Relato de Caso

MANCHAS MONGÓLICAS PODEM MIMETIZAR LESÕES CORPORAIS: RELATO DE CASO

Como citar: Seba MC, Lima JRT, Carvalho FI, Miziara CSM, Miziara ID. Manchas mongólicas podem mimetizar lesões corporais: relato de caso. Persp Med Legal Pericia Med. 2021; 6: e211117.

https://dx.doi.org/10.47005/211117

Recebido em 21/02/2021
Aceito em 24/03/2021

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Os autores informam não haver conflito de interesses.

MONGOLIAN SPOTS CAN MIMIC BODY INJURIES: CASE REPORT

Maria Clara Cardoso Seba (1)

http://lattes.cnpq.br/4915048056589460https://orcid.org/0000-0002-4433-9845

Julia Ribeiro Targa de Lima (1)

http://lattes.cnpq.br/8217624703392824https://orcid.org/0000-0003-2458-6512

Fabiana Iglesias de Carvalho (2)

http://lattes.cnpq.br/1196600337961291https://orcid.org/0000-0003-2381-6937

Carmen Sílvia Molleis Galego Miziara (2)

http://lattes.cnpq.br/6916238042273197 – https://orcid.org/0000-0002-4266-0117

Ivan Dieb Miziara (3)

http://lattes.cnpq.br/3120760745952876https://orcid.org/0000-0001-7180-8873

(1) Acadêmica da Faculdade de Medicina do Centro Universitário ABC, Santo André – SP, Brasil.

(2) Professora Auxiliar da disciplina de Medicina Legal, Ética Médica, Deontologia Médica e Perícias Médicas do Departamento de Saúde da Coletividade da Faculdade de Medicina do Centro Universitário ABC, Santo André – SP, Brasil.

(3) Professor Titular do Departamento de Medicina Legal, Ética Médica, Deontologia Médica e Perícias Médicas da Faculdade de Medicina do Centro Universitário ABC, Santo André, SP, Brasil.

E-mail para correspondência: mariaclaracseba@hotmail.com

RESUMO

As manchas mongólicas são condições dermatológicas congênitas, frequentemente, observadas no período neonatal resultantes da migração de melanócitos para a derme durante a embriogênese. São manchas cinzento-azuladas localizadas, tipicamente, em região lombossacra, que tendem a regredir nos primeiros anos de vida. Como as lesões de pele são sinais frequentes em maus-tratos infantis, as manchas mongólicas podem ser interpretadas de forma equivocada como equimoses, que possibilitaria um falso diagnóstico. Este pode levar a consequências graves e dramáticas para o paciente e os familiares, além de sobrecarregar o sistema público. Por isso, faz-se indispensável que os profissionais de saúde saibam diferenciar manchas mongólicas de lesões decorrentes de maus-tratos infantis. Esse estudo tem por objetivo descrever um caso que foi equivocadamente atribuído a maus-tratos pela presença de manchas mongólicas em locais atípicos.

Palavras-chave: mancha mongólica, diagnóstico diferencial, maus-tratos infantis.

ABSTRACT

Mongolian spots are congenital dermatological conditions often observed in the neonatal period resulting from the migration of melanocytes to the dermis during embryogenesis. They are bluish grey spots typically located in the lumbosacral region, which tend to regress in the first years of life. As skin lesions are frequent signs in infant maltreatment, Mongolian spots can be misinterpreted as ecchymoses, which would lead to a false diagnosis. This can culminate in serious and dramatic consequences for the patient and family, as well as overloading the public system. Therefore, it is essential that health professionals know how to differentiate Mongolian stains from injuries resulting from child abuse. This study aims to describe a case that was mistakenly attributed to mistreatment for the presence of Mongolian spots in atypical places.

Keywords: Mongolian spot, diagnosis, differential, child abuse.

1.INTRODUÇÃO

As lesões cutâneas são principais sinais de maus-tratos infantis devido à pele ser o maior e mais exposto órgão do corpo humano (1). Nesse sentido, podem ser interpretadas de forma equivocada, o que possibilitaria um falso diagnóstico. Existem diversas alterações cutâneas fisiológicas que mimetizam lesões de abuso físico, principalmente, quando localizadas em locais atípicos. Desse modo, é possível afirmar que cerca de 90% das vítimas de abuso físico apresentam essas lesões ao exame físico (2).

Dentre as alterações cutâneas que podem simular lesões provocadas intencionalmente, as manchas mongólicas devem ser consideradas, uma vez que podem ser confundidas com equimoses (1,3).

