Os autores informam não haver conflito de interesse.
SOCIAL ISOLATION DUE TO THE COVID-19 PANDEMIC AND ITS IMPACTS IN VIOLENCE AGAINST WOMEN
Thabatta Giuliani Monclus Romanek (1)
http://lattes.cnpq.br/6794416954795529 – https://orcid.org/0000-0003-4435-345X
Vitória Lúcia Bezerra Schmidt (1)
http://lattes.cnpq.br/1930149153829393 – https://orcid.org/0000-0001-5073-9055
(1) Universidade São Francisco, Bragança Paulista – SP, Brasil (autor principal).
Email para correspondência: thabattaromanek@gmail.com
RESUMO
INTRODUÇÃO: Em 2020, devido à pandemia da COVID-19, o isolamento social foi um agente potencializador das taxas relacionadas à violência doméstica e familiar contra a mulher, a julgar pelo aumento preocupante de alguns indicadores. OBJETIVOS: Expor dados brasileiros acerca desta problemática, dado o agravamento desse tipo de violência. METODOLOGIA: Levantamento bibliográfico e documental de natureza quantitativa e qualitativa, a partir de pesquisa na base de dados online SciELO, websites e nota técnica disponibilizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre a violência doméstica durante a pandemia da COVID-19. RESULTADOS: Os estados de São Paulo, Acre, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Pará apresentaram redução nos registros de ocorrência quando comparado o mês de março de 2019 e o de 2020. Em contrapartida, observou-se que o número de feminicídios, atendimento ao 190 e ao Ligue 180 (Atendimento à Mulher) aumentaram neste período. DISCUSSÃO: A pandemia trouxe uma maior convivência entre os agressores e as vítimas, o que, no novo contexto, pode explicar as estatísticas antagônicas, ou seja, embora os registros administrativos aparentemente indiquem redução da violência de gênero, os números de feminicídios apresentaram crescimento, indicando que a violência doméstica e familiar está em ascensão. CONCLUSÃO: O isolamento social foi fator contribuinte para o aumento no número de casos de violência doméstica. Se faz importante potencializar as diferentes linhas de prevenção neste contexto de pandemia, tendo em vista que o registro desse tipo de violência é fundamental para romper esse ciclo.
Palavras-chave: violência contra a mulher, infecções por coronavírus, pandemias, isolamento social.
ABSTRACT
INTRODUCTION: In 2020, due to the COVID-19 pandemic, social isolation acted as an agent to boost the rates related to domestic and family violence against women, considering the increase of some worrying indicators about domestic violence. OBJECTIVES: To expose Brazilian data about this issue, in view of the aggravation of this type of violence. METHODOLOGY: Bibliographic and documental research based on the online database SciELO, websites and technical notes published by the Brazilian Public Security Forum about domestic violence during the COVID-19 pandemic. RESULTS: The states of São Paulo, Acre, Rio Grande do Sul, Mato Grosso and Pará showed a reduction in the number of domestic violence incidents when comparing March 2019 and 2020. On the other hand, it was observed that the number of feminicides, calls to 190 and Ligue 180 increased in this period. DISCUSSION: The pandemic brought a closer coexistence between aggressors and victims, which, in the new context, may explain the antagonistic statistics. That is, although administrative records apparently indicate a reduction in gender-based violence, the numbers of feminicides have shown growth, indicating that domestic and family violence has risen. CONCLUSION: Social isolation was a contributing factor to the increase in the number of cases of domestic violence. It is important to maximize the different lines of action in this context of pandemic, considering that registration is fundamental to break the cycle of violence and, consequently, to contain the final violence, feminicide.
Keywords: violence against women, coronavirus infections, pandemics, social isolation.
1. INTRODUÇÃO
A violência contra a mulher pode ser compreendida como qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que ocasione a morte ou inflija dano ou sofrimento físico, sexual, psicológico, patrimonial ou moral à mulher, nos âmbitos público ou privado. A violência física se manifesta ao ofender a integridade ou a saúde corporal da mulher, com o uso de força física por parte do agressor; a psicológica se caracteriza por qualquer conduta que cause dano emocional ou diminuição da autoestima da mulher; a sexual envolve constranger a mulher a presenciar, manter ou participar de qualquer relação sexual não desejada, ou ainda, quando a mulher é obrigada a se prostituir, abortar, usar anticoncepcionais contra a sua vontade; a violência patrimonial configura a retenção, subtração, destruição parcial ou total de pertences da mulher, sendo estes de qualquer natureza, e a violência moral é entendida como qualquer conduta que importe em calúnia, difamação ou injúria da mulher (1).
