Os autores informam não haver conflito de interesse.
THE SIMPLIFIED TECHNICAL TEST FROM THE PERSPECTIVE OF LEGAL MEDICINE AND MEDICAL EXPERTISE
José Jozefran Berto Freire (1)
http://lattes.cnpq.br/5765442081508009 – ID ORCID: 0000-0003-1817-9427
Rosa Amélia Andrade Dantas (2)
http://lattes.cnpq.br/3392433906599085 – ID ORCID: 0000-0003-1675-7158
Eduardo Dantas (3)
http://lattes.cnpq.br/9527419558749302 – ID ORCID: 0000-0002-8573-995X
(1) Universidade Estadual de Pernambuco, Recife-PE, Brasil (autor principal)
(2) Universidade Federal do Sergipe, Aracaju-SE, Brasil (autor principal)
(3) Advogado especialista em direito médico, Recife-PE, Brasil (autor principal)
E-mail: jjbertofreire@gmail.com
RESUMO
As respostas em perícias médicas dependem de uma análise técnica e objetiva e geram a necessidade de construir prova de caráter científico, objetiva, clara, distinta e demonstrável. Esse artigo visa analisar o artigo 464 do Código de Processo Civil-CPC/2015 sobre a Prova Técnica Simplificada sob a ótica da atividade médico pericial. Realizou-se uma revisão bibliográfica, através das palavras-chave “prova pericial”; “prova técnica simplificada”; “perícia médica”; “perícia em medicina legal” e “perícia médica”, nas bases de dados Google Scholar e Periódicos Capes, e na sequência a análise do artigo 464 do CPC. A pesquisa bibliográfica realizada sobre o tema não evidenciou trabalhos científicos publicados na área de medicina de forma geral, ou na especialidade de medicina legal e perícia médica, que abordassem as alterações ocorridas no CPC 2015. A prova pericial na ótica da medicina legal e perícia médica é concreta, porém está inserida num contexto de amplitude variável. Esse contexto tem, necessariamente, fundamentos, no que se denomina tecnicamente, de vestígios e indícios. Entende-se aqui como necessário: aquilo que não pode deixar de ser (15). Sobre a prova técnica simplificada, um problema que se apresenta é a adequada designação do que seja “menor complexidade”. Nos trabalhos analisados não encontramos referência a metodologia cientifica, geral ou específica, que embase a realização da prova técnica simplificada, nem sua definição técnica ou científica. Nas conclusões, apresentamos algumas precauções para o agir do médico pericial, considerando as argumentações elencadas no artigo 464 do CPC.
Palavras-chave: prova técnica simplificada, medicina legal, Código de Processo Civil -CPC/2015, artigo 464, perícia médica.
ABSTRACT
The answers in medical expertise depend on a technical and objective analysis, and generates the need to build proof of scientific, objective, clear, distinct and demonstrable character. This article aims to analyze article 464 of the Code of Civil Procedure-CPC/2015 on the Simplified Technical Proof from the perspective of expert medical activity. A literature review was carried out using the Keywords “expert evidence”; “simplified technical proof”; “medical expertise”; “expertise in legal medicine” and “medical expertise”, in Google Scholar and Capes Journals databases, and following the analysis of Article 464 of the CPC. The bibliographic research carried out on the subject did not show scientific papers published in the area of medicine in general or in the specialty of legal medicine and medical expertise, which addressed the changes that occurred in CPC/2015. The expert evidence from the perspective of legal medicine and medical expertise is concrete, but it is inserted in a context of large amplitude. That context necessarily has grounds, as technically, of traces and indications. It is understood here as necessary: what it cannot fail to be (15). On the simplified technical proof, a problem that presents itself is the proper definiton of what “less complexity” means. In the analyzed studies we did not find reference to the general or specific scientific methodology, which supports the performance of the simplified technical proof, nor its technical or scientific definitions. In the conclusion, we present warnings for expert physician practices considering arguments that are listed in article 464 of the CPC.
Keywords: simplified technical proof, legal medicine, Code of Civil Procedure-CPC/2015, legal proof.
1. INTRODUÇÃO
O mundo ocidental atravessa tempos de crise e de incertezas, necessitando cada vez mais de pontos de inflexão e de reflexão para atingir segurança nas relações humanas e, dentre elas, nas que resultam em conflitos. Nessa busca os contrassensos, os contrapontos se põem.
