A pesquisa contida neste artigo é resultado de Pós-doutorado realizado no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), no período de outubro de 2020 a dezembro de 2021 sob a supervisão das Profas. Eméritas Zélia Ramozzi-Chiarottino e Eda Terezinha de Oliveira Tassara e aprovada em 07/03/2022, pela Pró-Reitoria de Pesquisa desta Universidade. O autor informa não haver conflito de interesse.
ARISTOTLE’S PHILOSOPHY OF TERTIUS AS A GUIDE TO A NEW CONCEPT OF BIOLOGICAL IMPLICATION IN THE SCOPE OF THE ORGANISM. APPLICABILITY TO FORENSIC MEDICINE.
José Jozefran Berto Freire (1)
http://lattes.cnpq.br/5765442081508009 – https://orcid.org/0000-0003-1817-9427
(1) Universidade Estadual do Pernambuco. Recife-PE, Brasil (autor principal)
E-mail: jjbertofreire@gmail.com
RESUMO
Este artigo tem como objetivo comprovar que os conceitos de tendência e implicação biológica estão contidos no denominado tertius da filosofia aristotélica. O tertius, ou meio termo, ou ainda, o in medio virtus, está contido entre a percepção empírica e o pensar, para Aristóteles, e por isso, em nosso entendimento, tornou-se possível todo o avanço da ciência, da filosofia e ainda a explicação do caráter científico de tantas teorias e proposições. Nesse universo do pensar, os conceitos acima referidos estão entre o universal, o necessário e o que ocorre no mais das vezes, quando se faz ciência, como afirma o filósofo. Neste artigo, começaremos com um excerto sobre o pensar aristotélico; a seguir, serão abordadas as reflexões sobre a “experiência”, o “frequente”, a “tendência” e por fim sobre a implicação biológica comprovando a correta inserção desses dois últimos conceitos no meio termo do pensar ciência como ensinava Aristóteles. A logicidade do pensar e agir na Medicina Pericial é fundada na lógica aristotélica, portanto, nos princípios da não contradição, do terceiro excluído, da identidade e ainda, na causalidade contida na filosofia de Aristóteles. A medicina pericial está incluída no conceito do tertius aristotélico através do frequente aristotélico e da implicação biológica como propomos.
Palavras-chave: Filosofia da ciência, implicação biológica, tendência, experiência, frequente aristotélico, Medicina Pericial.
ABSTRACT
This article aims to prove the concepts of tendency and biological implication are contained in the so-called tertius of Aristotelian philosophy. The so-called tertius, or Middle term, or even in medio virtus, is contained between the empirical perception and the Aristotelian thinking, therefore, and in our understanding, allowing all the advancement of science, philosophy and the clarification of the scientific character of so many theories and propositions. In this universe of thinking, the concepts mentioned above are amid the universal and the necessary and in that which happens most of the time, whenever science is done, as stated by the philosopher. In this article, we’ll start with an excerpt on Aristotelian thinking, following with reflections on “experience”, “frequent”, “trend” and finally, on biological implication, proving the correct insertion of these two last concepts in the Middle term of thinking about science as it was taught by Aristotle. Forensic Medicine is included in the concept of the Aristotelian tertius through the Aristotelian frequency and the biological implication as we propose.
Key-words: science philosophy, biological implication, tendency, experience, frequent Aristotelian, Forensic Medicine.
1. INTRODUÇÃO
Diversos filósofos, historiadores da ciência e da filosofia escreveram sobre as obras de Aristóteles e classificaram seus escritos em esotéricos/acroamáticos e exotéricos. Os termos acroamático/esotérico são aplicados às obras aristotélicas em que se encontra o sentido apodítico da ciência; o termo exotérico é usado para o sentido do dialético e do verossímil.
O presente artigo aborda o denominado meio termo, ou seja, o tertius entre o universal e o necessário do pensar aristotélico, sob a ótica dos denominados escritos acroamáticos do filósofo.
O objeto da presente pesquisa, desta forma, é comprovar que os conceitos de tendência e implicação biológica podem ser inseridos no meio termo, ou seja, no conceito do tertius do pensar aristotélico.
2. METODOLOGIA
A metodologia utilizada foi a abordagem qualitativa, histórica e propositiva, cujas características possibilitam pesquisar a possibilidade, ou não, de inserções conceituais em determinadas vias e caminhos do que denominamos de filosofia aristotélica.
Os temas abordados são os seguintes: 1- Um excerto do pensar ciência em Aristóteles; 2 – A interpretação sensorial da experiência; 3 – O frequente aristotélico como instrumento do justo meio e da reta razão; 4 – Atendência como instrumento do justo meio e da reta razão; 5 – Da implicação biológica, necessária (mas não universal) colocada no âmbito do meio termo do pensar ciência sob a ótica da filosofia aristotélica. 6 – A aplicabilidade da implicação biológica no agir médico pericial.
Estes temas acima citados contribuem para a expansão do conceito do tertius que o filósofo nos legou e cujo caminho, por sua vez, permitiu a expansão do conhecer no mundo ocidental, segundo nosso entendimento.
3. DISCUSSÃO
3.1. UM EXCERTO DO PENSAR CIÊNCIA EM ARISTÓTELES
3.1.1 O necessário, o universal e o tempo.
Um estudo sumário da ciência na antiguidade clássica, especialmente no pensamento de Platão e Aristóteles, pode iniciar-se com as características daquilo que é necessário e universal e ainda modulado pelo tempo. O conceito de necessário em ambos os filósofos é entendido como aquilo que não pode ser outra maneira. Foge-se aqui do que é contingente, ou seja, daquilo que se transforma, que poderia ser de outra forma e que, portanto, não pode ser generalizado.
A modulação temporal acima referida pode ser feita através do célebre conceito de tempo, em Platão, que o designa como “uma imagem móvel da eternidade que procede segundo o número” e que está assim explicado no diálogo Timeu(37d),Gobry (1) ( p. 85)e do conceito de tempo em Aristóteles (2), ou seja, “o número do movimento segundo o anterior – posterior” e que está contido no livro da Física (IV 10-14). O tempo enquanto modulador fenomênico é referenciado desde os pensadores pré-socráticos; por exemplo, nas reflexões de Heráclito, Parmênides, Demócrito, porém, é na filosofia de Platão, especialmente no Timeu e na sistematização contida no Tratado do tempo na Física de Aristóteles (2), que se encontra reflexão mais ampla e profunda sobre o tema. Nestas obras, encontramos as devidas referências científicas para o conceito de tempo que chega aos nossos dias, especialmente quando se trata da ciência da natureza.
O estudo da ciência da natureza na Grécia antiga, tanto na versão clássica quanto na versão helenística e suas resultantes neoplatonismo e neoaristotelismo, enfim, um certo helenismo, chega até os nossos dias. Estudo este que organizou ao longo do tempo a ciência, o pensamento científico de um modo geral e que, por isso, também trouxe o aprofundamento no estudo das causas e melhor ainda, da causalidade, esta, enquanto a condição necessária e suficiente que une uma causa ao seu efeito.
A causa, aqui tem, como elemento definidor, a célebre afirmação aristotélica “item imanente de que algo vem”. Considere-se ainda o caráter de suficiência, isto é, aquilo que basta que ocorra por extensão no sentido cartesiano do termo e, torna completo o que se pode propor enquanto explicação fenomênica adequada.
A ciência da natureza, neste artigo, tem como fundamento os textos completos de Aristóteles: Analíticos Anteriores e Posteriores, aMetafísica, A Ética a Nicômaco, De Animae os demais textos do Órganon, sem, no entanto, deixar de citar as demais obras do filósofo, onde se encontram também conceitos relevantes do pensar científico. O pensar ciência permeia todos os escritos de Aristóteles. Há na obra do filósofo, uma tal quantidade de conceitos que não permite ao seu leitor um desenrolar fácil, onde a restrição conceitual, ou antes, o axiomatizar-se as suas proposições seja algo de fácil consecução. Lê-lo superficialmente é impossível.
José Arthur Giannotti, em prefácio do Livro de Oswaldo Porchat Pereira (3) “Ciência e Dialética em Aristóteles”, nos revela a densidade intelectual de Porchat Pereira quando diz que neste livro ele fez uma longa e exaustiva análise estrutural dos Segundos Analíticos, o que nos leva, ao ler o seu trabalho, conhecer seu alto nível de exigência e esforço para tê-lo realizado. Além disso, exige-se, para sua leitura, conhecimento prévio de História da Filosofia, especialmente da própria filosofia aristotélica; não é decididamente para um neófito.
3.1.2 A epistéme em Aristóteles.
Por que se estudar e escrever sobre Aristóteles depois de quase dois mil e quinhentos anos e após milhares de estudiosos o terem feito? Após diversas escolas de filosofia terem desenvolvido e influenciado a cultura ocidental com o pensamento do Estagirita, a ponto de se dizer que o mundo ocidental de hoje é aristotélico, o que é fácil negar? Para responder a estas perguntas, na construção deste artigo, nas diversas horas de estudo, tive diversos momentos de grandes dificuldades teóricas. Foi percebido por mim, em proporções diversas, que a análise estrutural de uma obra com essa envergadura exige muito e, seu minucioso estudo demonstra cabalmente as dificuldades que foram vencidas por Porchat Pereira. Giannotti (3), ao apresentar o livro “Ciência e dialética em Aristóteles”, de Porchat Pereira, assim se manifesta: “Estudo aprofundado da noção aristotélica de epistéme, fazendo-nos remontar a seus elementos e as suas condições de possibilidade. Mostrando como, ao contrário do que por muito tempo se disse, Aristóteles valorizou de modo todo especial o saber matemático, que tomou como paradigma em sua análise da cientificidade. São as matemáticas que revelam a Aristóteles a natureza da epistéme. Ciência. Saber demonstrativo. A natureza dos silogismos da ciência. A natureza das premissas. A noção de princípio e a indemonstrabilidade dos princípios. As noções de “por si” e de universal, de “frequente” (hós epì tò polý), do ‘necessário’. A noção de gênero científico e o problema da metabasis (passagem de um gênero ao outro). A doutrina da metabasis e a natureza particular da física matemática. A questão da divisão das ciências”. (3) (p. 17).
