS e repassados aos autores deste estudo (Tab. 3).

Aposentadorias por invalidez concedidas
PeríodoTodas as doençasCID 10 D57
Total (de 2010 a 2017)3.573.621910
Janeiro a Junho/2019168.74950

Tab. 3: Quantitativo de aposentadorias por invalidez concedidas pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Fonte: Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), 2019.

O percentual de aposentadorias por invalidez concedidas dentro do CID 10 D57, em relação a todas as doenças no período de 2010 a 2017, é de 2,55%; considerando o período de janeiro a junho de 2019, foi de 2,96%.

5.       DISCUSSÃO

A DF é uma doença com alta prevalência na população brasileira e, entre os anos de 2010 a 2017, foram concedidos em média 3.390 auxílios-doença anualmente pelo Ministério da Previdência Social para o grupo da CID-10, ao qual se insere a DF, e aproximadamente 185 aposentadorias por invalidez por ano para o mesmo grupo (19-21).

Os benefícios concedidos para aposentadoria por invalidez pela CID-10 capítulo III corresponderam, em média, a 0,10% do total concedido em 2010, 2011 e 2012, e 0,11% de 2013 a 2017. Com relação aos benefícios por auxílio-doença, corresponderam a 0,17% em 2010, 2013, 2014, 2015 e 2016; 0,16% em 2011 e 2012 e 0,18% em 2017 (19-21).

A existência de doença ou lesão não significa incapacidade. Várias pessoas portadoras de DF com lesões definidas podem e devem trabalhar. Entretanto, se houver um agravamento, seja de natureza anatômica, funcional ou de esfera psíquica, as lesões inicialmente limitantes podem se tornar incapacitantes (22).

Com relação às internações por DF, o estudo de Loureiro, em 2005 (23), deixou claro que as internações se concentram em faixas etárias jovens, revelando o grande impacto social da doença. A causa mais comum de admissão hospitalar foi a crise vaso-oclusiva (24), segundo Cronin, em 2019. O tempo médio de permanência no hospital encontrado não foi elevado, sendo que a crise vaso-oclusiva é resolvida em média em cinco dias (23). Sendo assim, tal complicação não permite benefício previdenciário.

As diversas complicações decorrentes da DF podem gerar, de acordo com a gravidade, a duração e a possível sequela, uma incapacidade que pode ser total ou parcial, temporária ou definitiva. Sendo assim, as complicações podem permitir a liberação de gozo de benefício previdenciário do tipo auxílio-doença ou ainda aposentadoria por invalidez.

Durante a avaliação pericial, verifica-se a frequência das crises álgicas, por meio de anamnese, sumários de internação hospitalar e relatórios do hematologista assistente, bem como o tipo de trabalho que o periciando exerce. Trabalhos pesados e em temperaturas elevadas, por exemplo, podem facilitar o processo de desidratação celular, bem como os trabalhos em situações de baixa oxigenação que também favorecem a hipóxia tecidual e consequente processo de vaso-oclusão (8). O médico perito deve levar em conta que as crises são mais frequentes nos portadores da forma homozigota da doença (Hb SS).

O AVE é uma das complicações relacionadas à alta morbidade e mortalidade da DF com repercussões físicas e neuropsicológicas que levam ao prejuízo de habilidades motoras, alterações cognitivas, diminuição da qualidade de vida e pode determinar a incapacidade laboral (15, 25).

As úlceras maleolares são extremamente dolorosas, de difícil resolução e podem ser únicas ou múltiplas com risco de osteomielite. A recorrência é frequente, a cicatrização é lenta e respondem mal ao tratamento, portanto, pode levar à incapacidade laboral, por vezes temporária, mas, dependendo da frequência que elas aparecem e dos cuidados do portador, podem gerar até uma incapacidade parcial e permanente (14).

É importante avaliar o grau de comprometimento físico e correlacioná-lo com a atividade laboral, bem como avaliar se o periciando terá ou não dificuldade em sua locomoção até o local de trabalho. O perito pode, após elucidar as complicações e sequelas que o periciando apresenta por meio de anamnese, exame físico e relatórios do médico assistente, fazer a avaliação da atividade laboral e tentar verificar alguns elementos importantes, como exposição aos fatores de risco que são hipóxia, desidratação, frio e calor excessivos, possíveis lesões mecânicas, carga osteomuscular intensa, limites de amplitude articular, exigências cognitivas e fatores psicossociais para o trabalho.

