Os autores informam não haver conflito de interesse.
CAUSAL LINK IN THE ASSESSMENT OF PERSONAL INJURY
Rosa Amélia Andrade Dantas (1)
http://lattes.cnpq.br/3392433906599085 – https://orcid.org/0000-0003-1675-7158
Duarte Nuno Vieira (2)
https://orcid.org/0000-0002-7366-6765
José Jozefran Berto Freire (3)
http://lattes.cnpq.br/5765442081508009 – https://orcid.org/0000-0003-1817-9427
Eduardo Dantas (4)
http://lattes.cnpq.br/ 9527419558749302 – https://orcid.org/0000-0002-8573-995X
(1) Universidade Federal do Sergipe. Aracaju – SE, Brasil (autor principal)
(2) Universidade de Coimbra. Portugal (co-autor)
(3) Universidade Estadual de Pernambuco. Recife – PE, Brasil (co-autor)
(4) Advogado especialista em direito médico, Recife – PE, Brasil (co-autor)
E-mail: rosa_amelia_dantas@academico.ufs.br
RESUMO
Introdução: A discussão entre os saberes da medicina e do direito é cada vez mais relevante, principalmente com a crescente demanda por perícia médica na sociedade. O objetivo deste trabalho é abordar o nexo de causalidade ou nexo causal na medicina legal e perícias médicas. Metodologia: Reflexão crítica e analítica da bibliografia com propostas que inovam o pensar sobre o tema. Foi feita pesquisa nas bases de dados Medline, Biblioteca Virtual em Saúde, Periódicos Capes e SCIELO Brasil, com o objetivo de consubstanciar a relevância do tema para o agir pericial. Descritores: nexo causal; causalidade; dano à pessoa; avaliação pericial. Resultados/Discussão: Discorremos sobre o conceito de causa e sua base histórica, causalidade e imputação. Nexo de causalidade na medicina e na medicina legal e perícia médica/medicina legal/ciências forenses. Conclusão: Nexo de causalidade em medicina legal e perícia médica avalia a relação entre causa alegada e dano existente (doença, transtorno ou lesão, com prejuízo à pessoa). Nos casos de trauma fundamenta-se nos critérios de Hill. Porém, nos casos de doenças e transtornos fica comprometido a definição do momento inicial da doença ou do transtorno, necessitando novos métodos e técnicas para suportar tamanha complexidade, no que se refere ao nexo. Questionamos: Como enriquecer a teoria científica e a metodologia além do teste de hipóteses? Como utilizar conceitos e modelos explicativos, capazes de dar conta de questões complexas? Como tomar a saúde para além da mera configuração do risco? Como ser transdisciplinar, onde o trabalho interdisciplinar ainda não é uma realidade? Das respostas para estes questionamentos, depende o futuro e evolução da ciência que envolve o estabelecimento de nexo na avaliação do dano à pessoa.
Palavras-chave: nexo causal, causalidade, dano à pessoa.
ABSTRACT
Introduction: The discussion between the knowledge of medicine and law is increasingly relevant, especially with the growing demand for medical expertise in society. The objective of this work is to address the causal link in legal medicine and medical expertise. Methodology: Critical and anlytical reflection of the bibliography with proposals that innovate thinking on the subject. Research was carried out in the Medline, Virtual Health Library, Periodicals Capes and Scielo Brasil databases, with the aim of substantiating the relevance of the topic for expert action. Results/Discussion: We discuss the concept of cause and its historical basis, causality and imputation. Causal link in medicine and legal medicine and medical expertise/legal medicine/forensic sciences. Conclusion: Causal link in legal medicine and medical expertise assesses the relationship between alleged cause and existing damage (disease, disorder or injury, with injury to the person). In cases of trauma it is based on Hregardinill’s criteria. However, in cases of diseases and disorders, the definition of the initial moment of the disease or the disorder is compromised, requiring new methods and techniques to withstand such complexity, regarding this relationship. We ask: How to enrich scientific theory and methodology beyond hypothesis testing? How to use explanatory concepts and models, capable of addressing complex issues? How to take health beyond mere risk configuration? How to be transdisciplinary, where interdisciplinary work is not yet a reality? The answers to these questions depend on the future and evolution of science that involves the establishment of link in the evaluation of personal injury.
Keywords: causal link, causality, personal injury.
1. INTRODUÇÃO
A necessidade de discussão entre os saberes da medicina e do direito tem se tornado cada vez mais manifesta para médicos e operadores de direito. Tal fato é resultante da ampliação desta área de intersecção, que vai desde a discussão das questões médico-legais historicamente ocorridas nos Institutos Médico Legais e em outros ambientes onde se realizam perícias médicas, passando pela discussão dos direitos em relação à assistência médica, como nas questões de deontologia médica, até as questões relacionadas às garantias da dignidade dos seres humanos e da valorização dos direitos globalmente reconhecidos. As relações multidisciplinares da atualidade não permitem mais a existência em separado destas duas ciências que sempre caminharam em paralelo. Hoje, o caminho a ser percorrido depende de seu entrelaçamento.