Com a finalidade de coibir a violência doméstica e de garantir proteção física, psicológica, moral e sexual às mulheres, no Brasil, entrou em vigor a Lei 11.340 de 2016, mais conhecida como Lei Maria da Penha, que proporcionou uma série de medidas e de garantias, formuladas pelos instrumentos legais, para proteger suas vítimas. Dentre elas, destaca-se a criação das medidas protetivas de urgência (MPU) que podem ser concedidas por um juiz, independentemente da existência de inquérito policial ou de processo cível, para garantir a proteção física, psicológica, moral e sexual da vítima contra o seu agressor (2).
A partir disso, considerando-se que a violência contra a mulher é um fenômeno global, é possível correlacionar o isolamento social, imposto pela pandemia da COVID-19, e o aumento de alguns indicadores preocupantes acerca da violência doméstica e familiar contra o sexo feminino (3). Apesar da pandemia do novo coronavírus (SARS-Cov-2), decretada no mundo em 11 de março de 2020, pela Organização Mundial da Saúde (OMS) (4), trazer à tona, de forma global, o agravamento da violência contra a mulher, é possível observar o reduzido acesso a serviços de apoio às vítimas, como nos setores de assistência social, saúde, segurança pública e justiça (3). O editorial da revista Lancet já discutia, em abril de 2020, como a desigualdade de gênero seria um dos fatores determinantes para o contexto observado durante a crise sanitária e social resultantes da SARS-CoV-2/Covid-19 (5).
Embora o regime de isolamento social tenha sido eleito como medida para minimizar os efeitos diretos da Covid-19, é possível observar uma série de consequências negativas não apenas para os sistemas de saúde, mas também para a vida de milhares de mulheres que já viviam em situação de violência doméstica, as quais, muitas das vezes, foram obrigadas a permanecer mais tempo no próprio lar junto a seu agressor (2).
Outra consequência direta de tal situação é a diminuição das denúncias dos casos de violências, uma vez que em função do isolamento social as vítimas não têm conseguido sair de casa para fazê-la, ou têm medo de realizá-la, dada a aproximação com relação a seu parceiro/agressor. No Brasil, por exemplo, que teve seu primeiro caso do novo coronavírus registrado em 28 de fevereiro de 2020, segundo o Ministério da Saúde (4), apesar dos registros de boletins de ocorrência (BOs) terem apresentado queda nos primeiros dias de isolamento, os atendimentos de violência doméstica pela Polícia Militar (PM) no 190 cresceram (2). Além disso, de acordo com dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), houve um aumento médio de 14,1% no número de denúncias feitas ao Ligue 180 nos primeiros quatro meses de 2020 em relação ao ano de 2019 (6).
Tal situação repercutiu inclusive no universo digital, sendo possível notar um aumento de relatos de brigas de casais com indícios de violência no Twitter, uma rede social e um servidor para microblogging, entre fevereiro e abril de 2020, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
A partir disso, percebe-se a importância de incorporar uma análise de gênero às políticas públicas e ações de saúde governamentais durante a pandemia da COVID-19, além da necessidade da diversificação e de ampliação dos canais possíveis para denúncias dos agressores. Tendo em vista tal situação e que o isolamento social foi agente potencializador das taxas relacionadas à violência doméstica e familiar contra a mulher, este trabalho tem por objetivo expor dados brasileiros a partir da revisão bibliográfica acerca desta problemática.
2. MATERIAL E MÉTODO
Utilizou-se como método levantamento bibliográfico e documental de natureza quantitativa e qualitativa, a partir de pesquisa na base de dados online SciELO, websites e nota técnica.