No Brasil, 85% dos doentes falciformes adultos têm baixa escolaridade. Os poucos que conseguem ingressar no mercado de trabalho desenvolvem tarefas que requerem esforço físico, sendo incompatível com a doença (26). As famílias são de baixo nível socioeconômico e apresentam dificuldades de acesso e inclusão, determinando situação de vulnerabilidade social (27, 28).

Além das diversas complicações que a doença falciforme pode causar, ainda tem, como agravante, o baixo nível socioeconômico presente em seus portadores, apontando para o fato de a maioria deles exercerem atividades laborais que exigem aptidão física (29) que, muitas vezes, não são compatíveis com as sequelas que apresentam no momento da perícia médica, cabendo então ao perito avaliar se aquela sequela resultará em morte, cronificação estabilizada, piora temporária ou sequela definitiva.

A maioria dos portadores de DF apresenta períodos de agudização de sua doença que muitas vezes podem levar a internações prolongadas e consequentes períodos de incapacidade laboral (30). Em alguns casos, podem apresentar complicações que levam à incapacidade permanente e consequente aposentadoria por invalidez. Essa informação fica evidente ao se analisar que a quantidade de auxílio-doença em 2017 foi de 3.549 benefícios concedidos, enquanto a de aposentadoria por invalidez, no mesmo ano, foi de 234 concedidos (21).

A determinação da incapacidade decorrente da doença não é uma atividade fácil. O perito deve estar informado sobre as condições de acesso ao trabalho e tipos de atribuições laborais exigidas para determinar se existe a incapacidade, se ela é temporária ou definitiva, e ainda se for temporária, por quanto tempo o periciando deve permanecer afastado. As limitações sociais, a dor e as outras manifestações clínicas distanciam o paciente com DF da dinâmica da sociedade capitalista e produtiva (29).

Os autores elaboraram uma proposta de formulário de avaliação (Quadro1), conforme metodologia de Bardin (31), contendo elementos técnicos, baseados nas manifestações clínicas e nas leis que regem a concessão dos benefícios previdenciários, que devem ser levados em consideração ao avaliar o impacto da DF no exercício profissional com objetivo de auxiliar o laudo pericial.

TIPO DE COMPROMETIMENTODETERMINA INCAPACIDADE LABORAL?
SIMNÃO
DEFICIÊNCIA FÍSICA – alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções.

 

ÚLCERA DE PERNA intratável com comprometimento de marcha e risco de porta de entrada para infecções

OSTEONECROSE OU NECROSE AVASCULAR, DANO ARTICULAR com comprometimento grave da movimentação de quadril e ombro.

  
DEFICIÊNCIA AUDITIVA perda bilateral, parcial ou total, de 41 decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma na MÉDIA das frequências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz, e 3.000Hz;  
DEFICIÊNCIA VISUAL – cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais o somatório da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor de 60°; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores.

 

Retinopatia

  
DEFICIÊNCIA MENTAL – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: a) comunicação, b) cuidado pessoal, c) habilidades sociais, d) utilização dos recursos da comunidade, e) saúde e segurança, f) habilidades acadêmicas, g) lazer, e h) trabalho.

 

AVC PRÉVIO

  
DEFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA  
COMPLICAÇÕES PULMONARES com hipertensão pulmonar severa com insuficiência respiratória ou cor pulmonale.  
INSUFICIÊNCIA CARDÍACA GRAVE   
INSUFICIÊNCIA HEPÁTICA GRAVE   

Quadro 1. Proposta de formulário técnico sugerido pelos autores: adaptada pelos autores da fonte Concessão de Passe Livre Interestadual, Lei nº 8.899, de 29/06/1994, Decreto nº 3.691, de 19/12/2000 e Portaria nº 410/GM/MT de 27/11/2014. ATESTADO DA EQUIPE MULTIPROFISSIONAL DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE – SUS. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Atenção à Saúde.