No Brasil, um fenômeno que não pode ser ignorado é o da judicialização, destacando-se aquela que tem por objeto as demandas no campo da saúde, sendo necessária a busca por respostas que dependem de uma análise técnica e objetiva, afim de prover segurança para todos os atores envolvidos nos processos. A perícia médica, nesse contexto, surge como uma garantia da qualidade das provas, evitando questionamentos baseados em notícias falsas, versões deturpadas, em interpretação que modifica os fatos, os juízos fundados a partir de elementos frágeis.
Há essa necessidade básica na atualidade, especialmente no julgar, e essa necessidade é o provar o que se apresenta. O trabalho do médico perito é essencialmente o construir a prova de caráter científico, objetiva, clara, distinta, demonstrável.
O Código de Processo Civil (Lei 13.105 de 16 de março de 2015) (1), alberga no seu conteúdo capítulos atinentes às provas, ou seja, o cerne do próprio Direito Processual. Entre os artigos 369 e 484, estão contidas as regras dos elementos probatórios necessários para disciplinar o procedimento de análise e produção de prova. Na seção X, entre os artigos 464 e 480, se encontra o ordenamento da Prova Pericial.
A prova é via, caminho que a inteligência humana usa na busca da verdade, parafraseando aqui proposição de Nicola Framarino dei Malatesta (1960) (2). Verdade que, na visão positiva, é a relação adequada entre o pensamento e a realidade e, para Mittermaier (3) é “a concordância entre um fato real e ideia que dele faz o espírito” (p. 65)
Essa concordância entre o fato real e a representação mental de algo, ou seja, a ideia, pode se traduzir pelo julgar, que é definido na sentença do julgador e na construção da prova pelo perito. Afinal, se busca, na construção da prova, tanto o relato adequado, coerente e conciso de evento, coisa, fato, quanto a ideia de verdadeiro em oposição ao falso.
Para Genival Veloso de França (4) a prova é “o elemento demonstrativo da autenticidade ou da veracidade de um fato” (p. 14). Nos artigos do Código de Processo Civil citados nesse trabalho, vê-se a importância da prova, mesmo na Prova Técnica Simplificada. França (4) comenta o valor racional da prova:
“O valor racional de uma prova está diretamente ligado no maior ou menor grau de aceitabilidade das informações ali contidas e que podem contribuir na avaliação do conflito como um insuprível meio de comprovação de um fato. Em suma: se as afirmações ali contidas podem ser acatadas como verdadeiras (…) a valoração de uma prova produzida ganha força a partir da razoabilidade e da aceitabilidade das informações prestadas, dos meios utilizados para firmar as conclusões e dos elementos que induzem a uma suficiente probabilidade” (p. 15).
Para Bentham (5), “A prova no seu sentido mais amplo, entende-se como um fato supostamente verdadeiro, que se presume, deve servir de motivo de credibilidade sobre a existência ou inexistência de outro fato” (p. 21), aqui sob a ótica da lógica clássica, ou seja, da inferência.
A prova é o centro do processo, portanto, da atividade jurídica, e existe quando fundada na certeza. No trato com a verdade e segundo Malatesta (2), as seguintes situações se põem:
“a ignorância que nada revela; a dúvida que é um estado complexo entre a afirmação e a negação, pois onde predominam os elementos negativos se tem a improbabilidade, quando se igualam os motivos negativos e positivos, tem-se aquilo que é crível e quando predominam os positivos tem-se a probabilidade” (p. 20/21).
A vivência médico pericial, ou seja, sua prática exige que diante de evento, coisa, fato pode-se ter opinião, portanto, conhecimento afirmativo com o receio do erro; e a certeza, que é conhecimento afirmativo sem o receio do erro.
Diante das possibilidades acima referidas no trato com os fatos, com a coisa e com os eventos, o médico perito tem o trabalho de construir texto científico que confira materialidade e demonstre a prova.
A prova pericial é estabelecida no Código de Processo Civil (1) com o seguinte texto:
Art. 464. A prova pericial consiste em exame, vistoria ou avaliação.
- 1º O juiz indeferirá a perícia quando:
I – a prova do fato não depender de conhecimento especial de técnico;
II – for desnecessária em vista de outras provas produzidas;
III – a verificação for impraticável.