Para análise da variação nos níveis de violência doméstica durante as medidas de isolamento social foi utilizada nota técnica disponibilizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Além disso, fora empregado levantamento de dados relativos ao período compreendido entre março e abril de 2020, durante a pandemia do novo coronavírus, proveniente do monitoramento quadrimestral da série de reportagens “Um vírus e duas guerras”, publicado em 2020, resultado de uma parceria colaborativa entre cinco mídias independentes: Amazônia Real, sediada no Amazonas; Agência Eco Nordeste, no Ceará; #Colabora, no Rio de Janeiro; Portal Catarinas, em Santa Catarina; e Ponte Jornalismo, em São Paulo.
Ademais, foi realizada pesquisa conceitual empregando a base de dados online SciELO, sendo aplicadas as palavras-chave ‘’violência doméstica’’ e ‘’mulher’’, filtrando-se artigos a partir do ano de 2019. Na pesquisa inicial, os títulos e resumos dos artigos foram considerados para a ampla seleção de prováveis obras de interesse, sendo destacados os resumos (dos artigos que não tinham texto acessível) e os textos completos dos artigos. Os critérios de inclusão foram textos que abordavam os princípios da violência contra a mulher versus pandemia da COVID-19.
3. RESULTADOS
A partir da pesquisa realizada empregando a base de dados online SciELO e da aplicação das palavras-chave ‘’violência doméstica’’ e ‘’mulher’’ de 57 artigos, no período de 2019 a 2020, foram utilizados dois artigos para o estudo, os quais abordavam os princípios da violência contra a mulher versus pandemia da COVID-19, sendo organizados de modo a delinear os dados de identificação dos artigos e as respectivas sínteses para compreender as concepções sobre o assunto.
A partir da nota técnica disponibilizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), foi possível analisar de maneira qualitativa e quantificadamente os diversos aspectos inseridos no contexto da violência doméstica contra a mulher, auxiliando na compreensão do impacto das medidas de isolamento social. Os dados destacados foram relativos a: medidas protetivas de urgência (MPU), atendimentos no 190, boletins de ocorrência, lesões corporais dolosas decorrentes de violência doméstica, feminicídios e denúncias no Ligue 180.
Na primeira seção do documento em questão, há a apresentação do estudo com dados oficiais coletados junto às Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social e Tribunais de Justiça, relativos à violência doméstica em seis estados do país, sendo eles: São Paulo, Acre, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Pará. Na segunda seção do estudo, em parceria com a empresa Decode Pulse, com grande experiência em mineração de dados em redes sociais, é possível observar a análise de relatos de brigas de casais e violência doméstica nas redes sociais entre fevereiro e abril do ano de 2020.
Já, o monitoramento da série “Um vírus e duas guerras” foi realizado a partir de dados coletados a respeito das taxas de feminicídios e da violência doméstica, solicitados às secretarias de segurança pública dos 26 estados brasileiros e do Distrito Federal. Em algumas regiões do país os números fornecidos foram imprecisos, dentre eles: Amapá, Goiânia, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Paraná, Rondônia e o Distrito Federal.
Medidas Protetivas de Urgência (MPU)
A partir de dados disponibilizados pelos Tribunais de Justiça do Acre, São Paulo e Pará, nota-se alterações no número de solicitações e de concessões de MPUs (tabelas 1 e 2). Com relação ao Acre é possível notar queda de 8,8% nas concessões, comparando-se o mês de março em 2019 e 2020. Já, em São Paulo, houve aumento de 2,1 % de solicitações e de 31% de concessões das medidas, assim como no estado do Pará, que registrou um aumento de 8,9% nas concessões. No mês de abril de 2020, porém, verificou-se queda do número de MPUs concedidas em todos os territórios: -32,9% no Pará; -67,7% no Acre; -37,9% em São Paulo (2).