Já o estudo da epistémé nosSegundos Analíticos, revela a enorme capacidade intelectual do pensar de Aristóteles, quando este caminha entre a explicitação da sua Analítica sensu lato com a noção de sua dialética também sensu lato, que permite à frente a construção do silogismo demonstrativo e científico. Aqui, o filósofo mostra a vertente heurística e educativa de uma das suas propostas educativas e sua devida aplicação. Para Aristóteles (4), “Em definitivo, o que distingue o sábio do ignorante é o poder ensinar, e por isto consideramos que a arte é mais ciência que a experiência, pois aqueles podem e estes não podem ensinar”. (4) (p.8-918b5) (Tradução livre).
A explicação e a aplicação dos conceitos que eram e foram ensinados, tanto à época de Aristóteles quanto ao longo do tempo, até a atualidade, especialmente os acroamáticos, pode-se dizer, fundamenta em parte, a pesquisa científica da atualidade. Nesta vertente da pesquisa científica, o ordenamento dos princípios precisa ser primário, imediato ao conceito e o seu objeto, o que por consequência permite o conhecer, pois o conhecer é feito através dos conceitos e sem eles o ato de conhecer se torna inexequível. Há, ainda, a necessidade de se deixar patente a indemonstrabilidade do princípio, pois Aristóteles (4) assim o definiu. Quando ocorre a necessidade demonstrativa, não se tem princípio e sim proposição com caráter normativo, nomológico ou não. A demonstração é condição inerente à lógica, está evidenciada no silogismo e é também o resultado das reflexões produzidas no processo dialético aristotélico.
A dialética aristotélica, enquanto caminho para o conhecer, não se apresenta como indutora de princípios, esse exercício amplamente praticado conduz à relação existente, por exemplo, no denominado “quadrado lógico”, onde o filósofo nos ensina o pensar metódico, que, por sua vez, demonstra que do particular (via indutiva) não se chega ao geral, sim, à possibilidade e à probabilidade que são grandezas matemáticas. Na opinião de Giannotti, na referida apresentação de Porchat Pereira (3): “A intuição deles é o ponto de inflexão em que se consuma a inversão crucial do processo de conhecimento, quando termina a etapa ascendente, investigativa, prospectiva e heurística e pode, então, ter começo a etapa descendente, demonstrativa e dedutiva, em que a ciência exibe sua estrutura lógica que reproduz a estrutura causal pela qual o real mesmo se articula”. (3) (p. 18).
Porchat Pereira (3), ao comentar o conceito de ciência em Aristóteles, o faz a partir do estudo estrutural dos Segundos Analíticos ou Analíticos Posteriores, como este trabalho do Estagirita é conhecido. Assim, comenta o autor: “Julgamos conhecer cientificamente cada coisa, de modo absoluto e não, à maneira sofística, por acidente, quando julgamos conhecer a causa pela qual a coisa é, que ela é a sua causa e que não pode essa coisa ser de outra maneira. Tal é a noção famosa de conhecimento científico que os Segundos Analíticos formulam, quase em seu início, e a cuja elucidação e explicitação pode, de certo modo, dizer-se que a totalidade do tratado se consagra”. (3) (p. 35).
O ponto central do conhecimento científico na obra aristotélica está contido no conceito de epistéme e nas relações deste conceito com toda uma gama de outros, que formam uma extensa e complexa rede conceitual. Rede esta que une as vertentes investigativas, empíricas, reflexivas por via indutiva e na sequência dedutiva, demonstrativa, como foi explicado pelo filósofo ao longo dos textos, por exemplo, nos Analíticos.
As vias da estruturação lógica da dialética aristotélica, presentes nos Analíticos, não ficaram restritas ao que comumente se ensinou sobre ela, ou seja, o ordenamento que está contido nos princípios da não contradição, do terceiro excluído e da causalidade, ou ainda, com o estabelecido no princípio da identidade, pois o filósofo nos apresenta outras situações em que o necessário e o universal, onde se faz ciência com a devida certeza, podem ser e foram acrescidos por outros conceitos, por exemplo, na explicação de fenômenos naturais presentes, repetitivos e com mesma organização, que levou por consequência à criação do conceito do “frequente” (termo este cunhado por Porchat Pereira), derivado do (hòs epì tò polú – hos epi to polu), ou seja, daquilo que ocorre no mais das vezes, conceito este que a princípio pode parecer paradoxal, pois não está contido no necessário e no universal clássicos, que Aristóteles (4) definiu como essenciais ao conhecimento científico.
No livro I da Metafísica, Aristóteles (4) apresenta as reflexões sobre os fenômenos repetitivos que permitem identificação específica inerente ao objeto do conhecer e que são acessíveis pela experiência. Discorre ainda o filósofo sobre os anseios, desejos, expectativas e capacidades de perceber o meio ambiente de cada um, de entender a natureza e ainda os fenômenos que a cercam. O filósofo parte então da reflexão sobre os sentidos que tornam possível a experiência que permite o conhecer. Este, o conhecimento advindo da physis – physis e da relação desta com a especulação abstrata e reflexiva elaborada pela filosofia. A partir do vínculo que existe entre a concretude do objeto, a busca heurística, e a seguir a via demonstrativa da filosofia, o filósofo explica o entorno de cada um e sua construção.
3.2. A INTERPRETAÇÃO SENSORIAL DA EXPERIÊNCIA
3.2.1 A interpretação do entorno
Como o ser humano interpreta o seu entorno? Como ele aprende? Na ótica da moderna neurofisiologia, por exemplo, como responder a essas questões quase escatológicas? Isto é respondido pela estrutura somestésica do Sistema Nervoso tanto na sua organização central quanto na periférica. Os sentidos da visão, da audição, do gosto, da olfação e do tato têm sua estruturação de há muito conhecida. Sumarizamos essas informações neurofisiológicas e as associamos ao pensar aristotélico sobre os órgãos dos sentidos como as portas para o conhecimento possível.
O termo possível, na vertente inferencial, já está contido, ou melhor, subsumido, nos conceitos de tendência “órexis – orexis” e no conceito do frequente, que significa “daquilo que ocorre no mais das vezes” hós epì tò polú – hos epi to polu” derivados, ambos os conceitos, da visão matematizante da lógica clássica, validando o conceito aristotélico do justo meio. Aqui se encontra o caminho para um tertius entre a percepção física e o pensamento abstrato.
O objetivo nesta etapa do presente artigo é a comprovação do conceito de “experiência”, sob a ótica dos conceitos de “tendência” e “frequente” na visão aristotélica dos termos, ou seja, dos meios através dos quais também se pode chegar ao conhecimento, conceitos estes que serão comprovados na sequência, como norteadores do presente artigo.
A experiência “empeiría – empeiria” leva-nos ao pensar aristotélico sobre as capacidades perceptivas do cérebro humano, ou seja, o caráter heurístico aliado à reflexão subsequente, permite-nos estabelecer relações, objetivar-se o fenômeno e chegar-se à devida interpretação no sentido peirceano do termo, ou seja, a terceira figura da linguagem e, assim, se convalidar a realidade vivenciada através dos sentidos.
No Parva Naturalia, Aristóteles (5) abordou as sensações advindas dos sentidos, analisou cada um deles e estabeleceu as significações explícitas na categoria da relação e ainda, e principalmente, explicitou os vínculos com a sua sistematização lógica, através dos mecanismos inferenciais, estes, advindos das reflexões que o Estagirita fez da dialética platônica, que foi transformada no silogismo por ele, como disse Morente (6)
No início da Parva Naturalia, Aristóteles (5), adverte que no tratado da alma (De Anima) ele mostrou as diversas faculdades e atributos que quase todos os seres vivos têm. Houve para o filósofo a necessidade de se mostrar as vias, os caminhos através dos quais ele pode explicar que a experiência para os seres vivos e, especialmente para o ser humano, devidamente repetida e guardada na memória promove além da vivência, poder interpretar (sensu lato) os fenômenos, tanto na visão psíquica e afetiva quanto na visão cognitiva. Estes caminhos metódicos são os sentidos e os sensíveis como veremos: “Os mais importantes atributos dos animais, comuns ou particulares, são evidentemente os que dizem respeito tanto à alma quanto ao corpo, tais como sensação, memória, paixão, apetite e desejo em geral, adicionando-se a isso prazer e dor; e esses atributos pertencem a quase todos os seres vivos”. (5) (p. 39; 436ª 5-10).
Pode-se ler nessas características dos animais, especialmente, a capacidade atributiva dos seres humanos aplicadas aos eventos fenomênicos, aos dados, aos elementos, que ocorre através das relações específicas advindas da língua mãe, como por exemplo, na relação sujeito/predicado. Aplicada esta leitura aos instrumentos biológicos, mais efetivos tornam-se o conhecer e o explicar a complexa estrutura dos órgãos dos sentidos. Veja-se a comparação entre as explicações destes sentidos na visão atual e aquelas feitas por Aristóteles, obviamente após mais de 2500 anos de história e da ciência o cenário das explicações é diverso. No entanto, a lógica do pensar na vertente inferencial também mudou? Vejamos, a começar pela audição.
3.2.2 A experiência ouvida
A estrutura da audição aqui designada como a “experiência ouvida” é constituída por complexa organização em alguma forma similar aos demais órgãos sensórios, pois é constituída por diversos sistemas (na interpretação kantiana, sistema é conjunto de elementos diversos unificados por uma ideia) de receptores que conduzem os estímulos sonoros aos receptores do som disponíveis no corpo.