- 2º De ofício ou a requerimento das partes, o juiz poderá, em substituição à perícia, determinar a produção de prova técnica simplificada, quando o ponto controvertido for de menor complexidade.
- 3º A prova técnica simplificada consistirá apenas na inquirição de especialista, pelo juiz, sobre ponto controvertido da causa que demande especial conhecimento científico ou técnico.
- 4 o Durante a arguição, o especialista, que deverá ter formação acadêmica específica na área objeto de seu depoimento, poderá valer-se de qualquer recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens com o fim de esclarecer os pontos controvertidos da causa.
Esse artigo visa analisar o artigo 464 do Código de Processo Civil e mais especificamente a Prova Técnica Simplificada sob a ótica da atividade médico pericial.
2. MATERIAL E MÉTODO
Esse estudo foi iniciado com uma revisão bibliográfica. Utilizou-se para tanto os descritores relacionados ao tema através das palavras-chave: prova pericial; prova técnica simplificada; perícia médica; perícia em medicina legal e perícia médica, nas bases de dados Google Scholar e Periódicos Capes.
Na sequência, o estudo foi realizado sob a ótica de método analítico, e se concentrou no artigo 464 do Código de Processo Civil, especialmente os parágrafos 2º, 3º e 4º, análise esta que teve por objetivo o apontar-se em bases científicas e éticas, os detalhes e problemas no uso do referido artigo da lei.
Sob os aspectos técnicos, foi analisado especialmente o que é denominado no artigo 464 da perícia como exame, vistoria ou avaliação. Entra-se aqui no campo da verificação, portanto, da linguagem, do discurso, dos conceitos e da relação entre eles, portanto, o ponto central da atividade científica que é o motivo da ação médico-pericial. Ao final apontou-se os elementos propositivos ao efetivo exercício da atividade pericial com os devidos cuidados científicos, técnicos e éticos.
3. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Silva et al (6), estuda o tema dos honorários periciais como entrave na produção de prova e morosidade processual, e conclui que “apesar de ter se apresentado de forma inovadora em certos aspectos, deixou a desejar no quesito financeiro, mas inovou na questão da “prova técnica simplificada” para se resolver matérias controvertidas.”
Buscando identificar quais são os principais impactos do Novo Código de Processo Civil (1) no potencial mercado da Perícia na percepção de Magistrados e Peritos, foi realizada pesquisa direta a magistrados e peritos de todas as áreas. Verificou-se, dentre outros achados, que para 60% dos magistrados e 77,78% dos peritos, há poucas possibilidades de a substituição da prova pericial pela prova técnica simplificada vir a representar algum risco em relação à apuração da verdade real dos fatos (7). Acrescentam os autores que:
“Ainda que o novo diploma não explicite de que forma esse controle de complexidade da matéria venha a ser realizado, o § 4º do art. 464 dispõe que esse trabalho será realizado por especialista com formação acadêmica específica na área objeto de discussão, bem como poderá valer-se de recursos tecnológicos para esclarecer os pontos controvertidos da causa […] para 80% dos magistrados entrevistados e 63,16% dos peritos, pairam dúvidas quanto à eficiência de produção desse tipo de prova por um simples especialista, pois não há inteligibilidade nos novos dispositivos de obrigatoriedade de utilização dos profissionais que compõem o cadastro a ser mantido pelo tribunal[…] ” (p. 971)
Ainda para os autores, a implementação da Prova técnica simplificada “exigirá do profissional destreza e determinados atributos que venham a contribuir satisfatoriamente para a elucidação de aspectos técnicos contidos na ação”, mas não aborda que tipo de destreza e quais seriam estes atributos.
Fuga (8) em estudo sobre provas no novo CPC, refere que:
“Na prática assemelha-se a prova constante no art. 35 da Lei 9099/95 do Juizado Especial Cível, pois naquele procedimento não pode prova pericial complexa, mas sim apenas o juiz poderá inquirir técnicos de sua confiança e permitida às partes a apresentação de parecer técnico. A intenção certamente é boa e procurar tentar solucionar processos de menor complexidade, porém na prática veremos como isso irá se adequar, pois no âmbito dos juizado especiais a inquirição de técnicos tem sido de pouca expressão, pois entende-se em grande parte dos casos pela necessidade de perícia e, assim, e remessa dos autos para a justiça competente. O conteúdo, porém, tem semelhança com o vigente art. 421, §2º.” (p.355)
Neste trabalho (8) também não se discute o que venha a ser um processo de menor ou maior complexidade, nem se todas as áreas de especialidade possuem metodologia científica para emitir uma afirmação.