A sociedade, em seu processo histórico, foi se organizando e reconhecendo que existem indivíduos que se destacavam dos demais, por sua experiência ou pelo maior poder físico, e, dentre estes, existia o que comandava a sociedade desde o tempo primitivo. Este comandante tinha também o poder de perito, juiz, legislador e executor ao mesmo tempo. Cabia a ele, por sua ótica, julgar, fazer e executar as leis. Naqueles tempos, o ato de avaliar as circunstâncias do ocorrido ainda não tinha passado pela divisão social e técnica do trabalho, mas pode-se pressupor que foi a origem para o que hoje corresponde ao exame de situação, coisa ou fato (1).
Na atualidade, é cada vez maior a necessidade de procedimentos de perícia médica, em todos os setores da sociedade, seja no âmbito da Justiça, da Previdência Social, nas avaliações securitárias e nas administrativas. A perícia médica dentro do estado não é recente, porém, é cada vez maior a demanda por este procedimento, exigindo a elaboração de laudos médicos mais sistematizados, a partir de um conjunto de conhecimentos mais consistentes e mais atualizados (1).
Embora registros históricos indiquem que a perícia médica sempre foi solicitada por juízes de todas as áreas do direito, houve um incremento significativo na requisição de perícia médica nos institutos de seguridade social, deixando de ser uma atuação pontual para cobrir um maior número de trabalhadores e segurados pretendentes aos chamados benefícios por incapacidade. Uma primeira definição da perícia pode ser embasada em sua etimologia. A função e a etimologia do vocábulo “perícia” querem dizer: conhecimento e experiência das coisas. A função pericial é, portanto, aquela pela qual uma pessoa conhecedora e experimentada em certas matérias e assuntos examina as coisas e os fatos, reportando sua autenticidade e opinando sobre as causas, essência e efeitos da matéria examinada (1).
Para realizar um ato pericial são necessários vários passos. Dentre eles está a análise de documentos. Os documentos que podem ser apreciados científica e tecnicamente pela perícia são: o telegrama, o radiograma ou outro meio de transmissão, as cartas e os registros domésticos, os livros comerciais e fiscais, qualquer reprodução mecânica, como fotografia, cinematografia, fonografia. Dentre as provas periciais, a prova documental tem vultosa força probante (1).
Uma das questões mais importantes na Medicina Legal e Perícia Médica/ Medicina Forense e no Direito é a discussão do que causou o dano à pessoa (agravo à saúde). A discussão médica legal se dá com base em uma avaliação médica pericial, momento em que são arguidas várias questões, sendo algumas delas norteadoras para o entendimento dos fatos ocorridos dentre as quais, podemos citar: O que o reclamante e quem é reclamado referem ter ocorrido? O que está motivando a realização da perícia médica? Qual a doença/agravo que o requerente apresenta? O que diz a literatura sobre a relação entre a doença/agravo apresentada pelo requerente e o que o mesmo informa que causou o dano? Concluindo seu laudo ou parecer com a resposta às seguintes perguntas: Diagnostica-se um agravo à saúde? Este agravo à saúde pode ser definido como um dano à pessoa? Apresenta incapacidade? Esta incapacidade é resultante do dano à pessoa? Estava exposto a quais riscos? Estava incapacitado para suas atividades cotidianas? Existe nexo de causalidade entre o dano à pessoa e o que se atribui como causa?
O objetivo deste trabalho é abordar o estabelecimento do nexo de causalidade ou nexo causal na medicina legal e perícias médicas/medicina legal e ciências forenses, e as implicações advindas destes entendimentos na elaboração do laudo, elemento de prova a ser usada no direito e pelos julgadores nos diversos âmbitos do trabalho pericial.
2. CAUSA – CONCEITOS E SUA BASE HISTÓRICA
Um dos objetivos deste artigo, no entendimento dos autores, perpassa pela construção conceitual dos temas causa e causalidade e, ainda na relação advinda destes conceitos, no que se refere ao denominado “nexo de causalidade”, ou seja, na relação causal entre os elementos ativos presentes no que se examina e/ou pesquisa e seus consequente/s.
Os conceitos de causa e causalidade estão presentes na história do conhecimento humano no mundo ocidental, desde os filósofos pré-socráticos, fato este comprovado por historiadores como Tucídides, Diógenes Laercio na antiguidade clássica e, referenciados pelos historiadores Bornheim, Bréhier, Hirschberger modernamente, quando eles estudaram o pensar aristotélico sobre a causa e a causalidade.
Sabe-se que foi Aristóteles que documentou e sistematizou os conceitos de causa e causalidade, ele que também revelou os trabalhos dos filósofos que o antecederam no refletir sobre estes conceitos – tratamos disto suficientemente na Física (3). Partiu o Estagirita dos seus antecessores, os criticou, os aceitou, refletiu e nos deixou a construção de um monumento do pensar humano, ou seja, a sua Lógica, esta enquanto o método para se conhecer a sua Filosofia.