UF | Mar/19 | Mar/20 | Variação (%) |
Acre | 125 | 114 | -8,8 |
São Paulo | 3.221 | 4.221 | 31,0 |
Pará | 628 | 684 | 8,9 |
UF | Abr/19 | Abr/20 | Variação (%) |
Acre | 62 | 20 | -67,7 |
São Paulo | 1.785 | 1.109 | -37,9 |
Pará | 319 | 214 | -32,9 |
Atendimentos no 190
O telefone 190 é um serviço de emergência da Polícia Militar que atende aos cidadãos em casos de riscos, ameaças contra a vida, denúncias de roubos, atentados e proteção pública (7). Com relação a esse atendimento, houve um crescimento de 2,1% nas chamadas à Polícia Militar do Estado do Acre (PMAC) e de 44,9% à Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP), quando comparados os meses de março de 2019 e de 2020 (tabela 3). Calculando a taxa por 100 mil habitantes, o que demonstra o impacto destas ocorrências no dia a dia do patrulhamento, é possível notar uma taxa de acionamento no Acre duas vezes superior à verificada em São Paulo (2).
UF | Nºs absolutos | Taxas por 100 mil habitantes | |||
Mar/19 | Mar/20 | Mar/19 | Mar/20 | Variação (%) | |
Acre | 470 | 480 | 53,3 | 54,4 | 2,1 |
São Paulo | 6.775 | 9.817 | 14,8 | 21,4 | 44,9 |
Boletins de ocorrência (BO)
Os estados do Acre, Ceará, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Pará apresentaram redução nos registros de ocorrência (tabela 4). No Pará, por exemplo, houve uma redução de 49,1% no total de ocorrências de violência contra a mulher registradas ao comparar o mesmo período nos anos de 2019 e 2020 (entre os dias 19 de março e 02 de abril). Já, no Estado do Mato Grosso os registros de lesão passaram de 953 para 744, comparando-se os meses de março de 2019 e 2020, totalizando queda de 21,9%; no Rio Grande do Sul houve queda 9,4%; no Acre de 28,6%; no Ceará de 29,1%. O Estado do Rio Grande do Norte foi exceção, o qual registrou aumento do número de boletins de ocorrência relacionados às lesões corporais dolosas decorrentes de violência doméstica, tendo em vista que em março de 2020 o aumento foi de 34% em relação ao mesmo mês de 2019 e de 72% em 2018 (2).
UF | Março 2019 | Março 2020 | Variação (%) |
Rio Grande do Sul | 1.925 | 1.744 | -9,4 |
Rio Grande do Norte | 287 | 385 | 34,1 |
Pará | 607 | 527 | -13,2 |
Mato Grosso | 953 | 744 | -21,9 |
Ceará | 1.924 | 1.364 | -29,1 |
São Paulo | 4.753 | … | … |
Acre | 14 | 10 | -28,6 |
Feminicídio
Feminicídio é o termo usado para denominar assassinatos de mulheres cometidos em razão do gênero, ou seja, quando a vítima é morta por ser mulher. No Brasil, a Lei do Feminicídio, de 2015, estabelece que, quando o homicídio é cometido contra uma mulher, a pena é maior (8). Comparando os meses de março de 2019 e de 2020 (tabela 5), verificou-se que no Acre o número de feminicídios passaram de 1 para 2. No Mato Grosso, os feminicídios aumentaram de 2 casos em março de 2019 para 10 casos em março de 2020, obtendo um aumento de 400%. No Rio Grande do Norte os feminicídios saltaram de 1 para 4 casos. No estado de São Paulo houve um aumento de 46,2%, apresentando 13 vítimas em 2019 para 19 em março de 2020. Por outro lado, no Pará e no Rio Grande do Sul, a taxa de feminicídio se manteve constante durante o período observado, com 4 e 11 vítimas, respectivamente, em março de cada ano (2).
UF | Mar/19 | Mar/20 | Variação (%) |
Acre | 1 | 2 | 100 |
Mato Grosso | 2 | 10 | 400 |
Pará | 4 | 4 | 0,0 |
Rio Grande do Norte | 1 | 4 | 300 |
Rio Grande do Sul | 11 | 11 | 0,0 |
São Paulo | 13 | 19 | 46,2 |
Segundo o levantamento de dados, resultado do monitoramento da série de reportagens ‘’Um vírus e duas guerras’’ sobre a violência doméstica, entre os meses de março e abril de 2020, durante a pandemia do novo coronavírus, os casos de feminicídio no País aumentaram em 5% em relação ao mesmo período do ano de 2019. Além disso, foi possível observar, um aumento de 41% no número de feminicídios no Estado de São Paulo, o que contrasta a redução de registros de 22% e de 33% nos crimes de lesão corporal e de ameaça, respectivamente (4).