Em análise sintética dos pontos alterados do CPC/2015, no que se refere à prova pericial, Freitas (9), utiliza como exemplo de ponto controvertido de menor complexidade “defeito mecânico, qualidade do combustível, verificação de assinatura de documento etc.” (p.120).
Bodart (10) afirma que, sobre a prova técnica simplificada, no novo CPC:
“Na verdade, trata-se também de uma prova pericial, com a peculiaridade de consistir em depoimento oral do expert sobre o ponto controvertido, em vez do laudo escrito. Cuida-se de medida que tem pouca ou nenhuma aceitação na praxe forense. Submete-se à discricionariedade do juiz a caracterização da questão como “de menor complexidade” para a dispensa do laudo escrito. O perito será ouvido, via de regra, na audiência de instrução e julgamento. É prudente que se observe o rito do art. 477, §§ 3.º e 4.º, do CPC (LGL\1973\5)/2015 para assegurar que o expert tenha tempo de se preparar para responder aos questionamentos realizados”. (p.3)
A perícia ou prova técnica simplificada já existia no CPC aterior, mas para Brugiolo (11), a versão atual foi aperfeiçoada e valorizada. No entanto, ele identifica pontos que revelam desarmonia do legislativo quanto à formação acadêmica para realizar a prova técnica simplificada:
“Para a prova pericial complexa não é exigido nível universitário e para a prova pericial simplificada, a formação acadêmica é exigida. Para o mais complexo a formação não é exigida, e para o mais simples a formação é dispensada? Segundo o doutrinador Fredie Didier Jr. essa regra não é razoável.” (p.11)
Em dissertação sobre provas técnicas e científicas, Avelino (12) aponta a dificuldade de se definir ser necessário uma prova pericial ou uma prova técnica simplificada, e que necessita ser caso a caso. Sugerindo a necessidade de um amplo debate no processo, incluindo aqui os próprios especialistas na área do conhecimento especializado que podem ajudar na definição. E que considerando a dificuldade que o julgador e as partes terão em definir:
“o espectro de incidência desta prova simplificada ou da prova perIcial tradicional, permite-se que o juiz, no ato de nomeação do perito, questione a respeito da necessidade de um exame ou outro. Afinal, a contribuição do perito pode ser decisiva à própria decisão do magistrado que, face a um conflito quanto à necessidade de uma ou outra, deve fundamentar de forma robusta a escolha” (p. 199).
Na pesquisa bibliográfica sobre prova pericial simplificada por especialidade, evidenciamos um estudo sobre a área ambiental à luz do novo código de processo civil (13), que conclui:
“Essas evoluções para simplificar o processo em questões ambientais, que via de regra são de natureza grave e complexa, claramente violarão princípios constitucionais como os da prevenção, da precaução e do não retrocesso. É imprescindível que exista discernimento sobre a tutela ambiental diante do provimento da simplificação e consenso da perícia ambiental, pugnando por uma especial cautela das decisões em casos específicos, sempre objetivando a maior prevenção e proteção do meio ambiente.” (p. 241).
Freitas (14), também estudando processos ambientais, entende que a possibilidade de substituição da perícia por uma prova técnica simplificada:
“É previsão de suma importância em processos ambientais, considerando que, dependendo do que deve ser provado nos autos e grau de complexidade, a perícia pode ser substituída por algo mais simples e menos custoso. Recorde-se que as perícias ambientais costumam possuir valores de honorários bastante elevados. (p. 2951)”
Na pesquisa bibliográfica realizada sobre a prova técnica simplificada não evidenciamos trabalhos científicos publicados na área de medicina de forma geral ou na especialidade de medicina legal e perícia médica, que abordassem as alterações ocorridas no CPC 2015.