Partindo-se da ideia de evolução dos animais, melhor ainda, evolução das espécies, tanto na vertente darwinista quanto neodarwinista, a detecção dos sons, ruídos, deslocamentos do ar, da água e outros volumes, percebidos pela orelha humana, foram essenciais para a preservação e a evolução do homem. A construção e o desenvolvimento dos receptores auditivos e do equilíbrio ajudaram a tornar possíveis as adaptações necessárias, que propiciaram a convivência com o entorno e a devida leitura da experiência, termo criado por Piaget (22), guardada na denominada memória orgânica, que embasou as adaptações da espécie ao seu meio ambiente. Muito embora, estes receptores tenham funções diversas, são muito semelhantes na estrutura celular.
Os receptores da audição e do equilíbrio têm origem embriológica no tecido epitelial e ao longo do processo evolutivo desenvolveram aptidões que os tornaram capazes de receber estímulos e chegar ao nível da denominada transdução mecanoelétrica. Transdução esta que atua no campo auditivo e do equilíbrio, nas funções de captar, conduzir e identificar os sons e naquelas outras funções que permitem o equilíbrio corpóreo e, onde acontecem sinapses com fibras nervosas, que pertencem aos chamados neurônios de segunda ordem e aí à codificação neural.
O sistema auditivo é constituído por um ordenamento de receptores acústicos miniaturizados que ocupam um espaço cerebral do volume de uma ervilha. Esses detectores podem conduzir vibrações pequenas como o diâmetro de um átomo e são milhares de vezes mais rápidos que os fotorreceptores visuais.
A perda da função auditiva tanto parcial quanto total é por isso, mais grave que a perda da função visual, embora vivamos em mundo de imagens, portanto, visual. A percepção da relevância da função auditiva, para o conhecer, já está contida na Parva Naturalia. O sistema auditivo percebe a forma da onda sonora, a amplitude, a fase e a frequência sonora. A substituição dessa atividade do cérebro humano pela visão e pelo tato é possibilitada parcialmente e depende do devido uso instrumental e do treino.
A possibilidade do conhecer através dos sentidos e referenciados por Aristóteles como resultado da experiência, na vigência da patologia cria outras realidades e, portanto, outros processos do conhecer. Muito se aprendeu no último século sobre as funções cerebrais devido ao que denomino de “olhar heurístico da patologia”, demonstrando-se assim as diversas vias que se pode escolher para o aprendizado.
Aristóteles (5), orienta-nos, que naquilo que é sentido, sensação, há os que são particulares e os comuns a todos os animais. Entre os particulares estão quatro pares: “o sono e a vigília, a juventude e a velhice, a aspiração e a expiração e por último o par vida e morte”.
Para Aristóteles (5) o Filósofo da Natureza deve: “Conhecer bem os primeiros princípios da saúde e da doença, uma vez que nem a saúde nem a doença podem existir em coisas destituídas de vida. Daí estarmos facultados a afirmar, com relação à maioria daqueles que investigam a natureza e com relação aos médicos que se interessam mais filosoficamente por sua arte, que enquanto os primeiros acabam por estudar medicina, os segundos principiam com base num exame da natureza”. (5) (p. 40; 436ª 15-20.)
Os animais que se movem de forma autônoma têm, na opinião de Aristóteles (5), três sentidos que atuam nos denominados por ele meios externos, a olfação, a visão e a audição. Esta audição foi entendida pelo filósofo com certas limitações, as quais ele minimiza, pois, apesar das limitações é de extrema importância para a vida de relação. Veja-se o que diz o Estagirita (5) sobre a audição que, embora: “[…] limite-se a perceber diferenças de som e, no que respeita a alguns poucos animais, diferenças de voz. De maneira indireta, a audição é a que mais contribui para a inteligência e o saber, uma vez que o discurso racional é a causa do aprendizado devido ao fato de ser audível, o que ele não é por si mesmo, porém indiretamente, visto que composto por palavras, e cada palavra é um símbolo. Consequentemente, aqueles indivíduos aos quais faltam um sentido ou outro desde o nascimento, os cegos são mais inteligentes e mais instruídos do que os surdos e os mudos” (5) (p.41-42; 437ª 10-15).
3.2.3 A experiência pelo olhar
Vejamos a experiência pelo olhar e sua importância na vivência para o ser cognoscente. Deve-se enfatizar também pela sua importância a vertente poética do olhar e a arte nela inserida, as suas circunstâncias e as estruturas usadas na sua atividade. As vias para o conhecimento do olhar enquanto sentido, talvez o mais proeminente socialmente falando é também estruturalmente complexa. Esse sentido é propiciado aos animais pela relação entre a energia luminosa e os denominados fotorreceptores na retina. Algo que também foi bem referido no texto de Descartes (7) O mundo ou o Tratado da Luz: “Não conheço no mundo mais que dois tipos de corpos nos quais a luz se encontra, a saber, os astros e a flama ou o fogo. E, como os astros estão, sem dúvida, mais distantes do conhecimento dos homens que o fogo ou a flama, procurarei explicar, primeiramente, aquilo que observo no tocante à flama”. (7) (p. 23).
O olho pode ser referido, se nos ativermos, ao referente contido na alta tecnologia, (tomando-se em consideração que a alta tecnologia de hoje em relação com a estrutura ocular é ainda muito pouco explicativa), como um instrumento de percepção extremamente automatizado e que permite a interpretação do fenômeno imagético. A estruturação anátomo funcional da visão é a seguinte: a luz converge para o olho e chega à retina, onde a imagem captada produz uma denominada reação de transdução foto neural nos fotorreceptores; aqui se gera um potencial de recepção da informação, que por sua vez leva às outras células da retina a novos potenciais elétricos. Esses potenciais elétricos são levados ao nervo ótico que propiciará o fluxo das informações que chegarão às áreas visuais do encéfalo quais são: o mesencéfalo, o diencéfalo e outras regiões do encéfalo.
A luz é descrita pela física como uma energia peculiar definida nos fótons, que ora se comportam como partículas ou ainda como ondas. As características físicas fundamentais da luz, que é uma energia radiante, são a amplitude e o comprimento de onda. Não se dando, aqui, muita relevância à característica de partícula representada no fóton.
A luz é entendida por muitos como algo que torna a percepção mais importante, no entanto, sabe-se que detalhes da atividade cerebral, por exemplo, o ciclo do sono é impactado pela luz. Todos os sentidos apresentam diversas características, e a visão, por sua proeminência sensorial, nos permite: avaliarmos sua intensidade, seu brilho, a forma das coisas, as diversidades das cores, a percepção dos movimentos, os contornos e sua associação com o mover-se.
A organização sensorial da visão também é acompanhada pela coordenação da movimentação ocular e da cabeça. Veja-se a coordenação da visão binocular e monocular, os movimentos disjuntivos, os movimentos convergentes e divergentes e, ainda, a velocidade da percepção visual.
Aristóteles (5) faz a devida reflexão e análise do porquê, a maioria dos animais que tem o movimento necessitam da visão e como ela ocorre. Ele cita inicialmente os filósofos pré-socráticos Alcmeon e Empédocles e diz que o primeiro errou ao fazer referência a uma luz interna do olho e da junção com uma luz externa, que fluía através de pequenos orifícios (poroi). O filósofo também discute a ótica de Empédocles e o problema derivado da existência dos cinco sentidos e dos quatro elementos constitutivos da matéria (ar, água, fogo, terra) e como se ajustariam sob a ótica do pensar, o que deixava os filósofos com problemas graves para a devida reflexão.
Para conduzir a reflexão, Aristóteles (5) faz algumas perguntas e as explica: “Se o órgão visual fosse realmente fogo como sustenta Empédocles, e como é afirmado no Timeu, e se fosse produzida visão quando a luz saísse do olho tal como de uma lanterna, por que não deveria ser possível a visão também no escuro?” (5) (p. 43; 437b 10-15).
Após as observações sobre como diversos filósofos antes dele falaram sobre a visão, como Alcmeon de Crotona e Empédocles, Aristóteles (5) conclui com as seguintes observações: “Em termos gerais, é irracional supor que o olho vê devido a alguma coisa que dele sai; que o raio visual alcança até os astros, ou então simplesmente um certo ponto e, como afirmam alguns, une-se ao objeto. A suposição de que a união acontece na própria base do olho é melhor, embora mesmo isso seja tolo: afinal o que significa luz unir-se a luz? Como é possível que isso ocorra? A união não é algo que acontece entre coisas tomadas fortuitamente. E como a luz interior unir-se à exterior? Há uma membrana entre elas. Mostramos em outra parte que a visão é impossível na ausência de luz; não importa se é a luz ou o ar o intermediário entre o olho e o objeto, o que produz a visão é o movimento através desse intermediário. E, considerando a transparência da água, é bastante racional dizer que o interior do olho consiste de água. Ora, tal como não há visão exteriormente sem a presença da luz, também não há interiormente. Deve haver necessariamente uma transparência” (5) (p.45; 438 b 1-5).
A experiência como porta para o conhecer através dos sentidos, e designado por Aristóteles, fica mais evidente ao analisarmos hoje as expressões anátomo funcionais dos sentidos. Sabe-se da estrutura microscópica e físico-química dos sentidos, que os organiza e torna possível conhecer a complexidade e a devida interação com os córtices associativos. Também sabemos que os córtices associativos compõem o neocórtex e nele está contida a devida instrumentação da atividade encefálica, ou seja, as funções cerebrais, especialmente aqueles referentes às áreas cognitivas e afetivas.
3.2.4 A experiência sentida
A via anátomo funcional do tato, da gustação e da olfação é aqui expressa sob uma abordagem sintética, pois são estruturas por demais conhecidas e sua explicação beira a obviedade e nos leva a experiência sentida.
Pode-se começar com o que se denomina de via da sensibilidade visceral, que é uma apresentação terminal livre, com a nossa atenção para os corpúsculos de Vater que existem nas estruturas capsulares de diversas vísceras. As atividades neuronais que têm origem nas vísceras são da esfera inconsciente e fazem a regulação da atividade destas mesmas vísceras.