Os conceitos de Causa e Causalidade estão bem estabelecidos nos livros da Física, e da Metafísica, algumas reflexões importantes estão nos textos dos Segundos Analíticos e na Ética a Nicômaco, embora se encontrem referentes a estes conceitos em toda obra do filósofo. Na Metafísica, Aristóteles (2) ao discutir a natureza da Ciência assim se manifesta: “[…] e posto que, evidentemente, é preciso adquirir a Ciência das primeiras causas (dizemos, com efeito, que sabemos uma coisa quando podemos conhecer a primeira causa), e as causas se dividem em quatro, uma das quais dizemos que é a substância e a essência (pois o porquê se reduz ao último conceito e o primeiro porque é causa e princípio); outro é a matéria ou o sujeito; o terceiro, é aquele de onde procede o princípio do movimento, e o quarto é aquele que se opõe ao anterior, ou seja, a causa final ou o Bem (pois este é o fim de qualquer geração ou movimento)” (3) (tradução livre).
No segundo livro dos Segundos Analíticos (4), reflete sobre as questões e coisas que podemos conhecer e nos ensina, “são elas as questões do o quê, do porquê, do se é, e do que é”, ou seja, ele trata as questões relativas ao fato ou fenômeno, da razão ou causa, do ser ou existência e da essência, daquilo que é investigado e percebido.
Aristóteles, ainda nos Segundos Analíticos, nos diz: “são estes os quatro tipos de questões que fazemos e os quatro tipos de conhecimento de que dispomos quando descobrimos as respostas. Quando formulamos a questão do fato ou do simples existir, estamos indagando se a coisa possui ou não um termo médio; mas quando, após termos ciência do fato ou de que o sujeito existe (em outras palavras, que é num sentido particular, ou simplesmente é), passamos, em seguida, a questionar o porquê do fato, ou o que é o sujeito, estamos indagando o que é o termo médio” (4).
Estas questões iniciais, acima descritas pelo filósofo, fazemos automaticamente em nosso interpretar médico pericial. São questões fundamentais do pensar lógico, como nos ensinou Aristóteles. Mas, o que seria este termo médio? O filósofo nos mostra: “há um termo médio? Ou Qual é o termo médio? Porque o termo médio é a causa e isso é o que estamos procurando descobrir em todos os casos. […] Há ou não há uma causa? E então quando cientes de que há uma causa, indagamos “Qual é a causa”? A causa do ser da substância – não ser isto ou aquilo, mas simplesmente existir – e a causa não do seu simples existir, mas por ser associada a algum predicado essencial ou acidental – são em ambos os casos o termo médio. […] Assim, como asseveramos. Conhecer a essência de uma coisa é o mesmo que conhecer a sua causa. Isto assim é, quer o sujeito simplesmente seja, independentemente de ser qualquer de seus predicados, quer seja um dos seus predicados; por exemplo, ter a soma de seus ângulos internos igual a dois ângulos retos, ou maior ou menor” (4).
Para a atividade médico pericial, as reflexões acima feitas pelo filósofo nos mostram o quanto o estudo da causa e da causalidade são centrais em nosso agir. Pode-se até afirmar que a existência da nossa especialidade esteja assentada nestes dois conceitos. Quando estamos diante de evento, dado, fenômeno, pessoa com algo a relatar ou queixar-se, as questões elencadas acima por Aristóteles possibilitam um modo, método, a aquilo que estamos investigando, avaliando, ou ainda, procurando evidenciar, demonstrar. À guisa de exemplo, vejamos o que o médico perito enfrenta no cotidiano. É comum, nas seis áreas de atuação da especialidade, que o médico perito no Brasil seja chamado para avaliar o possível dano pessoal sofrido por determinada pessoa. Uma sequela de fratura, de lesão no sistema nervoso, de diminuição da capacidade de determinada função, de instalação de hipossuficiência física ou psíquica, irá demandar o uso das questões: O quê? Por quê? Se é? Do que é? Baseado nestas quatro questões propostas, foram desenvolvidos inúmeros métodos de avaliação, inclusive nos sistemas administrativos, como, por exemplo, o sistema 5W2H. Sabe-se que a causalidade e a necessidade constituem os pilares para a construção científica na visão de Aristóteles; Porchat-Pereira (5) no livro “Ciência e Dialética em Aristóteles” assim se manifesta: “causalidade e necessidade, eis aí, por conseguinte, os dois traços fundamentais que caracterizam a ciência, tal como os Segundos Analíticos a concebem. Porque, se não se dá a presença conjunta de ambos, que é o que permite qualificar um conhecimento como científico, será apenas acidental” (5).
Esta vertente no tratar a causa quando se aborda fato ou fenômeno, a razão ou causa, ou ainda do ser ou existir e da essência é mais bem demonstrada quando o filósofo, no segundo livro dos Segundos Analíticos, assim se refere à causa e à causalidade: “só julgamos que temos conhecimento de uma coisa quando conhecemos a sua causa, e há quatro tipos de causa: a essência, as condições determinantes, a causa eficiente desencadeadora do processo e a causa final. Todas estas são exibidas através do termo médio. Não há condição determinante, caso se assuma apenas uma premissa. São necessárias, ao menos, duas, e a condição é atendida quando as premissas possuem um termo médio. Assim, a suposição deste único termo faz seguir necessariamente a conclusão” (4).