6.       CONCLUSÃO

A presença de DF não implica por si só incapacidade para o trabalho. A fragilidade do sistema de apoio social em superar os limites que a doença impõe será o grande desafio do médico perito. Entretanto, por se tratar de doença crônica com diversas complicações, a avaliação médico-pericial deve abordar as condições médicas, com base na anamnese, exame físico completo, incluindo exame neurológico e ortopédico, e relatório do médico assistente, além das condições ocupacionais, pois, trabalhos que demandam esforço físico, por exemplo, podem provocar ou ser fator de risco para as crises de vaso-oclusão características da doença. O desconhecimento dos profissionais sobre a resolutividade da assistência implica a ampliação da iniquidade social (29). Somente uma detalhada avaliação clínica, considerando todas as variabilidades associadas com o agravo e o desempenho profissional, permite conclusões fundamentadas.

A compreensão da interligação de vários fatores de ordem biológica, psicológica, social e do ambiente físico é que vai trazer ao médico perito subsídios para avaliar a incapacidade laboral do indivíduo com Doença Falciforme. É necessária a criação de formulários padronizados e validados para definir a incapacidade definitiva ou temporária dessa população que apresenta inúmeras complicações sistêmicas.

AGRADECIMENTOS

João Bosco Carvalho Ferreira e Renata de Paula Rodrigues (INSS).