Na via, ou caminho gustativo, podemos focar nos receptores da língua e da epiglote, onde os impulsos que se distribuem nos dois terços anteriores da língua percorrem o trajeto do nervo lingual e chegam ao sistema nervoso central. Os impulsos das demais regiões da língua chegam à área central do sistema nervoso através dos pares cranianos conhecidos como nervos glossofaríngeo e vago. Essa estrutura anátomo funcional permite sumariamente falando, se chegar à experiência do gosto e suas nuances contidas nos inúmeros sabores, densidades, consistências que permitem considerar esta função tão importante no conhecer.
O mesmo percurso sob a ótica anátomo funcional se pode usar na fase olfatória dos sentidos. Os receptores aqui se chamam de cílios olfativos e suas respectivas vesículas. O primeiro grupo de neurônios são as células olfativas, o segundo grupo são as células mitrais e se diferenciam dos demais sentidos pela situação de estarem na submucosa e não em gânglios, não apresenta uma ligação no tálamo, sua localização cortical é homolateral e sua projeção não é isocórtical como as demais vias o são.
Os receptores do tato são os corpúsculos de Meissner e Ruffini e o que se denomina de ramificações axonais em torno dos folículos pilosos. Dividem-se essas representações do sentido do tato em vias de propriocepção consciente, sensibilidade vibratória, tato epicrítico, propriocepção inconsciente, com grandes grupos de neurônios distribuídos nos gânglios espinhais, no núcleo torácico, na base da coluna posterior, na substância cinzenta intermédia e no núcleo cuneiforme que assessora o bulbo.
Toda uma extensa e complexa rede de inervações que se distribui na pele, o maior órgão corpóreo, permite que o conhecer pela experiência fique ainda mais explícito. Assim, o Estagirita (5) ao se referir à experiência como a porta para o conhecimento, mesmo não conhecendo toda a anatomia, embora ele mesmo tenha dissecado muitos animais, pôde inferir esse caminho e dizer: “na hipótese de os fatos serem tais como o indicamos, só resta evidentemente o modo seguinte pelo qual se pode atribuir e ajustar cada órgão sensorial a cada um dos elementos” (5) (p. 46; 438b 20-25).
Kant (8) quando diz: “Assim, na ordem do tempo, nenhum conhecimento precede em nós a experiência e é com esta que todo o conhecimento tem o seu início. Se, porém, todo o conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da experiência.” (8) (p. 36) Isso nos leva necessariamente a inferir que a explicação para essa não derivação ocorre pelas possibilidades existentes nas diversas funções cerebrais e, que não derivam da experiência, antes as tornam possíveis.
É adequado se mostrar tais vias neurais como exemplos da empiria e da observação, possibilitada na experiência e tornada possível nos córtices associativos, que são a maior área do córtex cerebral. Esses córtices têm funções de recepção de estímulos advindos da área motora, dos gânglios da base, do cerebelo e ainda o envio de mensagens responsivas para o hipocampo. São responsáveis pela capacidade de conhecer, pelas percepções e apercepções, pelo entender o entorno e explicá-lo.
A experiência é tema em que Aristóteles fundamenta suas reflexões, proposições e referências, tanto para a vida prática, quanto para o processo cognitivo; nota-se, no entanto, que o filósofo deixa em todo o seu processo reflexivo portas para a devida expansão da inteligência. Esse expandir a capacidade de conhecer é, por exemplo, a agregação de novos conceitos. No tratar a experiência em consonância com o ser cognoscendi, Aristóteles (4) nos diz: “Para a vida prática, a experiência não parece ser em nada inferior a arte, senão, inclusive tem mais êxito os experientes que os que não a têm e possuem conhecimento teórico. E isto se deve porque a experiência é o conhecimento das coisas singulares e a arte dos universais e, todas as ações e gerações se referem ao singular. Não é ao homem, efetivamente, a quem cura o médico, a não ser acidentalmente, senão a Calias ou a Sócrates, ou a outro dos assim chamados, que além de tudo é homem. Por conseguinte, se alguém tem, sem experiência, o conhecimento teórico e, sabe o universal, porém ignora o conteúdo particular, errará muitas vezes na cura, pois é o singular que pode ser tratado. Cremos, sem dúvida, que o saber e o entender pertencem mais a arte que a experiência e, consideramos mais sábios aos conhecedores da arte do que os experientes, pensando que a sabedoria corresponde a todos se o sabem. Isto, porque uns sabem a causa e outros não. Pois, os experientes sabem o quê, porém não sabem o porquê. Os conhecedores da arte sabem o porquê e a causa” (4) (p. 7; 981b 20-30) (Tradução livre).
Está bem fundada no texto aristotélico acima a relação conhecimento e experiência, pois o Estagirita, na busca do conhecimento, já havia percebido a necessidade e as condições adequadas para a expansão do conhecer que é gerado no porquê e na causalidade. Desta maneira, outros conceitos lastreados na realidade, na causalidade e na necessidade, que são tratados pela via ascendente indutiva e, a seguir, pela via dedutiva, para assim se chegar a princípios, portanto, à conceituação do universal, aparecem, como o frequente (hós epì tò polú – hos-epi-to-polu), ou seja, aquilo que ocorre no mais das vezes.
Quando se faz devida reflexão entre a ciência e a experiência na filosofia aristotélica, se vê a rigidez conceitual que o filósofo usava para o “pensar” e a seguir emitir os seus postulados. Da mesma forma, Kant ensina sobre os conceitos de categoria e experiência no entendimento, com a mesma densidade conceitual.
Kant (8) aborda a dedução transcendental dos conceitos puros do entendimento, e afirma que no entendimento “a categoria não tem outro uso para o conhecimento das coisas que não seja a sua aplicação a objetos da experiência” (8) (p. 145). Na sequência o filósofo faz a devida reflexão sobre a categoria e a experiência como segue: “Pensar um objeto e conhecer um objeto não é, pois, uma e a mesma coisa. Para o conhecimento são necessários dois elementos: primeiro o conceito, mediante o qual é pensado em geral o objeto (categoria), em segundo lugar a intuição, pela qual é dado; porque, se ao conceito não pudesse ser dada uma intuição correspondente, seria um pensamento, quanto a forma, mas sem qualquer objeto e, por seu intermédio, não seria possível o conhecimento de qualquer coisa; pois, que eu saiba, nada haveria nem poderia haver a que pudesse aplicar o meu pensamento. Ora, toda intuição possível para nós é sensível (estética) e, assim, o pensamento de um objeto em geral só pode converter-se em nós num conhecimento, por meio de um conceito puro do entendimento, na medida em que este conceito se refere a objetos dos sentidos” (8) (p. 145/146).
Aristóteles (4) afirma baseado em conceitos estritos, que a ciência existe de fato no universal e no necessário e ainda naquilo que ocorre no mais das vezes, portanto, conceitua e define a ciência e, mostra com o conceito do frequente, um outro caminho, ou seja, um tertius que amplia o conhecer.
3.3 O FREQUENTE ARISTOTÉLICO COMO INSTRUMENTO DO JUSTO MEIO E DA RETA RAZÃO
3.3.1 O frequente aristotélico
A ciência, ou seja, a epistéme (episteme) é o centro do pensar aristotélico nos Analíticos e, também na Metafísica. As características de necessidade e universalidade deste fulcro do pensar do filósofo também são percebidas ao longo de toda sua obra, especialmente na Metafísica. Ora, se há todo um rigor do filósofo no tratar a epistéme e, a diferenciar da opinião doxa –doxa , como explicar a busca permanente de uma via diversa que não seja centrada unicamente nos pilares da necessidade e da universalidade?
Aristóteles, na Metafísica, nos diz: “Pois está claro que não há ciência do que é acidental. Pois toda ciência é daquilo que é universal ou do que ocorre no mais das vezes” (4) (1027ª-20) (Tradução livre). O filósofo defende em toda a discussão sobre a epistéme o rigor no estabelecer o que se pode definir como ciência, daí pode-se perguntar: Pode haver ciência no estudo daquilo que ocorre no mais das vezes? Sem que se coloque em contradição todo o rigor do pensar ciência em Aristóteles? A resposta é dada pelo Estagirita, tanto na Metafísica quanto nos Analíticos.
Vê-se na Metafísica, desde o livro primeiro, o filósofo referenciar a realidade, abordar o concreto, o objeto da ciência. Também na Metafísica, Aristóteles (4) cita os filósofos que o antecederam, como Alcmeon, Empédocles, Demócrito, Leucipo, e se vê uma ordenação da realidade presente nos filósofos e no Estagirita que impõe a necessidade de refletir sobre o entorno e se encontrar respostas para as coisas que ocorrem no mais das vezes em contraponto com o rigor doutrinário e metódico do pensar ciência, contido nos pilares do necessário e do universal.
Aristóteles (4), ao abrir outros horizontes para o pensarciência, incluindo o que ocorre no mais das vezes, permite estabelecer-se o devido rigor no pensá-la, sem que se dogmatize conceitos, contanto, ao mesmo tempo, que essa abertura para novos conceitos não leve a ciência para a contingência, para a ambiguidade, para as variantes que conduzam ao falso e assim não se tenha ciência.
Onde então ancorar o conceito do frequente aristotélico? Na vertente matemática contida na inferência? Na vertente biológica exemplificada na doença? Na física, especialmente aquela inerente aos eventos astronômicos, como a ocorrência dos eclipses lunar e solar, referidos pelo filósofo? Porchat-Pereira (3) explica de modo inferencial esse frequente: “Diz-nos, com efeito, a Metafísica que toda ciência é ou do eterno ou do frequente. E os mesmos Segundos Analíticos, que encerram a rigorosa doutrina da ciência que vimos estudando, ao expor-nos que não pode haver ciência demonstrativa de quanto provém da sorte, como procedem, senão argumentando com o fato de não ser necessário nem frequente o que dá sorte procede? E acrescentam: ‘Ora, a demonstração concerne a uma dessas coisas’. Premissas e conclusão do silogismo científico serão, de fato, umas e outras, ou necessárias ou frequentes, a conclusão acompanhando a natureza das premissas. E os princípios imediatos de uma demonstração do frequente serão, igualmente, frequentes” (3) (p. 179).