Denúncias no Ligue 180 – Central de atendimento à Mulher em Situação de Violência
A Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (Ligue 180), criado em 2005, é um serviço oferecido pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), o qual recebe denúncias de casos de violência contra a mulher e fornece orientação necessária sobre seus direitos e informações sobre a rede de atendimento. Segundo o documento disponibilizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com exceção dos estados Mato Grosso e do Rio Grande do Sul (diferença em 1 denúncia), os estados analisados tiveram redução no número de denúncias de violência contra a mulher registradas via Ligue 180, quando comparados os meses de março de 2019 e de 2020 (tabela 6). No País, segundo a nota técnica, também houve uma variação negativa correspondente a -8,6%, totalizando 8.440 denúncias em março de 2019 e 7.714 de 2020.
UF | Mar/19 | Mar/20 | Variação (%) |
Acre | 18 | 16 | -11,1 |
Mato Grosso | 95 | 104 | 9,5 |
Pará | 219 | 133 | -39,3 |
Rio Grande do Norte | 162 | 108 | -33,3 |
Rio Grande do Sul | 446 | 447 | 0,2 |
São Paulo | 1.540 | 1.519 | -1,4 |
BRASIL | 8.440 | 7.714 | -8,6 |

Já, segundo informações fornecidas pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, no site do Governo Federal, durante o período descrito houve um aumento de 17,89% no país como um todo. Ademais, de acordo com os dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), durante os quatro primeiros meses de 2020, foi possível observar um aumento médio de 14,1% no número de denúncias feitas ao Ligue 180 em relação ao ano de 2019 (6) (gráfico 1). Foi possível observar, além disso, um aumento de 34% entre março e abril de 2020 em relação a 2019. Ao comparar apenas o mês de abril, o crescimento é de 36% entre os dois anos (4).
Mundo digital
No universo digital, foi possível notar um aumento de 431% nos relatos de brigas de casais apontadas por vizinhos no Twitter, entre fevereiro e abril de 2020, caracterizando uma amostra de 52 mil menções contendo algum indicativo dessas brigas. As mensagens que indicavam a ocorrência de violência doméstica resultaram em 5.583 menções, sendo 67% delas relatos de mulheres. Quando analisados os dados por mês isoladamente, observa-se um aumento de 431% entre fevereiro e abril, indicando o crescimento de quatro vezes dos relatos de violência doméstica, sendo mais da metade (53%) publicados apenas no mês de abril (gráfico 2).

Medidas para contenção da violência doméstica
Com relação às medidas criadas para conter o aumento da violência doméstica durante a pandemia, no Brasil, o Governo Federal lançou o aplicativo, disponível no site do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, “Direitos Humanos Brasil”, possibilitando que as vítimas denunciem qualquer tipo de agressão por meio da plataforma online. As outras formas de contato, como o Disque 100 e o Disque 180, continuaram a funcionar normalmente durante a pandemia. Além disso, nos estados de São Paulo, Espírito Santo e Rio de Janeiro a Secretaria de Segurança Pública permitiu o registro do Boletim de Ocorrência eletrônico via online, evitando o deslocamento a uma delegacia (2).
Outras medidas também foram criadas, a Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SNPM), por exemplo, publicou cartilhas e diversos materiais informativos durante o período da pandemia, além de orientar tecnicamente as redes de acolhimento e proteção à mulher. Entre essas iniciativas, está a Vigilância Solidária, que tem por objetivo conscientizar vizinhos para o combate à violência contra a mulher (6). Outro exemplo, para permitir que as denúncias sejam feitas de forma silenciosa, a Magazine Luiza, conhecida rede varejista de eletrônicos e móveis brasileira, incluiu no aplicativo de compras Magalu um botão para denunciar casos de violência contra a mulher. Tal funcionalidade é antiga, implementada desde março de 2019, porém com o aumento do número de casos de violência doméstica durante a pandemia a rede de lojas usou as redes sociais para reforçar a possibilidade de uso deste canal (9).