4. A PROVA PERICIAL NA ÓTICA DA MEDICINA LEGAL E PERÍCIAS MÉDICAS
A prova pericial efetivada através dos conhecimentos técnicos e científicos da medicina, e particularmente da especialidade Medicina Legal e Perícias Médicas, é um ato médico, definido na lei 12.842 de 10 de julho de 2013, especialmente no inciso XII do artigo 4º e o inciso II do artigo 5º.
Historicamente, foi a Medicina Legal e, em alguns países, a Medicina Forense, área de conhecimento que antecede a maioria das especialidades médicas atuais, que desde o século XVI fazem a devida ponte entre a prova científica e os julgadores, especialmente na área criminal. No Brasil, passou a ser denominada Medicina Legal e Perícia Médica, abrangendo todos os tipos de perícias médicas judiciais e administrativas.
Esta especialidade fez e faz a ligação entre os princípios e as práticas que unem os elementos do pensar científico com a representação social e os aspectos nomológicos contidos na jurisprudência de cada nação, aqui se ressaltando o aspecto cogente da vivência em sociedade sob os auspícios da devida ordenação normativa.
A prova pericial estabelecida no artigo 464 do Código de Processo Civil, como exame, vistoria ou avaliação e feita à luz da Medicina Legal e Perícias Médicas, exige os rigores do pensamento científico, das doutrinas e métodos inerentes à especialidade.
Se a prova é exame, não pode ser limitada a resposta a quesitos, mesmo nos casos entendidos como de menor complexidade. Se ficarmos no âmbito elementar da lógica formal, para que se conclua algo é necessário (aqui como algo que não pode ser de outra maneira) que as premissas estejam presentes e fundamentem a conclusão.
Sem essa fundamentação antecedente, a conclusão pode ser entendida como falsa, ou seja, a prova, objetivamente não se instala. Prejudicando o fulcro processual.
A guisa de exemplo, veja-se a situação de incapacidade em um paciente hipotético com um quadro clínico de pancreatite crônica, com diversos episódios de agudização, diabetes descompensada, emagrecimento acentuado com perda substancial de massa muscular pela desnutrição. O paciente tem a profissão de trabalhador braçal. Trata-se de paciente com 40 anos de idade e sua pancreatite é advinda de alcoolismo crônico.
Numa primeira avaliação, sua situação clínica leva a concessão de benefício temporário por incapacidade física de exercer sua profissão. No entanto, a depender de sua evolução fisiopatológica e de tratamento adequado, o hipotético paciente pode receber alta e retornar ao trabalho.
Pode ocorrer o contrário, quando o processo de destruição tecidual do parênquima pancreático exócrino e endócrino se tornar evolutivo, ou seja, quando o tecido fibrótico substituir mais de 80% do parênquima e tanto a diabetes quanto a insuficiência enzimática se perpetuarem, ocasionando uma incapacidade definitiva para a atividade profissional e redução acentuada do tempo de vida.
Se, e durante o processo de concessão de benefício, quando da avaliação médico pericial, houver um conflito de interpretação dos diversos elementos do quadro clínico sob a ótica do médico assistente com a avaliação do médico perito, a controvérsia está instalada. A via processual começará nos canais próprios da perícia previdenciária e pode chegar à via judicial.
Como regra geral, a controvérsia se inicia desde os sinais e sintomas referidos pelo paciente e citados nos documentos médico assistenciais, como na interpretação dos exames complementares, nos prognósticos e nas sugestões temporais de benefícios a serem concedidos.
O olhar do médico perito previdenciário sobre cada caso clínico é dirigido para a concessão ou não de determinado benefício pecuniário ao solicitante, tem característica social, e o olhar do médico assistente tem o caráter individual. Essa divergência de enfoque pode suscitar a intervenção da lei e do agir judicial.
Se esse caso fosse ao judiciário, exatamente no período intermediário do processo evolutivo da doença, ocorreriam dúvidas técnicas e científicas e muitas vezes controvérsias no interpretar tanto os prognósticos da doença quanto os direitos do paciente ao benefício, que demandariam esclarecimentos através de ação médico pericial diversa.
As controvérsias que poderiam ocorrer seriam quanto ao diagnóstico, diagnóstico diferencial, prognóstico, interpretação de exames laboratoriais e de imagens como a tomografia, a colangiopancreatografia, a ressonância magnética e a tomografia por emissão de pósitrons, que pudessem responder a situação fática, e ainda a busca de evidências patognomônicas que caracterizariam a doença, indicando a correta abordagem da patologia nos seus múltiplos aspectos.