Se avaliarmos os sinais e sintomas de determinada síndrome ou doença, pode-se dizer de algo que seja essencialmente necessário e eterno, ou seja, não permita mudanças ou entendimento diverso, ainda melhor, de algo que ocorra sempre? O frequente aristotélico não é entendido a partir de repetições numéricas e temporais, é visto pelo filósofo na vertente da forma e da essência, se as premissas têm sua natureza no que ocorre no mais das vezes as conclusões também são seguidas desta maneira. Aristóteles (9) define os caracteres que dão origem ao conhecimento científico: “É impossível obter conhecimento científico via percepção sensorial. Ainda que admitindo que a percepção é do objeto qualificado e não de um mero particular, o que percebemos é necessariamente uma coisa particular num lugar e tempo particulares. Por outro lado, um termo universal de aplicação geral não pode ser percebido pelos sentidos porque não é uma coisa particular num tempo determinado; se o fosse, não seria universal, uma vez que descrevemos como universal somente o que é sempre e em toda parte. Portanto, como as demonstrações são universais e os universais não podem ser percebidos pelos sentidos, fica evidente que o conhecimento científico não pode ser adquirido mediante a percepção sensorial” (9) (p. 306; 87b 30-35).
Em trabalho recente, Freire (10), introduziu um conceito de classe dentro do que se pode falar do sujeito do conhecimento, para ordenar o trabalho de entendimento do pensar ciência na órbita da Medicina Legal. Pensar este que transita entre o pensar lógico matemático, o acidental e o frequente aristotélico: “O sujeito do conhecimento, aquele que busca o conhecimento na Medicina Legal, não se restringe aos atos periciais, antes, busca o universal e demonstrável; ele trata, em nosso entender, do frequente aristotélico, ou seja, aquilo que acontece na maior parte das vezes, que como teoria das probabilidades reintroduz de certa forma o desviante, mas somente enquanto representativo de uma classe e não como individual, como ensina Granger (12), estabelece conjuntos doutrinários e sistemas de referências que tornam possível dizer-se da cientificidade da sua prática” (10) (p. 98).
Os sistemas doutrinários e sistemas de referências ensinados por Aristóteles chegam ao século 18 com a arquitetônica da Razão Pura de Kant (8), quando este diz: “Ora, por sistema, entendo a unidade de conhecimentos diversos sob uma ideia. Este é o conceito racional da forma de um todo, na medida em que nele determinam a priori, tanto o âmbito do diverso quanto o lugar respectivo das partes” (8) (p.657).
Os sistemas tanto na vertente da doutrina quanto na metodologia de Aristóteles estão sob a práxis – praxis da lógica, da epistéme – episteme, albergam, também, em seu interior, um viés epigenético que expande a inteligência e torna possível, à frente, a possibilidade e a probabilidade estas, enquanto grandezas matemáticas. Esses sistemas ainda levam conceitualmente a cientificidade daquilo que ocorre no mais das vezes hós epì tò polú – hos epi to polu como referenciado acima. Esses sistemas também permitem e nós enfatizamos esse aspecto, o conceito de tendência órexis – orexis, que veremos a seguir, enquanto, o caminho entre a estética e a episteme, ou seja, a percepção e o pensamento (nous).
Desta forma, constata-se que o frequente ou no mais das vezes – é um dos conceitos contidos na visão aristotélica do justo meio ou da reta razão, o que permite o entendimento proposto nos objetivos deste estudo.
3.4 A TENDÊNCIA COMO INSTRUMENTO DO JUSTO MEIO E DA RETA RAZÃO
3.4.1 A tendência aristotélica
O conceito de tendência foi estabelecido por Aristóteles e contido na Ética a Nicômaco, segundo Gobry (1): “Em Aristóteles, um dos três elementos do conhecimento humano, com a sensação (aísthesis) e o pensamento (nous). Ela é expressa por dois movimentos opostos: a busca (díoxis) e a fuga (phygé). Em Epicteto, faz parte daquilo que é de nós: ep’hemîn.” (1) (p. 104).
A sensação enquanto manifestação dos sentidos, da experiência sensorial, repetida diversas vezes e guardada na memória, conduziu ao conceito da aísthesis – aisthesis , conceito este que antecedeu o logus – logus. A aísthesis revelou o mito que explicava o mundo. O pensamento (nous) – nous, através do logus, construiu a reflexão heurística, as práticas dialéticas que originaram a lógica, fizeram avançar a filosofia e levaram a explicação do observável e empírico para o território antropomórfico, ou seja, a razão e não o mito, explicariam o mundo a partir daquela época.
Para melhor se entender o conceito de tendência naquilo que Aristóteles definiu como um dos três elementos do conhecer, vejamos os significados dos termos aísthesis e nous, os outros dois elementos constitutivos do conhecer. A aísthesis tem um duplo significado, qual seja: a sensibilidade que é a capacidade de sentir e a sensação advinda dos sentidos e que é o ato ou a ação de sentir. Aristóteles (11) ensina que, além do sentir, deve-se falar da percepção sensível que “consiste em ser movido e ser afetado, como dissemos, pois, há a opinião de que ela provoca certa alteração. Porém, dizem também que o semelhante é afetado pelo semelhante” (11) (p.83; 416b – 32).
Nos sistemas de conhecimento, especialmente nas metafísicas, o conhecimento advindo da sensação ocupa um lugar inferior, aqui se diz, de forma tautológica, que a visão vê o visível e o mesmo da audição. Nos diálogos da República, Platão (13) nos diz: “quando a alma se fixa num objeto iluminado pela verdade e pelo Ser, compreende-o, conhece-o e parece inteligente; porém, quando se fixa num objeto ao qual se misturam as trevas, o que nasce e morre, só sabe ter opiniões, vê mal, parece já não ter inteligência” (13) (p. 205; 508a). No Teeteto, diálogo classificado como aporético, Platão nos diz: “Fica então evidente que a ciência não pode confundir-se com a sensação. Não é, portanto, nas impressões que reside a ciência, mas no raciocínio sobre as impressões”. (13) (185e 3-6)
Na Metafísica, Aristóteles (4) fala da sensação: “Por natureza, os animais nascem dotados de sensação […] porém os seres humanos dispõem da arte e da razão.” (4) (981a 5-10). Percebe-se que em Platão e Aristóteles que a aísthesis é tratada como a base inferior do conhecer, o mesmo não acontece com o nous.
O nous – nono, em latim intellectus ou spiritus, significa em Aristóteles (11) a mais importante das realidades, como nóesis (noesis) é a razão contemplativa, como noerós (noeros) é o próprio intelecto, como noeîn (noein) o ato de pensar. No tratado da alma (De Anima) o filósofo, aborda o lado psicológico no sentido passivo e ativo e, nos mostra como a alma conhece e entende: “A respeito da parte da alma pela qual a alma conhece e entende, seja ela separada ou não separada segundo a magnitude, mas apenas segundo o enunciado, deve-se examinar que diferença tem e de que maneira ocorre o pensar. Ora, se o pensar é como o perceber, ele seria ou um certo modo de ser afetado pelo inteligível ou alguma coisa desse tipo. É preciso então que esta parte da alma seja impassível, e que seja capaz de receber a forma e seja em potência tal qual, mas não o próprio objeto; e que, assim como o perceptivo está para os objetos perceptíveis, do mesmo modo o intelecto está para os inteligíveis. Há a necessidade então, já que ele pensa tudo, de que seja sem mistura como diz Anaxágoras, a fim de que domine, isto é, a fim de que tome conhecimento. […] De modo que dele tampouco há outra natureza, senão esta: que é capaz” (11) (p. 114; 429a – 13).
O nous, enquanto inteligência, espírito, teria na definição aristotélica a capacidade de tornar-se todas as coisas e por outro lado produzir todas as coisas, é então impassível, sem mistura, “sendo por substância atividade” (11) (430a – 10). A estética (aisthesis), o espírito (nous) e a tendência (órexis) constituem as vias do conhecer no pensar do Estagirita.
O termo tendência órexis – orexis criado por Aristóteles e referenciado acima, é um instrumento do pensar aristotélico, que ele qualifica como uma reflexão filosófica, através do justo meio e da justa razão. Em Epitecto, tendência significa daquilo que faz parte de nós: ep’hemîn – ep’hemin que explica como cada um é e sente.
No sexto livro da Ética a Nicômaco, Aristóteles trata do meio termo, que em nosso entendimento se denomina “justo meio”, o que não significa a visão geométrica exclusiva do conhecer, como, por exemplo o meio do segmento de uma reta, vejamos o que diz Aristóteles (14): ” Como dissemos anteriormente, deve-se preferir o meio termo e não o excesso ou a falta, e o meio termo é determinado pelos ditames da reta razão. Examinemos agora a natureza desses ditames. Em todas as disposições de caráter que mencionamos, assim como em todos os demais assuntos, há uma meta certa a visar, na qual o homem, orientado pela razão, fixa o olhar, ora intensificando, ora relaxando a sua atividade no sentido de adotar o meio termo e, há um padrão que determina os estados medianos que dizemos ser os meios termos entre o excesso e a falta, e que estão em conformidade com a reta razão. No entanto, se um homem possuísse apenas esse conhecimento, não seria mais sábio por isso, por exemplo, ele não saberia que medicamento aplicar ao nosso corpo apenas porque lhe disseram que usasse tudo o que a arte médica prescreve ou que está de acordo com a prática de quem tem a arte. Por isso é necessário, com relação às disposições da alma, não só se faça essa afirmação, como também que se defina o que é a justa regra e qual o padrão que a determina” (14) (p. 128; 1138 b 20-30).