4. DISCUSSÃO
Uma das problemáticas neste período, é caracterizada pela subnotificação tendo em vista as dificuldades para se comunicar, acessar os canais de denúncias, e até mesmo para se chegar fisicamente até às delegacias ou fóruns. A exemplo, a realização dos boletins de ocorrência e das MPUs que demandam a presença física das vítimas, por consequência há redução de alguns parâmetros analisados voltados a violência contra a mulher, durante a pandemia do novo coronavírus.
A redução do registro de BOs e de concessão de medidas de proteção de urgência observadas, espelham as dificuldades do acesso aos equipamentos públicos para registro das denúncias por parte das vítimas (2). Em contraste, é possível notar o aumento dos atendimentos de violência doméstica pela Polícia Militar (PM) por meio do telefone 190 (2), além do aumento do número médio de denúncias feitas ao Ligue 180 (6), uma vez que ambos acessos ocorrem via telefone.
Com relação ao feminicídio, os dados de mortalidade de mulheres no período do isolamento social foram aqueles que mostraram uma maior variação quando verificados os registros oficiais. É preciso levar em consideração que, não é possível afirmar que o incremento desse tipo de violência contra as mulheres se deu apenas em função do isolamento social. Nota-se, porém, uma vulnerabilização de mulheres que vivem em situação de violência doméstica, e tal hipótese deve ser considerada e exigirá o acompanhamento por parte do Estado e da sociedade civil organizada (2).
Outro pressuposto está relacionado ao orçamento disponível aos programas de proteção à mulher. Desde 2015 o orçamento da Secretaria da Mulher, órgão do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, foi reduzido de R$119 milhões para R$5,3 milhões, de acordo com levantamento feito pelo jornal O Estado de S. Paulo. Durante esse período, o montante voltado ao atendimento às mulheres em situação de violência diminuiu de R$ 34,7 milhões para R$ 194,7 mil. Ou seja, locais em que os serviços não estão funcionando adequadamente ou há indisponibilidade de acesso pelas mulheres, os feminicídios crescem (4).
5. CONCLUSÃO
De acordo com a revisão realizada, em relação aos casos de violência contra as mulheres, é possível notar duas vertentes decorrentes do isolamento social causado pela pandemia da COVID-19. O isolamento social, além de trazer uma maior aproximação entre a vítima e seu agressor, gerando maior probabilidade da ocorrência de violência de gênero, seja ela física, moral, psicológica ou sexual, também impossibilitou as vítimas de se deslocarem às delegacias, seja para realização dos boletins de ocorrência ou das medidas de proteção de urgência. Dessa forma, em função do isolamento as vítimas não têm conseguido deslocar-se de casa para fazer a denúncia ou têm medo de realizá-la dada a aproximação com relação a seu parceiro/agressor, o que gerou, por conseguinte, as nuances observadas nas estatísticas.
Embora os registros administrativos aparentemente indiquem redução da violência de gênero devido às questões já elucidadas anteriormente, os números de feminicídios apresentam crescimento, indicando que a violência doméstica e familiar está em ascensão. Além disso, é evidente o aumento significativo no número de denúncias feitas ao 190 e à Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (Ligue 180). É preciso ter em mente, portanto, a frequente subnotificação presente neste período, o qual há dificuldades na comunicação ou no acesso físico aos canais de denúncia. Percebe-se, portanto, a importância dos registros que são fundamentais para romper o ciclo da violência e, consequentemente, a contenção da violência final, o feminicídio.
Ademais, em tal cenário, é essencial considerar a incorporação de uma análise de gênero frente às políticas públicas e ações de saúde governamentais, além da necessidade da diversificação dos canais possíveis para denúncias das mulheres. Sugere-se que sejam realizados estudos epidemiológicos acerca do assunto, a fim do desenvolvimento de medidas específicas para proteção de mulheres vítimas da violência doméstica pelo parceiro íntimo, dado o contexto atípico da pandemia de COVID-19, garantindo amparo durante esta fase de pandemia, em que muitas mulheres se sentem incapacitadas e vulneráveis, uma vez que estão isoladas e que são coagidas pelos seus agressores, em seus próprios lares.
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