Este artigo trata da relação, vínculo, ligação entre duas coisas, proposições, no universo da causalidade. Busca-se aqui o que Aristóteles designou de “termo médio”, ou seja, a própria causa. No ambiente da medicina pericial, o princípio da causalidade que é condição necessária e suficiente que liga uma causa ao efeito dela decorrente, se deve levar em conta o ato do pensar e interpretar do médico perito em cada situação, onde é chamado e está dentro da logicidade pertinente do ato profissional que ele exerce. Ainda se deve observar que o pensar do médico perito que interpreta o fenômeno deve ser de tal forma que ele objetiva o fenômeno, o torna realidade.
No terceiro capítulo do livro da Física, Aristóteles (6) examina quais e quantas são as causas. Parte o filósofo da premissa de que o estudo visa o conhecer e que não aprendemos se não sabemos o porquê das coisas, mesma situação vivida pelo médico perito que necessita saber o porquê, assim como o demonstrar, ou seja, produzir a prova.
Trata o filósofo a causa enquanto forma e modelo, das partes contidas na definição, da origem do evento analisado, das mudanças ali ocorridas, daquilo em vista do que ocorre e, ainda, do que é intermediário entre o início e o fim do movimento e o que foi movido. Assim, o filósofo nos ensina sobre as causas: “todas as causas aqui mencionadas caem em quatro modos mais evidentes. As letras são causas das sílabas, como “aquilo de que”, assim como a matéria é causa daquilo que pode ser fabricado; o fogo (bem como os elementos de tal tipo) é causa dos corpos; as partes causas do todo; e as hipóteses causas da conclusão” (6).
Considerando-se como o filósofo encaminha o resumo da causalidade, se pôde ao longo da história perceber as quatro condições causais, ou seja, a formal, a material, a eficiente e a fina,l e chegarmos hoje, resumindo, em dois modais: a causa eficiente e a causa final.
Para Bunge (7), a mais importante conclusão é que o princípio da causalidade nem é uma panaceia nem uma superstição, que a lei da causação é uma hipótese filosófica que se utiliza na ciência e que tem validade aproximada em certas áreas de conhecimento, onde compete com outros princípios de determinação. “Uma variedade muito interessante de causalidade múltipla conjuntivo é aquele em que o complexo de causalidade pode ser decomposto em uma gradação hierárquica. Este procedimento foi recomendado por Galileu, que se recusou a considerar a igualdade de todos os fatores envolvidos em um verdadeiro complexo causal, ‘a verdadeira causa e os efeitos primários da mesma classe deve ser único’. Quando tal gradação das causas é possível, podemos falar sobre a causa primária, rompimento de primeiro grau, segunda perturbação grau e assim por diante. A aplicação do cálculo de perturbações em astronomia e física é baseada na possibilidade de tal gradação de fatores causais” (7).
No artigo “Causality and Imputation” de Hans Kelsen (8), publicado em 1950 na revista Ethics and International Journal of Social, Political and Legal Phylosophy, o autor já abordava uma distinção entre causalidade e imputação, como sendo dois tipos diferentes de conexão que podem ser estabelecidas, considerava duas maneiras diferentes em que dois estados de coisas podem ser conectados juntos como condição e consequência. A diferença conceitual adotada pelo autor é que, na imputação, teria a relação entre um determinado comportamento como condição e uma sanção como consequência, descrita por uma lei moral ou legal, produzida por um ato de vontade cujo significado é uma norma. Enquanto na definição de causalidade, a relação entre causa e efeito descrita por uma lei natural é independente de qualquer intervenção desse tipo. Outra diferença é que toda causa concreta deve ser considerada como o efeito de alguma outra causa, e todo efeito concreto como a causa de algum outro efeito, e assim – pela própria natureza da causalidade – a cadeia de causa e efeito é infinita em ambas direções. No caso de imputação, a situação é completamente diferente.
O SIGNIFICADO DE NEXO DE CAUSALIDADE NA MEDICINA E SEU USO
É inconteste a importância que a causa tem na vida. A medicina, particularmente na sua avaliação, denominada de exame médico, tem como metodologia básica buscar o que causou a queixa de um agravo à saúde, seja uma doença, um transtorno, uma lesão, ou qualquer outro evento que deixou danos na pessoa, sejam físicos, mentais, sociais ou espirituais.
Buscar a causa é verificar a existência de nexo de causalidade, e para discutir esta relação, partimos do conceito de causalidade. Por causalidade ou causalismo, entende-se o método por meio do qual o pensador ou pesquisador busca o conhecimento das coisas, das verdades, pela busca de suas causas, estudando-as, analisando-as. Num sentido mais amplo, a causalidade ou determinação de um fenômeno é a maneira específica na qual os eventos se relacionam e surgem. Apreender a causalidade de um fenômeno é apreender sua inteligibilidade. Embora causa e efeito sejam em geral referidos a eventos, também podem ser referidos a objetos, processos, situações, propriedades, variáveis, fatos ou estados de coisas. A caracterização de uma relação causal, distinguindo-a da simples correlação, ainda é assunto controverso (9). “Enquanto conceito, a causalidade é determinada, de um lado, pelas condições concretas de existência, de outro, pela capacidade intelectiva do Homem em cada contexto histórico, vale dizer, enquanto conceito, categoria explicativa, a questão da causa é revestida de historicidade” (10).