3.4.2 A tendência pela ótica conceitual
O conceito de tendência em Aristóteles e referenciado acima traz diversos significados, inclusive aquele advindo pela via da implicação, perene em toda sua obra. Senão vejamos: o conceito de tendência traz em seu bojo, por exemplo, o sentido de orientar, nortear (termos que são de origem espacial), o que pode ocorrer, se tal ou qual causa acontecer, esse sentido do conceito pode também significar ação dirigida, às vezes direção, ou seja, aquilo que tende para um determinado fim e necessita da ação para que realmente ocorra. A tendência pode ocorrer até em situações específicas, onde a categoria de estado aristotélica diz da sua condição de fixidez, por exemplo, ao dizermos que o estado do mineral é fixo sem levar-se em consideração a entropia nele contida. Para Lalande (15), o conceito de tendência tem os seguintes significados: “Potência de ação dirigida num sentido definido, mas que não se atualiza, ou pelo menos não se atualiza inteiramente, quer porque as condições apropriadas não estão reunidas, quer porque um obstáculo a detenha ou retarde, quer, finalmente, porque pela sua própria natureza apenas comporte um desenvolvimento gradual. Nenhum cientista vos contestará a existência do fator complementar que postulais (para a explicação dos fenômenos biológicos, ao lado das ações físicas e químicas conhecidas), com a única condição talvez de substituir a palavra esforço, cujo sentido é suspeito de antropomorfismo, pela palavra tendência, cujo sentido, completamente geral, pode mesmo ser puramente dinâmico […] especialmente, em psicologia, termo genérico que compreende todos os fenômenos de atividade espontânea. Todo movimento é, portanto, o produto da espontaneidade que se dirige para um fim; mas uma espontaneidade que se dirige para um fim é uma tendência, e uma tendência que produz um movimento é uma força […] a tendência não tem nada de misterioso: ela é um movimento ou uma parada de movimento em estado nascente. Emprego esta palavra, tendência, como sintoma de necessidades, apetites, instintos, inclinações, desejos: ela é o termo genérico de que os outros são variedades; tem sobre eles a vantagem de abarcar os dois aspectos, psicológico e fisiológico, do fenômeno”. (15) (p. 1119-1120).
As significações conceituais acima elencadas por Lalande solicitam uma reflexão do fenômeno pelos aspectos psicológico e fisiológico, tendo como foco o conceito de tendência. As interpretações possíveis das características contidas nos significados acima referidos, exigem inicialmente, uma abordagem linguística, tanto no sentido saussuriano, quanto no sentido peirceano, pois levam ao significado e significante de Saussure (1916-1977) (16) e ao interpretante de Peirce (1931-2003) (17). Em Saussure, o significado se refere ao conceito e o significante seria denominado por ele de imagem auditiva. Em Peirce, o interpretante é a terceira figura da linguagem, associado ao fundamento e o objeto do termo.
O significado conceitual de tendência quando interpretado, mostra alguns desafios, pois apresenta sob a ótica psicológica uma passagem daquilo que exige consciência, muitas vezes o sentir algo, perceber o que pode vir que tem relação e causa, fazendo uma passagem de um gênero de prática do pensar, para outro, por exemplo, ao passar das situações de significações não lógicas e vivenciais para o pensamento lógico e sua rígida metodologia.
Ainda na visão interpretativa de tendência, é do senso comum dizer-se: o ser humano tende a querer estar bem, vivo, com saúde, com boa situação financeira etc. Tender este que fundamenta o estado psicológico do ser, que tem a tendência de permanecer no ser, de se reconhecer no seu ser, do existir em determinada circunstância. E ainda, na busca da vertente intelectual, isto é, se faz uma passagem de gênero (metabasis), ou seja, dos elementos ligados à afetividade se transita para a via da abstração. Tal ato transitivo, é possível na tendência, pois ela ao mesmo tempo em que não se move, aguarda ato motor que a mova, alberga em seu interior essa capacidade de permitir o movimento conceitual e mudar a realidade. Desta forma, constata-se que a tendência é um dos conceitos contidos na visão aristotélica do justo meio e da reta razão, o que permite o entendimento proposto nos objetivos deste estudo.
3.5 DA IMPLICAÇÃO BIOLÓGICA COLOCADA NO JUSTO MEIO E NA RETA RAZÃO DA FILOSOFIA ARISTOTÉLICA
3.5.1 O significado e o conceito
De acordo com os objetivos e percebido neste estudo, havia a necessidade de se introduzir um novo conceito entre a implicação lógico matemática e a implicação significante e assim chegamos à implicação biológica que a seguir explicaremos.
O termo implicação tem diversos significados, como: o que se pode subentender, referenciar, conduzir, levar a uma consequência, a uma conclusão e sob a ótica da lógica modal onde o necessário e o possível remetem tanto à dedução como à indução. Na vertente da biologia, pode-se dizer que a implicação pode explicar, além do necessário e do possível o que se chama de encadeamento, ou seja, sequência de fatos, eventos que se sucedem de forma ordenada, que se ligam e chegam a um fim determinado. Algo, muito comum, nos sinais e sintomas do olhar clínico e, também, no ambiente da bioquímica e da físico-química aplicada ao fenômeno biológico, por exemplo nas ações enzimáticas e nos diversos processos metabólicos.
Propomos, que o conceito de implicação biológica pode ser aplicado a algo produzido por uma causa e/ou ainda por consequência de ações condicionais ou condicionadas, que podem ser tratadas através da estatística e sob a ótica do tempo, contemplando-se as variáveis aí presentes e considerando-se a singularidade do ser.
Sabe-se que os desvios entre as proporções esperadas e as observadas em experimentos nas ciências da vida, confirmam os conceitos de probabilidade e possibilidade aplicáveis as variáveis próprias da singularidade fenomênica contida nos eventos biológicos e são melhor estudadas através estatística, por exemplo, no uso do “teste do Qui-quadrado da verossimilhança” e ainda nos conceitos de “penetrância e expressividade” tão usados na genética no estudo das amostras a serem estudadas e definidas.
Há no estudo da implicação especialmente a biológica que propomos, as características próprias da lógica clássica, e a consequente extensão, por exemplo, na lógica modal e ainda nas denominadas novas lógicas. Entre as novas manifestações da lógica, temos a vertente indutiva e a paraconsistente, fundada esta, nos denominados paralogismos, segundo Costa (18).
Segundo Haack (19) as lógicas estão assim constituídas: “[…] lógica tradicional aristotélica (o silogismo); a lógica clássica (cálculo sentencial bivalente e cálculo de predicados); lógicas ampliadas: lógicas modais, temporais, deônticas, epistêmicas, da preferência, imperativas, erotéticas (interrogativas); as lógicas alternativas: lógicas polivalentes; lógicas intuicionistas; lógicas quânticas; lógicas livres; lógicas indutivas” (19) (p. 28/29).
Os lógicos só usam inferência quando há dedução, portanto, consciência de que: Se x é y e y é z, então posso concluir que x é z.Quando não há consciência específica e, se está diante das significações que se atribuem correntemente às coisas, fatos e eventos, trata-se de implicação significante (no sentido piagetiano do termo). Além da inferência e implicação significante, há a implicação consciente e lógico-matemática que seria representada, por exemplo, pelo condicional, desde que este seja decorrenteda dedução e, rejeite o raciocínio do absurdo, como por exemplo: “Se hoje saio a rua com certeza não chove”.
Quando nos referimos às funcionalidades da estrutura cortical, mais precisamente do neocórtex, os encadeamentos e sequencias obedecem a outra logicidade, ou seja, a implicação de caráter biológico, onde os reticulados, encadeamentos sequenciais, as variáveis ocorrem com fim determinado, ou seja, teleológico.
Portanto, podemos dizer que os processos do funcionamento cerebral ocorrem por implicações próprias do ambiente biológico: se x então y, se y então z e assim por diante em forma de encadeamentos que explicitam o fenômeno. Existem cadeias de implicações em relação a referentes orgânicos, portanto concretos, onde, porém, ocorrem variáveis com grande frequência, logo, implicações próprias do fenômeno (no sentido kantiano do termo) biológico. É bom que se ressalte que o termo fenômeno é tratado por Kant (8) como “unidade mais elementar da consciência”
O que se chama correntemente de “inferência”, no funcionamento cerebral e em outras partes do organismo, precisaria, na realidade de outro nome entre inferência e implicação, especialmente a significante. Entendo que as inferências que estão encadeadas no fenômeno biológico, podem, de fato, se chamar implicações porque são necessárias e não universais. Pode-se dizer que se não ocorrem, o organismo pode sofrer mutações, degenerar, adoecer ou morrer. Então, trata-se de um caso análogo ao do frequente aristotélico e, referenciado acima, que fica entre o necessário lógico matemático e o acidental.
Ter-se-ia que criar um termo, para as ciências biológicas, como o foi o termo “hós epì tò polú”, em relação ao conhecer segundo Aristóteles. Também, no caso de se usar as inferências para se pensar o organismo nas suas amplas e complexas relações, se está entre a inferência lógico-matemática (necessária e universal); e a implicação significante (não necessária e particular).
Penso que aqui se aplique o mesmo discurso que Aristóteles usou para o frequente hós epì tò polú em comparação com o acidental. Nas ciências biológicas, acho que se pode usar o termo implicações biológicas, um tertius entre a inferência lógico-matemática e a implicação significante que não é necessária. Os termos que são entendidos como sinônimos da implicação, ou seja, a ilação é implicação, ou seja, inferência sem necessidade lógico-matemática, ou inferência lógico-matemática? Lalande (15) ao se referir a lógica contida no termo implicação nos diz: “Goblot, tomou esta palavra no sentido estritamente etimológico, muito mais estreito que a sua acepção vulgar: conter, de uma maneira não aparente, qualquer coisa já feita, que bastaria tornar manifesta. É inexato, diz ele que o antecedente implique o consequente que o contém e que se possa dele extraí-lo: são, ou pelo menos podem ser heterogêneos. A igualdade dos ângulos não está contida na igualdade dos lados; resulta dela… Não se trata da implicação de um conceito por outro, trata-se da dependência de um juízo com relação a outro. Nos lógicos que correntemente empregaram este termo, equivale efetivamente à expressão “a acarreta b”, usada de preferência por Goblot” (15) (p. 534).