No caso acima, a modulação situacional é feita pelo tempo. Em tal situação, o simples perguntar sobre “pontos controversos” do diagnóstico ou do prognóstico não permitem tomada de decisão, muito menos sentença, pois o tempo enquanto grandeza matemática exigirá o devido estudo retrospectivo, prospectivo e demonstrativo para a devida solução do problema.
Numa situação clínica como o acima referido, é muito difícil se falar de caso de menor complexidade, pois são nestes casos – frequentes na prática clínica e onde ocorre até uma certa automação no firmar diagnóstico, no analisar e associar os sinais e sintomas com os exames complementares de laboratório e de imagem – que podem ocorrer controvérsias interpretativas e a ocorrência posterior de processos judiciais.
A prova pericial enquanto exame exige o que se pode denominar de perícia convencional e, na área da Medicina Legal e Perícias Médicas utiliza um método para produzir a prova e o documento que a apresenta. Esse método é constituído pelas seguintes etapas: preâmbulo, quesitos, histórico, descrição, discussão, conclusão e respostas aos quesitos. Cada etapa desse método é muito praticada pelos médicos peritos em todas as áreas de atuação da especialidade.
Se a prova pericial é vistoria, o cenário é aquele do exame adjetivado pela minúcia, ou ainda, do exame realizado na frente do julgador para resolver o litígio, muito próximo da inspeção judicial.
O termo vistoria é quase tautológico quando aplicado à atividade médico pericial, pois o exame minucioso portanto detalhado do objeto da perícia é obrigatório e sem o qual a prova não se constitui por inteiro.
Nesse aspecto, ou seja, da minúcia no executar o exame médico pericial, a prova técnica simplificada fica ainda mais distante da prova adequada, pois, ao substituir a perícia médica por simples respostas a quesitos propostos pelo juiz e ou pelas partes processuais, não se constrói a prova pericial.
Se a prova pericial é avaliação, entra-se no campo da verificação, portanto, da linguagem, do discurso, dos conceitos e da relação entre eles. Verifica-se sob a ótica da Medicina Pericial por exemplo: a intensidade do dano corporal, sua extensão, se há repercussões gerais e ou específicas, se há dano anterior, se há dano futuro, quantifica-se o dano e se estabelece valores percentuais de ressarcimento. Cada item, classe, de uma verificação exige a devida objetivação fenomênica.
Para Moacyr Amaral Santos, citado no trabalho de Freire (15), “Em toda perícia, seria essencial a verificação, certificação ou comprovação dos fatos, quer para levar as provas até o processo, quer para interpretá-los e torná-los inteligíveis” (p. 75)
Para Freire (15) a prova na medicina pericial está inserida numa grande amplitude de conceitos:
“A prova em Medicina Legal é concreta, porém está inserida num contexto de amplitude variável. Esse contexto tem, necessariamente, fundamentos, no que se denomina tecnicamente, de vestígios e indícios. Nossa concepção é a de que a verdadeira prova deve inserir o dado vestígio e o consequente indício num todo estruturado formando um sistema e, nesse, os elementos estarão necessariamente ligados. Entende-se aqui como necessário: aquilo que não pode deixar de ser. Essa seria a prova indubitável, que teria superado o nível do vestígio e do indício em direção a um sistema de conceitos” (p. 84)..
5. A PROVA TÉCNICA SIMPLIFICADA NA ÓTICA DA MEDICINA LEGAL E PERÍCIAS MÉDICAS
Como a relação normativa organiza a convivência humana, é nos conflitos e dissidências onde a busca da verdade se torna essencial, daí a necessidade dos processos, dos julgamentos e seus resultados derivarem substancialmente da prova.
A Prova Técnica Simplificada, presente nos parágrafos 2, 3 e 4 do artigo 464 da lei 13.105 de 16 de março de 2015, remete a especialidade a um conflito de ideias, pois, ao substituir a Prova Pericial, por perguntas e opiniões se reduz a efetividade da prova, pois, aqui fica dispensada a fundamentação e a demonstração fática que a prova pericial oferece.