A história do conceito de causalidade vai apresentar transformações de conteúdo, muito embora a forma tenha se mantido todo o tempo inalterada. Na Filosofia, vários modelos de causalidade são utilizados para explicar os fenômenos, seja nas ciências (humanas ou exatas), seja no senso comum. Dentre os modelos, podemos citar alguns deles: Causalidade linear ou simples; Gatilho; Efeito dominó; Retroalimentação; Efeito bola de neve; Círculo vicioso ou Círculo virtuoso; Efeito borboleta; Emergência; Salto de qualidade; Implicação recíproca ou Interação; e Teleologia (no advento do pensamento científico moderno, este modelo foi abandonado) (9).
Entre os povos da antiguidade, a questão da causa da doença era entendida em duas vertentes. Uma das vertentes, presente nas concepções dos assírios, egípcios, caldeus, hebreus e outros povos, que “toma o corpo humano como receptáculo de uma causa externa que, penetrando-o, irá produzir a doença sem que o organismo, de algum modo, participe ativamente no processo. As causas tanto podem ser elementos naturais, quanto espíritos sobrenaturais. Os sistemas filosóficos de compreensão do mundo desses povos eram todos de caráter religioso; assim, as observações empíricas relativas ao aparecimento das doenças e à função curativa de plantas e recursos naturais também eram revestidas desse caráter religioso” (10).
Outra vertente de entendimento da causa das doenças é a da medicina hindu e chinesa. Nestas, “a doença é vista como consequência do desequilíbrio entre os elementos, humores, que compõe o organismo humano. A causa do desequilíbrio era buscada no ambiente físico, isto é, na influência dos astros, no clima, nos insetos e outros animais associados às doenças. A medicina chinesa desenvolveu um sistema complexo de correspondências entre os cinco elementos que compõem os organismos vivos (madeira, metal, terra, água e fogo), suas características, cores, planetas e órgãos-sede. Por exemplo, o coração mantém correspondência com o fogo, é quente, vermelho e regido por Marte” (10).
Na medicina chinesa, o entendimento é que a saúde “resulta do equilíbrio entre os princípios Yang e Yin. As causas externas provocam o desequilíbrio dos princípios, o que lavará a um desequilíbrio dos elementos, com o aparecimento da doença. Para restabelecer a saúde, procura-se restabelecer o equilíbrio da energia interna através de várias terapêuticas (acupuntura, do-in, etc.). Nesta concepção de doença, o homem desempenha papel ativo no processo, e as causas são naturalizadas, isto é, perdem o caráter mágico e religioso predominante na outra conceituação” (10).
No berço Grego, o estudo da Medicina segue as teorias hindus e chinesas, conceituando a saúde como um estado de harmonia perfeita entre os quatro elementos que compõem o corpo humano: terra, ar, água e fogo. A doença aparece como consequência da ação de fatores externos, o que provoca no organismo um distúrbio. Naquela época, a explicação causal entendida por Platão era que “[…] o corpo é composto da mistura de quatro elementos: terra, fogo, água e ar. A abundância ou falta desses elementos, fora do natural; a mudança de lugar, fazendo com que eles saiam de sua posição natural para outra que não lhes seja bem adaptada; ou o fato que um deles é forçado a receber uma quantidade que não é própria para ele, mas conveniente para outra espécie; todos esses fatores e outros similares são as causas que produzem distúrbios e moléstias” (10).
Hipócrates, considerado o pai da Medicina atual, tomando por base a teoria grega de saúde e doença, estabelece uma correspondência entre os humores, seus elementos, qualidades e órgãos-sede (10,11).
No seu livro “Dos ares, das águas e dos lugares”, Hipócrates incorpora à discussão do que causa as doenças as condições externas ao próprio corpo, e orienta que “quem quiser prosseguir no estudo da ciência da medicina deve proceder assim. Primeiro, deve considerar que efeitos cada estação do ano pode produzir, porque todas as estações não são iguais, mas diferem muito entre si mesmas e nas suas modificações. Tem que considerar em outro ponto os ventos quentes e os frios, em particular aqueles que são universais, mostrando bem aqueles peculiares a cada região. Deve também considerar as propriedades das águas, pois estas diferem em gosto e peso, de modo que a propriedade de uma difere muito de qualquer outra. Usando esta prova, deve examinar os problemas que surgem. Porque, se um médico conhece essas coisas bem, de preferência todas ela, de qualquer modo a maior parte, ele, ao chegar a uma cidade que não lhe é familiar, não ignorará as doenças locais ou a natureza daquelas que comumente dominam” (12).
Durante a Idade Média, notadamente na Europa, não se registram avanços no estudo da causalidade na área da saúde. A medicina retrocede, no sentido que se afasta de uma explicação mais científica, e passa a ter um caráter de prática eminentemente religiosa. Neste período, adoecer tinha como causa um castigo divino, e os que não concordavam eram duramente castigados, inclusive nas fogueiras da inquisição. Porém, o agravamento das condições de vida e consequentemente das condições de saúde resultou em um número crescente de epidemias, a exemplo da Peste Negra, determinando a necessidade de se rever a questão da causalidade das doenças (10,13,14).