Referências bibliográficas

  1. Bunn HF. Pathogenesis and treatment of sickle cell disease. N Engl J Med. 1997; 337(11): p762-769. 10.1056/NEJM199709113371107
  2. Naoum PC. Hemoglobinopatias e Talassemias. São Paulo: Sarvier; 1997.
  3. Araujo OM, Ivo ML, Ferreira Júnior MA, Pontes ER, Bispo IM, Oliveira EC. Survival and mortality among users and non-users of hydroxyurea with sickle cell disease. Rev Lat Am Enfermagem. 2015; 23(1): p67-73. http://dx.doi.org/ 10.1590/0104-1169.3385.2526.
  4. Murao M, Ferraz MHC. Traço falciforme – heterozigose para hemoglobina S. Rev Bras Hematol Hemoter. 2007;29(3): p223-225. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-84842007000300006.
  5. Bandeira FMGC, Bezerra MAC, Santos MNN, Gomes YM, Araújo AS, Abath FGC. Importância dos programas de triagem para o gene da hemoglobina S. Rev Bras Hematol Hemoter. 2007; 29(2): p179-184. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-84842007000200017.
  6. Cançado RD, Jesus JA. A Doença Falciforme no Brasil. Rev Bras Hematol Hemoter. 2007; 29(3): p203-206.http://dx.doi.org/10.1590/S1516-84842007000300002.
  7. Arduini G, Rodrigues L, Marqui A. Mortality by sickle cell disease in Brazil. Rev Bras Hematol Hemoter. 2017; 39(1): p52-56.http://dx.doi.org/10.1016/j.bjhh.2016.09.008.
  8. Naoum PC. Interferentes Eritrocitários e Ambientais na Anemia Falciforme. Rev Bras Hematol Hemoter. 2000; 22(1): p5-22. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-84842000000100003.
  9. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Manual de Diagnóstico e Tratamento de Doenças Falciformes. Brasília (DF): Agência Nacional de Vigilância Sanitária; 2002.
  10. Paiva e Silva RB, Ramalho AS, Cassorla RMS. A anemia falciforme como problema de saúde pública no Brasil. Rev Saúde Púb. 1993; 27(1): p54-58. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89101993000100009.
  11. Rodrigues DO, Ribeiro LC, Sudário LC, Teixeira MT, Martins ML, Pittella AM, et al. Genetic determinants and stroke in children with sickle cell disease. J Pediatr (Rio J). 2016; 92: p602-608. http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2016.01.010.
  12. Mousinho-Ribeiro RC, Cardoso GL, Sousa IEL, Martins PKC. Importância da avaliação da hemoglobina fetal na clínica da anemia falciforme. Rev Bras Hematol Hemoter. 2008; 30(2): p136-141.http://dx.doi.org/10.1590/S1516-84842008000200012.
  13. Lonergan GJ, Cline DB, Abbondanzo SL. Sickle cell anemia. Radiographics. 2001; 21: p971-994. http://dx.doi.org/10.1148/radiographics.21.4.g01jl23971.
  14. Paladino SF. Úlcera de membros inferiores na anemia falciforme. Rev Bras Hematol Hemoter. 2007; 29(3): p288-290.http://dx.doi.org/10.1590/S1516-84842007000300019.
  15. Angulo IL. Acidente vascular cerebral e outras complicações do Sistema Nervoso Central nas doenças falciformes. Rev Bras Hematol Hemoter. 2007; 29(3): p262-267. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-84842007000300013.
  16. Rees DC, Williams TN, Gladwin MT. Sickle-cell disease. Lancet. 2010; 376: p2018-2031.http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(10)61029-X.
  17. Vilela RQB et al. Alterações oculares nas doenças falciformes. Rev Bras Hematol Hemoter. 2007; 29(3): p285-287.http://dx.doi.org/10.1590/S1516-84842007000300018.
  18. Gill KM, Phillips G, Williams DA. Sickle cell disease pain: relation of coping strategies to adjustment. J Consult Clin Psychol. 1989; 57(6): bp725-731. http://dx.doi.org/10.1037//0022-006x.57.6.725.
  19. Ministério da Previdência Social. Anuário estatístico da Previdência Social. Brasília (DF): DATAPREV; 2012.
  20. Ministério da Fazenda. Secretaria de Previdência. Anuário Estatístico da Previdência Social. Brasília (DF): MF/DATAPREV; 2015.
  21. Ministério da Fazenda. Secretaria de Previdência. Anuário Estatístico da Previdência Social. Brasília (DF): MF/DATAPREV; 2017.
  22. Brasil. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Secretaria de Recursos Humanos. Portaria nº 797 de 22 de março de 2010. Institui o Manual de Perícia Oficial em Saúde do Servidor Público Federal. Diário Oficial da União, Brasília (DF); 2010.
  23. Loureiro MM, Rozenfeld S. Epidemiologia das internações por doença falciforme. Revista Saúde Pública. 2005;39(6):p943-949.http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102005000600012.
  24. Cronin RM, Hankins JS, Byrd J, Pernell BM, Kassim A, Adams-Graves P, et al. Risk factors for hospitalizations and readmissions among individuals with sickle cell disease: results of a U.S. survey study. Hematology. 2019; 24(1): p 189-198. http://dx.doi.org/10.1080/16078454.2018.1549801.
  25. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada. Doença falciforme: condutas básicas para tratamento. Brasília (DF), Brasil: Ministério da Saúde; 2012.
  26. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Hospitalar e de Urgência. Doença falciforme: orientações básicas no espaço de trabalho. Brasília (DF), Brasil: Ministério da Saúde; 2014.
  27. Figueiro AVM, Ribeiro RLR. Vivência do preconceito racial e de classe na doença falciforme. Saúde Soc. 2017; 26(1): p88-99. http://dx.doi.org/10.1590/s0104-12902017160873.
  28. Cunha JHS, Monteiro CF, Ferreira LA, Cordeiro JR, Souza LMP. Papéis ocupacionais de indivíduos com anemia falciforme. Rev Ter Ocup Univ São Paulo. 2017; 28(2): p230-238.http://dx.doi.org/10.11606/issn.2238-6149.v28i2p230-238.
  29. Barroso LMFM. Entraves na concretização das políticas e direito à saúde para as pessoas com anemia falciforme. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Universidade Federal de Pernambuco. CCSA; 2017. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/28416.
  30. Cruz SV, Martelli DRB, Araújo MX, Leite BGL, Rodrigues LAM, Júnior HM. Avaliação da qualidade de vida em pacientes adultos com anemia falciforme no norte de Minas Gerais Brasil. Rev Med Minas Gerais. 2016; 26(5): p23-30.
  31. Bardin L. L’Analyse de contenu. Editora: Presses Universitaires de France, 1977.