A atividade médico pericial que visa construir a prova objetiva, substantiva e demonstrável, como centro do processo no dizer de Malatesta (2) e citado acima, necessita dessa cientificidade.
Assim, ao avaliar-se os parágrafos do artigo 464 do Código de Processo Civil e a existência da Prova Técnica Simplificada, da Perícia Fracionada e ainda do uso exclusivo da imagem para estruturar a Prova no âmbito da Medicina Legal e Perícias Médicas, se tem enormes dificuldades.
O parágrafo segundo tem a seguinte redação: “De ofício ou a requerimento das partes, o juiz poderá, em substituição à perícia, determinar a produção de prova técnica simplificada, quando o ponto controvertido for de menor complexidade”.
O ponto central para se justificar esse parágrafo é: nos pontos da lide onde a complexidade é menor, o juiz pode, tem a opção, a faculdade de substituir a perícia pela prova simplificada, na busca de se resolver mais rapidamente o problema e muito provavelmente diminuir o seu custo. No primeiro elemento atende a questão temporal que é reclamo da sociedade, no segundo e em tese, atende as partes ao diminuir o custo do exame pericial.
O problema que se apresenta é, a adequada designação do que seja concretamente “menor complexidade”.
O parágrafo terceiro fala de “ponto controvertido da causa que demande especial conhecimento científico ou técnico”, e em assim sendo, exigirá do Médico Perito atividade que é maior que a resposta a quesito, ou seja, é ato Médico Pericial. Veja-se ainda, que o parágrafo 4º do mesmo artigo fala dos “pontos controvertidos da causa”, ou seja, situações, elementos e pontos que exigem reflexão e estudos ainda mais acurados.
Na controvérsia, o que se exige para resolvê-la é a busca da certeza mediata, que decorre do estudo, da correta avaliação e verificação. Dirimir dúvidas é essencial ao processo, pois se ela existe a prova não está construída. Dessa forma, os quesitos e respostas são instrumentos para solução da dúvida em pontos controvertidos e, complementam o ato pericial, não substituindo a perícia, especialmente na Medicina Legal e Perícias Médicas.
Substituir o exame médico pericial por uma avaliação documental por exemplo, constitui o que chamamos de “parecer”, “perícia indireta”, não é um simples responder questões.
O parecer em Medicina Legal e Perícias Médicas normalmente é solicitado a profissional de reconhecido saber, de forma muito semelhante ao que ocorre no Direito. Tem o parecer o intuito de esclarecer dúvidas, fundamentar teses, responder a problemas substanciais não resolvidos nas avaliações anteriores.
As respostas aos pontos controvertidos da causa em julgamento necessitam de atividade Médico Pericial completa e de profissional qualificado, pois a denominada Prova Técnica Simplificada é Prova e o julgador fará o seu Juízo com ela e assim estabelecerá a realidade, de acordo com o artigo 371 do referido código:
Art. 371. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.
Não é possível olvidar de recente parecer do Conselho Federal de Medicina, de nº 10/2020 (16), respondendo aos questionamentos formulados sobre a prova técnica simplificada no campo da perícia médica, cuja ementa assim se construiu:
“Em ações judiciais em que sejam objetos de apreciação pericial, a avaliação de capacidade, dano físico ou mental, nexo causal, definição de diagnostico ou prognóstico, é vedado ao médico a realização da perícia sem exame direto do periciando ou sua substituição por prova técnica simplificada.”
O referido parecer realça o fato de que o ponto controvertido de menor complexidade, capaz de ensejar a adoção da prova técnica simplificada, não pode constituir-se como uma perícia, em seu sentido mais estrito, uma vez que consiste na inquirição do especialista pelo magistrado.
Nada obsta que, dada a natureza do caso, e em a atenção aos princípios de economia e celeridade processual, quando possível ouvir e inquirir perito e assistentes técnicos, desde que estes tenham efetivamente a habilidade de emitir algum juízo de valor aproveitável à situação, de maneira específica, e com conhecimento aprofundado e apropriado, diferenciando-o de uma opinião leiga ou superficial.
Há que se distinguir, ainda, esta opinião de uma conclusão técnica a respeito de uma controvérsia de natureza médico-legal, uma vez que a resposta segura a esta última prescinde de exame médico adequado, especialmente em atenção às proibições estabelecidas pelo Código de Ética Médica, em seus artigos 92 e 98.