Frente a todo prejuízo econômico e social determinado pelas epidemias, foi aberto espaço para a discussão médica das questões relativas às doenças, e particularmente as infecciosas, que acometiam a população de forma epidêmica. Nesta época, se torna evidente a noção de que a doença poderia ocorrer resultante do contágio entre um homem doente e outros homens até então sadios. Mas, apesar de toda a gravidade, a discussão da causa das doenças era variada, as explicações encontradas apresentavam uma grande diversidade de possibilidades, indo desde a influência dos astros na vida e morte das pessoas, ao meio ambiente contaminado por doentes (15,16).
No Renascimento, estudiosos retomam os experimentos e as observações sobre as condições de saúde e de doença, o que irá resultar na construção das ciências básicas. É na busca de uma explicação para as doenças epidêmicas, que se cria a concepção de partículas invisíveis, agentes responsáveis pela ocorrência das doenças e que atingem o homem de diferentes maneiras e se disseminam. No século XVI, é elaborada uma teoria do contágio, ou seja, elabora uma formulação da causalidade, em que um fator externo ao organismo penetra nele determinando o aparecimento da doença. A partir da teoria do contágio, os estudos vão evoluindo, até que na segunda metade do século XIX será adotada a teoria miasmática, que será hegemônica até o aparecimento da bacteriologia (15,16).
Durante todo o século XVIII, o estudo das causas das doenças cede lugar ao estudo da prática clínica. O objeto das pesquisas científicas se desloca e passa a ser estudar a localização das doenças na estrutura anatômica, e voltam-se para aprofundar a linguagem dos sinais e sintomas clínicos. O método clínico, por seu próprio caráter intensivo e singular, não propicia a abordagem das questões relativas às causas das doenças, pois estas se dão no plano coletivo, não sendo, portanto, verificáveis na dimensão particular do individual (15,16).
No final do século XVIII, surge a concepção de causação social, discutindo a relação entre as condições de vida e trabalho das populações e o aparecimento de doenças. O desenvolvimento teórico das ciências sociais vai contribuir com a elaboração de uma teoria social da medicina, na qual o ambiente social é a origem de todas as causas de doença, ou seja, as condições de vida e trabalho do homem são as causas das doenças. Porém, a causalidade da medicina social é contra hegemônica, continuando a vigorar a concepção miasmática da causalidade como a explicação hegemônica para a causa das doenças (17,18).
Com as denúncias e estudos demonstrando que as condições de vida e trabalho levam ao desgaste do trabalhador, comprometendo até mesmo sua reprodução, tais explicações causais serão absorvidas pelos governos, cujas respostas consistiram na implementação de medidas sanitárias e na criação de uma legislação trabalhista. Na metade do século XIX, as descobertas científicas na área de bacteriologia enfraqueceram ainda mais a concepção da causação social, restabelecendo que são as causas externas particuladas que podem provocar o aparecimento de doenças. Se no momento inicial eram invisíveis, agora são visíveis, à vista armada com microscópio ótico, e são denominadas bactérias. Tal perspectiva centrada na causa externa se fortalece como ciência dominante (17).
E assim surge a unicausalidade. A questão da causalidade fica simplificada, com um arcabouço teórico de que para cada doença haverá um agente etiológico, que deverá ser identificado e combatido por meio de vacinas ou produtos químicos. No início do século XX, quando a insuficiência dessa formulação ficará evidente, a ciência fará um retorno às concepções multicausais, sem que, entretanto, se recupere o conceito de causação social (19).
No decorrer do século XX, a noção de que são múltiplas as variáveis capazes de causar uma doença se tornará dominante na área de saúde pública, particularmente no campo da Epidemiologia. Vários modelos de explicação serão adotados, sendo que o mais comum nos diferentes modelos adotados hegemonicamente será o da redução do causalismo social em favor das construções a-históricas e biologicistas das doenças. Tal concepção será evidente na prática médica (19).
A primeira destas formulações do conceito de doença com explicação multicausal é elaborada por Gordon, na década de 20. Segundo esta concepção, a saúde é entendida como um estado de equilíbrio entre fatores diversos e múltiplos, enquanto a doença é gerada por um desequilíbrio em um ou mais destes fatores: o agente, o hospedeiro e o meio-ambiente. E a doença pode surgir por desequilíbrios que aumentam o peso dos fatores relacionados ao agente ou ao hospedeiro, ou por deslocamento dos fatores do meio-ambiente na direção de um ou outro desses fatores (19).
Uma das críticas feitas a este modelo é a simplificação exagerada do processo complexo de causação, além de ser extremamente mecanicista, porque os fatores são tomados isoladamente, como se não houvessem interações entre eles e, na prática, apenas um tipo de fator, aquele de maior peso, atuasse na produção da doença. Dessa forma, a multicausalidade vê-se reduzida a unicausalidade, com a única diferença de serem admitidas outras causas que não, apenas, a presença do agente etiológico (19).