As manchas mongólicas, classificadas como alteração cutânea pigmentar, são condições dermatológicas congênitas resultantes da migração de melanócitos derivados da crista neural para a derme durante a embriogênese. São observadas, frequentemente, no período neonatal, possuem coloração cinzento-azulada e se localizam, predominantemente, em região lombossacra. Além disso, as manchas tendem a regredir nos primeiros anos de vida, porém podem permanecer por tempo indefinido (4).

Ressalte-se que, a presença de alterações cutâneas que mimetizam abuso físico não exclui a possibilidade da coexistência entre ambos (1). Assim, é de extrema importância que os profissionais da saúde saibam diferenciar de forma precoce e assertiva manchas mongólicas de lesões decorrentes de maus-tratos infantis. Esse estudo teve por objetivo descrever as manchas mongólicas que podem ser confundidas com lesões traumáticas intencionais.  

2.MATERIAL E MÉTODO

Estudo desenvolvido no Centro Universitário da Faculdade de Medicina do ABC (FMABC) no Estado de São Paulo, por meio de revisão narrativa de literatura sobre manchas mongólicas, focando no diagnóstico diferencial com lesões cutâneas traumáticas. Portanto, não foram aplicados critérios explícitos e sistemáticos de busca. A seleção dos artigos foi determinada pelos autores de acordo com a relevância. Da mesma forma, não foi estabelecido período para a realização da busca de materiais. As bases de dados pesquisadas foram as de livre acesso (PubMed; Capes Periódicos; e Google Acadêmico) com a aplicação dos descritores em ciências da saúde “Mongolian spot”, “diagnosis, differential” e “child abuse” agrupados pelos operadores booleanos “and” ou “or”. Os critérios de inclusão, além da relevância do material, foram artigos escritos em idioma de língua portuguesa, inglesa ou francesa, os obtidos na íntegra e os que versavam sobre o tema.

3.RELATO DE CASO

Criança do sexo masculino, 9 meses de idade, cor de pele branca, foi atendida em pronto-socorro com quadro de febre, choro e irritabilidade iniciados há dois dias. Antecedentes pessoais: quarta gestação de casal não consanguíneo, nascida de parto cesáreo, que transcorreu sem intercorrências, na 35ª semana, com peso adequado para a idade gestacional e escore de Apgar 9/10. Os desenvolvimentos neuropsicomotor e pondoestatural estavam de acordo com o esperado para a idade.

Após exames clínico e laboratoriais, foi descartada infecção. No entanto, os médicos assistentes notaram a presença de múltiplas manchas cinzento-azuladas em região dorsal baixa, de glúteos, punhos e tornozelos, com tamanhos variados, planas, com bordas nítidas e que desapareciam à digitopressão. A partir desta observação, interpretaram como sendo equimoses e suspeitaram de maus-tratos.  A criança foi submetida à investigação radiológica por meio de tomografia computadorizada de crânio e radiografias de esqueleto, mas não foram notadas anormalidades.

Diante da suspeita de maus-tratos, a equipe médica comunicou o Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente e manteve a criança internada como medida protetiva. Com a evolução clínica associada à ausência de evidências de maus-tratos, foi confirmado que as lesões cutâneas se tratavam de manchas mongólicas e não de equimoses.

mancha mongolica
mancha mongolica
3 mancha mongolica
Figs. 1, 2 e 3: Na sequência de imagens acima, pode-se ver manchas mongólicas cinzento-azuladas em tornozelo, punho e região lombossacra e nádegas, respectivamente.

4. DISCUSSÃO

As manchas mongólicas, assim como a maior parte das alterações cutâneas que ocorrem no período de transição da vida intrauterina para a extrauterina, têm caráter fisiológico, benigno e transitório. Essas alterações surgem em razão das peculiaridades da pele do recém-nascido, uma vez que esta, composta por anexos cutâneos ainda imaturos ao nascimento passa, gradativamente, por um processo de maturação no período neonatal precoce. Destarte, em geral, não necessitam de qualquer intervenção, terapêutica ou cirúrgica (5,6).

As manchas mongólicas constituem uma hiperpigmentação de tom frequentemente azul-acinzentado, que surge pelo fluxo migratório de melanócitos para a derme durante a fase embrionária e se localizam tipicamente em região lombossacra e dos glúteos. Porém, quando se apresentam em locais atípicos (punhos e tornozelos), são denominadas de manchas mongólicas ectópicas. Dentre suas características, as manchas tendem a regredir nos primeiros anos de vida e desaparecer até os seis anos. Entretanto, em alguns casos, permanecem indefinidamente.

Segundo Krüger et al. (6), a prevalência dessa alteração varia entre 20% e 89%, amplitude essa que reflete as diferenças étnicas, pois ocorre com maior frequência nas populações com pele de maior fototipo (72% a 89%) (6). Nesse sentido, é possível afirmar que há ligação entre a presença de manchas mongólicas e a ascendência da criança (4), assim como crianças com manchas mongólicas filhas de puérperas primíparas (6).