O próprio CFM, em outro parecer recente, desta feita o de nº 03/2020 (17), estabelece que:
“a manifestação médica pericial acerca de modalidades de dano pessoal, capacidade e invalidez, só pode ser concluída após o exame pericial completo, ou seja, anamnese pericial, avaliação física presencial e análise de exames complementares”.
O que se verifica, portanto, é que a despeito das boas intenções do legislador, há situações reais e efetivas que não permitem a realização de uma prova “simplificada”, sendo necessária – e essencial – a realização de perícia, para dirimir controvérsias de maneira adequada.
Não poderá o médico ser prejudicado em sua autonomia, e muito menos em sua credibilidade, sendo forçado a aceitar a realização de um procedimento que, sob sua ótica profissional, seja inadequado ou careça das garantias e segurança necessárias para a emissão de um parecer que atenda a critérios técnicos de certeza e confiabilidade.
Sendo este o caso, e com motivada fundamentação, deve alertar o juízo, de modo a cumprir plenamente com suas funções de colaborador da Justiça, sem ferir preceitos de ética profissional.
6. CONCLUSÃO
Nos trabalhos analisados, não encontramos referência a uma metodologia cientifica de forma geral ou específica, que embasaria a realização da prova técnica simplificada. A lei define que seria emitir opinião sobre tema controverso. Mas, o CPC (1), no seu artigo 464, estabelece que o Juiz poderá determinar a produção de prova técnica simplificada, quando o ponto controvertido for de menor complexidade e que demande especial conhecimento científico ou técnico. E consistirá apenas na inquirição de especialista, pelo juiz. Mas não encontramos na Lei, algumas definições importantes como o que se está considerando prova técnica simplificada no caso de questões da área de medicina legal e perícia médica.
Neste caso da emissão de opinião por parte do perito médico, tal resposta pode ser dada apenas em casos cujas questões não se refiram a um indivíduo em particular, ou um ambiente em particular, que se refira a definição de dano corporal ou estabelecimento de nexo de causalidade. Podendo ser aplicada em análise documental, quando não seja necessária a avaliação médica composta de anamnese, exame físico e exames complementares. Chamando a atenção para o viés que pode ser encontrado em análises documentais sem a avaliação médica do periciando.
Considerando as argumentações acima elencadas e o contido nos parágrafos 2, 3 e 4 do artigo 464 da lei 13105 de 16 de março de 2015, podemos concluir com as seguintes precauções para o agir do médico perito:
I – Ao ser inquirido em atividade médico pericial denominada Prova Técnica Simplificada, o faça com a ressalva de estar emitindo opinião, portanto, proposição afirmativa com o receio do erro. E que em nenhuma hipótese a opinião emitida poderá ser analisada a luz do Art. 473 do CPC/ 2015, que define o laudo pericial;
II – Informe ao julgador que a atividade médico pericial exige o conceito de certeza mediata, portanto, certeza decorrente do estudo, exige prazo para ser realizada, prazo este definido na lei.
III- A Prova Técnica Simplificada, quando aplicada por médico perito, é ato médico, logo, prova. O profissional tem a mesma responsabilidade técnica e ética tanto na prova convencional com elaboração de Laudo Médico Pericial, quanto na emissão de opinião na Prova Técnica Simplificada.
IV- A principal referência do Ato Médico Pericial é a credibilidade, que decorre da confiança advinda da eticidade no agir e do sólido conhecimento demonstrado na construção da prova, esta, o objetivo central da especialidade Medicina Legal e Perícias Médicas.
V – A realização de perícia sem examinar o paciente contraria as orientações éticas emitidas pelo CFM, bem como os artigos 92 e 98 do Código de Ética Médica, podendo sujeitar o médico perito à responsabilização ética prevista no art. 22 da Lei nº 3268/57 (18).
VI – Cabe ao médico, quando eventualmente nomeado para a realização da prova técnica simplificada, atender ao chamamento determinado pelo magistrado, mas também alertar ao juízo a respeito da complexidade do caso, escusando-se legitimamente de sua realização, e indicando a necessidade de realização de exame presencial completo, de modo a atender aos ditames legais e deontológicos de sua atividade.
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