Na década de 40, o movimento da Medicina Integral nos Estados Unidos, vai definir o homem como “ser bio-psico-social”, e vai levar a influenciar o novo conceito de saúde, e o conceito de multicausalidade passa a agregar uma outra ordem de fatores causais – fatores psíquicos. Os fatores sociais vão aparecer como atributo do homem e não como essência da própria existência humana (19).
Em 1965, o médico epidemiologista e estatístico britânico, Sir Austin Bradford-Hill propôs nove critérios, ou aspectos de associação, segundo ele próprio elaborado a serem considerados na distinção entre uma associação causal e uma não causal (20,21).
São nove critérios, onde quanto mais critérios forem preenchidos maior a chance de esta associação ser de “causa e efeito”:
1. Força da associação: quanto mais forte uma associação, mais provável que seja causal. A força da associação é medida pelo risco relativo ou pelo odds ratio;
2. Consistência: a relação deve ser condizente com os achados de outros estudos;
3. Especificidade: exposição específica causa a doença;
4. Temporalidade: causa deve ser anterior à doença;
5. Gradiente biológico (efeito dose-resposta): deve ser em gradiente, proporcional;
6. Plausibilidade biológica: a associação deve ter uma explicação plausível, concordante com o nível atual de conhecimento do processo patológico;
7. Coerência: os achados devem seguir o paradigma da ciência atual;
8. Evidências experimentais: mudanças na exposição mudam o padrão da doença;
9. Analogia: com outra doença ou com outra exposição.
Outro modelo em que o conceito de multicausalidade se exprime é aquele proposto por MacMahom (22), sob a denominação de Rede de Causalidade. Este modelo admite a existência de relações de interação recíprocas entre os múltiplos fatores envolvidos na causação da doença, de modo positivista, negando a possibilidade de conhecimento das causas. No entendimento deste autor, na atuação sobre as doenças, bastava identificar na rede de causalidade um componente mais frágil à intervenção, sem a necessidade de alterar todo o conjunto de fatores envolvidos.
O modelo mais acabado do conceito de multicausalidade é o modelo ecológico. Neste, a atividade e a sobrevivência dos agentes e hospedeiros dependem do ambiente, são alteradas por ele e, por outro lado, também alteram o ambiente em que se encontram, embora todos os elementos da relação sejam colocados em um mesmo plano a-histórico, intemporal, e a vida humana seja reduzida à sua condição animal. Com o Homem reduzido a um ser de categoria natural, pode ser classificado segundo critérios naturais, tais como idade, sexo e raça. Em consequência, a população de um ecossistema (agentes e hospedeiros), em um plano ecológico, não será abordada de forma consistente no que concerne às diferenças de classe que resultam da organização produtiva, consequentemente permitindo uma atuação limitada com relação aos problemas de saúde (22).
As críticas ao modelo ecológico intensificaram-se a partir do final da década de 60, visando uma reformulação da compreensão do processo saúde-doença, de tal forma que os conhecimentos epidemiológicos pudessem estar mais de acordo com os interesses populares, orientando novas práticas de intervenção. Surge daí uma nova conceituação do processo saúde-doença e a formulação da concepção de determinação social da doença. “Por processo saúde-doença da coletividade entendemos o modo específico pelo qual ocorre, nos grupos, o processo biológico de desgaste e reprodução, destacando como momentos particulares à presença de um funcionamento biológico diferente, com consequências para o desenvolvimento regular das atividades cotidianas, isto é, o surgimento da doença” (23).
Novamente, defrontam-se duas concepções de causalidade na saúde. De um lado, o modelo ecológico, com seu caráter a-histórico e “biologizante”; de outro, o modelo de determinação social, com maior poder explicativo, mas que retira o cerne da discussão para fora do corpo e de um processo adstrito a sistemas de saúde. E, ao se reportar para o externo, deixa de considerar os fatores ou variáveis internas ao homem.
Antecede a ideia de causa o efeito que dela decorra como condição essencial, o que não se torna possível verificar quando há um conjunto de causas concomitantes. Tal problema levou Stuart Mill a debruçar-se sobre o estudo, levando à criação do conceito de causação, constante da obra “A system of Logic”, publicada em 1843, segundo a qual, ao invés de se considerar como causas cada um dos antecedentes necessários, escolheu-se dar importância para o caráter da necessidade da relação entre causa e efeito, reduzindo a análise e o foco do problema a uma única causa.
Mas como ocorre este estabelecimento de nexo causal entre a doença/agravo à saúde e uma variável de fatores causais?
Na análise dos processos saúde/doença, discutimos a causalidade quando abordamos os conhecimentos da epidemiologia e seus paradigmas. Segundo Kuhn (24), “paradigmas” são as realizações científicas universalmente aceitas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência. Nesta revolução ou crise, os membros de uma dada área de conhecimento não podem mais deixar de evidenciar os componentes desintegradores da ciência tradicional, à qual a chamada “ciência normal” está ligada. E, num movimento, a comunidade científica força a rejeição da teoria anteriormente aceita, em favor de uma nova teoria incompatível com a anterior. Criam-se também reações por parte dos especialistas que trabalham com áreas cuja produção é afetada negativamente, por ser incompatível ou destoante em relação a essa nova teoria.