3.5.2 Os caminhos da implicação biológica
A reflexão sobre o ato de implicar ainda deve mostrar o significado contido em expressões do passado, em que implicar trazia associado o conceito de contradição. Conceito este que foi ultrapassado rapidamente pelo viés sumário da palavra implicação, onde este significado subsumiu o referente ali contido. Lalande (15) nas notas referentes ao ato de implicar nos diz: “Hamelin distingue, uma implicação de tipo dialético, que faz progredir o pensamento sinteticamente, e uma implicação descendente, que extrai analiticamente de um conceito aquilo que está contido na sua definição. “A unidade não implica uma pluralidade de unidades” Le systeme de Renouvier. A primeira espécie de implicação é aquela que ele designa frequentemente pela palavra invocar. Esta distinção é fundada desde que se admita ou não a sua validade. O sinal ⸧ só deve ser utilizado para a implicação tal como entendida pela lógica formal” (15) (p. 534).
Ramozzi-Chiarottino (20), em texto reflexivo sobre a epistemologia piagetiana e as implicações ali contidas, nos leva ao seguinte: “Em Biologia e Conhecimento (1967), Piaget mostra muito claramente o alcance epistemológico dos esquemas motores de ação e insiste igualmente e mais do que nunca sobre as estreitas relações entre conhecimento, organismo e lógica: “Dizer que todo conhecimento supõe uma assimilação e que esta consiste em atribuir significações, consiste, no final das contas, em afirmar que conhecer um objeto implica (grifo do autor) a sua incorporação a esquemas de ação, e isto é verdade desde os comportamentos sensório-motores elementares até as operações lógico-matemáticas superiores” (20) (p. 16-17).
Portanto, na embriologia mental e consequente evolução desde a estrutura motora até a sofisticada organização dos córtices associativos, o fenômeno é assim manifestado: passa-se do estado A para o B por intermédio de implicações biológicas necessárias que constituem o “creodo”,ou seja, o caminho necessário, em função das trocas do organismo com o meio. O termo creodofoi definido por Waddington (21) da seguinte forma: “O nome creodo foi sugerido para referir-se a uma trajetória canalizada que atua como um agente para as trajetórias próximas. É uma questão interessante discutir até onde é necessária a existência dos creodos e até onde é meramente um resultado empírico da operação da seleção natural” (21) (p. 31).
Os caminhos e trajetórias do fenômeno biológico na condição de necessários, portanto, o creodo sob a ótica de Waddington (21) pode ser mudado, quando sofre a ação, por exemplo, de uma mutação e tal alteração produz fenótipo anormal em relação à origem e ainda traz instabilidade ao creodo. Essa instabilidade confere ao creodo, nos diz Waddington na mesma página: “Finalmente, a seleção artificial pode, certamente, originar novos creodos, tal como ocorre nos experimentos sobre assimilação genética”. Pode-se ainda inferir que diante do evoluir da epigenética, as possibilidades de canalização e amortização do processo de informação do fenômeno biológico, está em evolução.
O próprio Waddington (21) questiona se a possibilidade de uma outra classe de creodo seja necessária, por exemplo nas situações em que se misturam diversas substâncias químicas, ou bioquímicas, moduladas pelo tempo e que interagem entre si e, ainda possam receber influências do meio, com certeza, novo ou novos creodos podem ser necessários. A conclusão sobre o aspecto teleológico, ou seja, os processos conduzidos pelo que se pode chamar de determinado pelo destino que lhe é dado, é assim, explicado por Waddington: “A importância de compreender a natureza dos mecanismos do que depende o comportamento creódico deriva do fato de que um creodo, segundo o definimos, é simplesmente a descrição mais geral do tipo de processo biológico que foi qualificado como regido pela finalidade” (21) (p.32) (Tradução livre).
3.5.3 A lógica da implicação biológica
Se tomarmos por referência o tertius definido por Aristóteles e representado pelo frequente (hós epì tò polú) e pela tendencia (órexis), a trajetória creódica nos leva por analogia a implicação biológica, que, enfatizamos, se coloca entre a inferência ou implicação lógico matemática e a implicação significante estabelecida por Piaget e assim descrita por Ramozzi-Chiarottino (20): “No entanto, havia uma lacuna nesta teoria: a noção de equilíbrio estava fora do seu modelo. Na realidade, havia dois modelos; um abstrato, aquele do funcionamento (lógico operatório); e um outro empírico, que explicava a gênese (a equilibração), ou seja, de um lado a gênese e, do outro, a estrutura. Três anos antes de morrer, Piaget encontra a solução para a dicotomia que ele sempre acreditou ser ilusória: a implicação significante” (20) (p. 23).
A implicação significante, que, também, tem o caráter de meio termo ou justo meio no sentido aristotélico dos termos, é um tertius, entre, o abstrato conceito do funcionamento lógico operatório e, outro, empírico que explica a gênese, assim o definiu Piaget (22): “Se a causalidade fisiológica e a implicação consciente são irredutíveis uma à outra, não deixam por isso de conter correspondências e mesmo um paralelismo. O famoso princípio de paralelismo psicofisiológico não é em realidade senão um princípio de isomorfismo entre a causalidade e a implicação. Este isomorfismo encontra ilustração nas máquinas pensantes cibernéticas ou servo-mecanismos etc., que fornecem, com efeito, um modelo altamente aperfeiçoado do que pode ser o equivalente mecânico ou causal de um sistema de implicações (pois admitem uma lógica), mas permanecem estranhas às significações conscientes, pois só a consciência de seus inventores ou leitores traduz suas séries causais em implicações significantes”(22) (p. 63) (grifo do autor).
Há, uma logicidade específica, especialmente nos denominados sistemas formais e assim trabalhados por Haack (19) nos conceitos lógicos como: inferência, implicação formal, logica indutiva, lógicas ampliadas, lógicas alternativas: “Aqueles sistemas formais que são conhecidos como a lógica padrão ou clássica (e que se ensinam em cursos de lógica formal elementar) devem seguramente ser considerados lógicas, se algo deve assim ser considerado. Parece, pois, apropriado admitir também lógicas aqueles sistemas formais que são análogos aos primeiros. Entre tais sistemas análogos incluo: extensões da lógica clássica, isto é, sistemas que acrescentam novo vocabulário lógico: ‘necessariamente e possivelmente’ nas lógicas modais, ‘era o caso que’ e ‘será o caso que’ nas lógicas temporais, ‘deve’ e ‘pode’ nas lógicas deônticas, ‘sabe’ e ‘acredita’ nas lógicas epistêmicas, ‘prefere’ nas lógicas da preferência) ao lado de novos axiomas ou regras para o novo vocabulário, ou que aplicam operações lógicas conhecidas a novos itens (sentenças imperativas ou interrogativas); divergências da lógica clássica, sistemas com o mesmo vocabulário, mas com axiomas ou regras diferentes (em geral mais restritos); e lógicas indutivas, que procuram formalizar uma noção de suporte análoga, porém mais fraca que a de consequência lógica” (19) (p. 29-30).
A reflexão, sobre a implicação significante que não é necessária e é particular e a implicação biológica que é necessária e não universal como o seu predicado assim a define, diante do cenário acima descrito por Haack, pode levar à dedução de que existem lógicas e diferenças conceituais entre elas, a começar pelos aspectos metodológicos da dedução e da indução, que abordaremos no caráter dedutivo sob a ótica de Popper e no de caráter indutivo sob a ótica de Newton da Costa (18)
Para o entendimento de Popper (23), o caráter dedutivo aplicado às teorias, justificam o processo da dedução e negam a indução: “De acordo com a concepção que aqui será apresentada, o método de submeter criticamente a prova às teorias, e de selecioná-las conforme os resultados obtidos, acompanha sempre as linhas expostas a seguir. A partir de uma ideia nova, formulada conjecturalmente e ainda não justificada de algum modo – antecipação, hipótese, sistema teórico ou algo análogo – podem-se tirar conclusões por meio de dedução lógica. Essas conclusões são em seguida comparadas entre si e com outros enunciados pertinentes, de modo a descobrir-se que relações lógicas (equivalência, dedutibilidade, compatibilidade ou incompatibilidade) existem no caso. Poderemos, se quisermos, distinguir quatro diferentes linhas ao longo das quais se pode submeter à prova uma teoria. Há em primeiro lugar, a comparação lógica das conclusões umas às outras, com o que se põe à prova a coerência interna do sistema. Há, em segundo lugar, a investigação da forma lógica da teoria, com o objetivo de determinar se ela apresenta o caráter de uma teoria empírica ou científica, ou se é, por exemplo, tautológica. Em terceiro lugar, vem a comparação com outras teorias, com o objetivo sobretudo de determinar se a teoria representará um avanço de ordem científica, no caso de passar satisfatoriamente as várias provas. Finalmente, há a comprovação da teoria por meio de aplicações empíricas das conclusões que dela se possam deduzir” (23) (p. 33).
Os lógicos, ao pensarem sobre os métodos que dariam acesso à ciência, tendo como fundamento o “quadrado aristotélico”, ou seja, o quadrado lógico, puderam separar o caráter ascendente, heurístico, portanto, focado na descoberta e na busca do geral e que está na vertente indutiva, mas pode levar as possibilidades e as probabilidades enquanto grandezas matemáticas. Também leva a via descendente do geral para o particular que tem origem na dedução, onde se encontra o real, o particular e a sua concretude. No entanto, sabe-se que a via indutiva estabelece muitas vezes uma realidade condicionada e convertida em probabilidades, por exemplo, nos diversos sinais e sintomas de uma doença, que tem características singulares.