A coloração das manchas mongólicas assume, frequentemente, tons cinzento-azulados, mas podem aparecer em tons arroxeados, azul-avermelhados e preto-amarronzados, dependendo do tom de pele da pessoa (4), aumentando, dessa forma, as chances de serem confundidas com equimoses, principalmente se estiverem dispostas em áreas ectópicas, como em punhos e tornozelos, que são regiões resultantes de imobilizações brutais, sugerindo maus-tratos (7).

Entretanto, diferentemente das equimoses, as manchas mongólicas têm bordos delimitados, são planas e não sofrem mudança de pigmentação com o passar do tempo. Por sua vez, as equimoses, por serem resultantes do extravasamento de sangue decorrente de traumas, possuem sinais de inflamação e, ao longo do tempo, têm sua coloração modificada (3).

No caso em questão, os pais da criança relataram a presença dessas alterações desde o nascimento e, durante o período de internação, as manchas permaneceram inalteradas em tom e em tamanho, o que implica em sinal indicativo de manchas mongólicas. A ausência de formatos específicos sugestivos de beliscões, palmadas ou que refletissem a forma de algum objeto utilizado para infringir maus-tratos (cordas, cintos, fivelas e varetas) (2) também devem ser considerada no estabelecimento dos diagnósticos diferenciais.

É importante frisar que as manchas mongólicas e as lesões decorrentes de abuso físico podem existir concomitantemente, devendo os profissionais realizarem anamnese e exame físico detalhados. Todas as medidas de proteção à criança devem sempre ser adotadas, mas o conhecimento da possibilidade de mancha cutânea de origem não traumática poderá evitar diagnósticos equivocados e desdobramentos dramáticos tanto para a crianças como para seus familiares, além de não sobrecarregar os sistemas hospitalares com exames laboratoriais e internações desnecessários. Por fim, persistindo a dúvida de ser lesão intencional ou acidental, deve-se encaminhar a criança para a perícia com médico-legista.

5. CONCLUSÃO

A relevância desse caso advém da importância do diagnóstico diferencial das alterações cutâneas comuns, como as manchas mongólicas, de lesões cutâneas traumáticas, por exemplo, causadas por maus-tratos. Dado o fato de que as crianças vítimas de maus-tratos não possuem capacidade de defesa ou, quando têm, é de forma limitada, as lesões cutâneas podem fornecer elementos importantes sobre maus-tratos. Assim, o diagnóstico equivocado de equimoses como sugestivos de maus-tratos pode levar a consequências graves para o paciente, para a família e para o suposto acusado, além de sobrecarregar o sistema público (3). Por isso, faz-se indispensável que os profissionais de saúde saibam diferenciar manchas mongólicas de lesões decorrentes de maus-tratos infantis.


Referências bibliográficas

  1. Patel B, Butterfield R. Common skin and bleeding disorders that can potentially masquerade as child abuse. Am J Med Genet Part C Semin Med Genet. 2015;169(4):328–36. https://doi.org/10.1002/ajmg.c.31462
  2. Gondim RMF, Muñoz DR, Petri V. Child abuse: Skin markers and differential diagnosis. An Bras Dermatol. 2011;86(3):527–36. http://dx.doi.org/10.1590/S0365-05962011000300015 
  3. Aljasser M, Al-Khenaizan S. Cutaneous mimickers of child abuse: A primer for pediatricians. Eur J Pediatr. 2008;167(11):1221–30. https://doi.org/10.1007/s00431-008-0792-0
  4. Kettner M, Birngruber CG, Niess C, Baz-Bartels M, Bunzel L, Verhoff MA, et al. Mongolian spots as a finding in forensic examinations of possible child abuse–implications for case work. Int J Legal Med. 2020;134(3):1141–8. https://doi.org/10.1007/s00414-019-02208-9
  5. Lobo I, Machado S, Selores M. Alterações cutâneas fisiológicas e transitórias do recém-nascido. Rev Nascer & Crescer. 2009;18:19‑24.
  6. Krüger EMM, Sinkos F, Uhry JF, Bezerra De Boni JC, Okamoto CT, Malta Purin KS, et al. Dermatoses in the early neonatal period: Their association with neonatal, obstetric and demographic variables. Rev Paul Pediatr. 2019;37(3):297–304. http://dx.doi.org/10.1590/1984-0462/;2019;37;3;00012 
  7. Piérard GE. Reconnaître sur la peau des signes de maltraitance infantile[Recognizing the signs of child abuse on the skin]. Rev Med Liege. 1997May;52(5):320-3. French. PMID: 9273632. Disponível em: https://orbi.uliege.be/handle/2268/167555