Costa (18), em livro sobre a Lógica indutiva e probabilidade nos explica a vertente indutiva da lógica e sua influência nas diversas ciências da empiria, especialmente, na estatística. Costa (18) assim orienta a necessidade da indução: “Há, sem sombra de dúvida, numerosas espécies de argumentos indutivos. Se designarmos o estudo de tais argumentos da lógica indutiva (grifo do autor), como já se fez, vê-se, imediatamente, que existe essa disciplina e que sua importância é enorme para a compreensão da ciência e do conhecimento vulgar; os vários tipos de inferência indutiva arrolados, evidenciam que as caracterizações tradicionais da indução carecem de fundamento. Assim, nada mais errado do que se afirmar que a indução, ao contrário da dedução, vai do particular para o geral ou, talvez, do menos geral ao mais geral. Seria ridículo, por exemplo, tentar enquadrar a inferência estatística nesse esquema; aliás, como é fácil de se constatar, nem a indução por simples enumeração se adapta a essa definição. Também esdrúxula é a definição de indução como sendo uma forma de raciocínio em que a conclusão não se acha contida nas premissas, em oposição à dedução, em que isso ocorre; ora, tais asseverações mostram-se falsas: mesmo que não se ponha em xeque o significado da palavra ‘contido’, parece ridículo querer-se defender as teses de que na dedução a conclusão está contida nas premissas, mas que tal não se passa com a indução. De fato, na indução matemática ou recorrência, que constitui um raciocínio válido, tem sentido dizer-se que a conclusão está contida nas premissas? E que no teste de hipóteses isto não se verifica? Na inferência dedutiva, a verdade das premissas acarreta a conclusão. Nas inferências indutivas, não. Nestas últimas, pelo menos para algumas delas, se pode associar certo tipo de probabilidade, que por assim dizer mede o grau de racionalidade que lhes conferimos. O problema central da lógica indutiva resume-se a individualização das inferências indutivas corretas. Estas seriam as inferências racionalmente justificáveis” (18) (p. 27-28).
Como se vê acima, Costa (18) faz a devida crítica, as afirmações, que dizem de a conclusão estar subsumida nas premissas no caso das deduções e, ao contrário não ocorreria nas induções, o que ele refuta peremptoriamente. No mesmo texto ele afirma: “Na inferência dedutiva, a verdade das premissas acarreta a conclusão. Nas inferências indutivas, não.” Portanto, ele justifica que a indução é processo de raciocínio válido, que há uma lógica indutiva, que permite a probabilidade e a possibilidade, tão aplicada nas ciências da empiria, nas inúmeras técnicas e sistemas do conhecimento, inclusive no ambiente científico da Medicina Pericial.
3.6 A IMPLICAÇÃO BIOLÓGICA E SUA APLICABILIDADE AO AGIR MÉDICO PERICIAL
As vias indutivas e dedutivas da metodologia científica explicitadas acima tem um adequado uso em Medicina Pericial e isto é facilmente percebido. A Medicina Pericial por fazer a devida ligação entre os conceitos da Medicina enquanto conjunto de ciências, com as ciências da empiria no sentido definido por Granger (12) habita na implicação biológica. Especialmente quando se fala da interpretação fenomênica presente no agir médico pericial e que é vivenciado na classe definida por Popper (23) como conceito que tanto se pode aplicar a elementos singulares quanto a elementos coletivos com características comuns(classe). Associe-se a este agir médico pericial a peculiaridade de fazer uma outra ponte, aqui, com a operação do direito e ainda com as estruturas dos textos emanados do conceito de justiça, ou seja, o caráter nomológico que lhe é inerente. Neste ambiente é necessária uma metodologia que explique o fenômeno, que o torne objetivo e se possa ler a experiência, demonstrando assim uma cientificidade que embasa a demonstração, esta, a principal característica do trabalho médico pericial.
Cada ato médico pericial é resultado da experiência e do conhecimento prévio de cada perito, o que consubstancia a díade conhecimento/experiência, algo comum na atividade do profissional da Medicina. No entanto, na medicina pericial se tem um grupo de elementos conceituais a mais, ou seja, a associação com estrutura de conceitos advindos do Direito e da Justiça, elevando a complexidade e adicionando um ainda maior número de variáveis, o que dificulta em muito as conclusões adequadas aos fatos investigados. Daí a necessidade da implicação biológica que tem como um dos seus focos as variáveis contidas em cada evento e que precisam da devida explicação. Além disso, a implicação biológica pode organizar conceitos que tenham um fim determinado, gerando categorias, assim como organizar elementos, dados, gerando conceitos. Para exemplificarmos vejamos trabalhos de colegas que estudaram os termos inferência e implicação no universo da Medicina Forense.
Putri et all (24) em trabalho de 2020 nos remete as dificuldades inerentes a falta de instrumento metodológico que organize o trabalho do Médico Forense: “O principal objetivo da análise médica forense é fornecer evidências jurídicas sobre a relação causal entre uma ação alegada e um resultado prejudicial. Apesar dos guias e manuais existentes, a abordagem para a formulação de opiniões sobre inferência causal médico-legal usada por médicos forenses e com a força da opinião e também quantificada, carece principalmente de uma estrutura baseada em evidências ou sistematicamente reproduzível. Na presente revisão, discutimos a literatura que descreve os métodos existentes de inferência causal em medicina legal, especialmente em relação à formulação de pareceres periciais em processos judiciais, e seus pontos fortes e limitações. A inferência causal na medicina forense é única e diferente do processo de estabelecimento de um diagnóstico na medicina clínica. Devido à falta de tangibilidade inerente à análise causal, mesmo o termo “causa” pode ter um significado inconsistente quando usado por diferentes profissionais examinando a mesma evidência. Atualmente, não existe uma metodologia sistemática aplicada universalmente para formular e avaliar a causalidade em pareceres de peritos médicos forenses. As abordagens existentes para a causação na medicina forense geralmente se enquadram em duas categorias: intuitivas e probabilísticas. A propriedade de cada abordagem depende dos fatos individuais de uma lesão, doença ou morte investigada. Opinamos que, na maioria dos ambientes médicos forenses, a causalidade probabilística é a mais adequada para uso e prontamente aplicável. Os médicos forenses precisam, no entanto, estar cientes da abordagem apropriada da causa para diferentes tipos de casos com vários graus de complexidade.”
Nesta revisão sistemática, Putri et all (24), deixam claro a dificuldade instrumental encontrada e sugerem uma abordagem estatística e probabilística como algo que pode ajudar na construção do documento adequado ao agir Médico Pericial. Veja-se que os autores na falta de instrumento metodológico que organize os dados, os elementos e os conceitos envolvidos, que seriam respondidos pela implicação biológica ali existente, simplesmente tratam o tema de forma quantitativa na busca de se dar algum destino aos dados encontrados. A implicação é um instrumento da lógica (sensu lato) que indica que se um elemento é dado e/ou informado é verdadeiro, o segundo elemento necessariamente também é, o mesmo raciocínio vale para a negação. Na implicação ainda pode ocorrer que em determinada relação não haja variável então a ⸧ b, ou também, a acarreta b. Ocorre que existe relação em que se encontra variável ou variáveis então a relação a ⸧ b é aplicável a qualquer uma das variáveis o que nos leva para uma função de proposições duplas.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que se pode chamar de tertius, ou o meio termo, ou ainda, justo meio, na reflexão de Aristóteles, advém de uma construção científica, que fundada no rigor dos pilares “do necessário e do universal” de origem platônica e absorvida pelo Estagirita, nos remete a uma abertura intelectual extremamente ampla e densa em seu rigor científico, estrutural e metodológico.
Tal estrutura do pensar sob a ótica do necessário e do universal possibilitou a criação da lógica demonstrada nos Analíticos Anteriores e Posteriores e difundida em toda obra do filósofo, pois, para Aristóteles, a lógica é o método da filosofia.
O meio termo, ou ainda, o justo meio entre o excesso e a falta, que levou ao célebre “in medio virtus”, possibilitou a existência do conceito hós epì tò polú (o frequente, onde também se faz ciência), do conceito órexis (tendência), e entendo que, daqui também, se pode referenciar um outro conceito, o de implicação biológica aplicável ao meio das ciências biológicas, ou seja, ao fenômeno biológico em toda sua complexidade e com tantas variáveis no sentido matemático do termo. O tertius aristotélico é um dos grandes caminhos do pensar que faz a ciência, especialmente aquela ciência fundada na biologia, assim o entendemos.
A implicação biológica, pode-se dizer, é um tertius entre a inferência (fundamento do silogismo científico e, portanto, da lógica aristotélica) e a implicação significante (pensada e definida por Piaget, que não é universal nem necessária). Isto porque a implicação biológica é verificável, é colocada enquanto necessidade e possibilidade, porém não universal. Pode ser aplicada tanto no processo indutivo quanto no dedutivo, no que ocorre no mais das vezes e ainda no fenômeno biológico, onde as variáveis ocorrem com muita frequência.
O percurso desse artigo, desde os pré-socráticos até os dias de hoje, passando por Alcmeon de Crotona, Aristóteles, Costa, Descartes, Empédocles de Agrigento, Granger, Kant, Piaget, Platão, Popper, Ramozzi-Chiarottino, Sócrates e Waddington, possibilitou no nosso entendimento, olhar-se intensamente os conceitos de tendência e do frequente, na filosofia aristotélica e no entender sua logicidade. Também, nos permitiu propor uma terceira figura para a lógica no âmbito do pensar, centrado no fenômeno biológico, ou seja, a implicação biológica e, fazer uma leitura específica desse conceito, ou seja, da realidade dele, enquanto possibilidade de pensar o real, especialmente, este real aplicado ao fenômeno biológico e adequado ao meio termo da epistéme aristotélica.
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