Para Santos (25), vivemos uma “época de transição entre o paradigma da ciência moderna e um novo paradigma” que já apresenta uma acumulação de sinais, que ele denomina “ciência pós-moderna”. Identificam dois tipos de crise, uma crise de crescimento e a outra de degenerescência. Citando Kuhn, Santos (25), refere que, na crise de crescimento, a modificação vai ser verificada na “matriz disciplinar de um dado ramo da ciência”, é revelada pela insatisfação perante métodos ou conceitos básicos até então usados sem qualquer contestação na disciplina, e termina por gerar novos instrumentos metodológicos e conceituais. As crises de degenerescência são crises do paradigma, ou seja, ocorrem em todas as disciplinas e de forma profunda, embora tal crise assuma características particulares em cada ciência.
Do ponto de vista de Kuhn, é necessário: “mostrar que a racionalidade e a veracidade do conhecimento científico só são compreensíveis no interior do paradigma em que acolhem, pois é este que proporciona o quadro de sentido de todas as práticas científicas em seu âmbito” (24).
Chalmers (26), ao afirmar que “nossas metas podem e devem ser modificadas diante do que aprendemos sobre o que é possível realizar”, indica-nos que existe uma necessidade de que “[…] nosso conhecimento esteja sempre sendo transformado, aperfeiçoado e ampliado, não é utopia”. Cabe então perguntar: que mudança de paradigma seria necessária para estudar os efeitos resultantes de toda uma mudança global, que abrange desde novas teorias físicas à reestruturação produtiva dentro de um mundo globalizado?
Almeida-Filho (27), estudando a epidemiologia, e dentro dela causalidade/nexo causal, descreve três paradigmas, designando-os: o Paradigma I — Paradigma da causalidade, o Paradigma II — Paradigma do risco, e o Paradigma III — Novo Paradigma.
O Paradigma I é o inicial na epidemiologia, baseava-se na definição de conhecimento trazido da clínica quase sem mediações — a doença. Os modelos heurísticos mais adequados são os modelos causais no sentido de estrutura de determinação efeito-específica. A questão de ser multicausal ou unicausal é irrelevante para sua identificação com esse paradigma, o problema é a natureza do nexo que sintetiza o processo de determinação.
O Paradigma II, neste o objeto epidemiológico se constitui como resíduo dos objetos probabilísticos e que opera como um tipo de determinação própria. Aplicam-se os modelos de risco: aqui o termo risco designa diretamente o objeto-resíduo, enquanto uma probabilidade de adoecer se desvia das probabilidades puramente aleatórias. Se a distribuição das doenças fosse explicada por modelos probabilísticos puros, portanto não determinada, não haveria lugar para as investigações de seus determinantes nem para a intervenção em seus processos. Admite-se a multicausalidade (27).
O Novo Paradigma — Paradigma III teria um objeto totalizado, com uma expectativa de interdeterminação sistêmica, objetivando dar conta da ocorrência de fenômenos cuja determinação não pode ser apreendida nos Paradigmas I e II. O modelo é o de sistemas dinâmicos, numa tentativa de respeitar a complexidade inerente aos processos concretos da natureza, da sociedade e da história (27).
Segundo Almeida-Filho (28), neste momento histórico existe maior possibilidade de construir um novo paradigma, mas para que isto ocorra é fundamental possibilitar um aumento da inquietação entre os que fazem a ciência normal com relação ao paradigma utilizado em sua prática de investigação, além de desenvolver formas ou maneiras de reconhecer o novo paradigma quando ele aparecer.
Nesta linha de pensamento, Breilh (29) afirma que a ocorrência de nexo epidemiológico é complexa e difícil de ser definida, principalmente porque a epidemiologia é uma ciência que estuda a distribuição das doenças e outros agravos nas populações, e que neste momento apresenta-se em contínuo processo de revisão de seus paradigmas.
Segundo Piccinini (30), a investigação cientifica está voltada para a causalidade dos fenômenos, e a medicina segue este paradigma. E em epidemiologia clínica, existem três formas de causalidade:
“1. Causa necessária e suficiente – é aquela que está presente sempre que algo ocorre, e este não acontece se ela não estiver presente.
2. Causa necessária, mas não suficiente – é aquela que se estiver ausente, o efeito não ocorre, mas se estiver presente, não implica que o efeito ocorra necessariamente.
3. Fator de risco – é um fator cuja presença aumenta a chance de algo ocorrer, mas não pode ser implicado como causa, senão que aumenta a eficiência desta. Somente uma investigação detalhada e precisa decidirá se um fator de risco será considerado uma causa ou não, porém muitas vezes não é possível.
Sendo necessário a verificação das variáveis intervenientes entre a causa e o efeito” (30).
No estudo epidemiológico da relação entre causa e efeito para estabelecer o nexo causal, existem variáveis que são consideradas modificadoras de efeito ou confundidoras, sendo que ambos os tipos de variáveis alteram a relação, ou associação, causa-efeito. Além disso, este estabelecimento de nexo causal/associação é dado através de uma relação matemática, de probabilidades ou de chances, onde, mesmo em estudos considerados padrão ouro, ainda restam naquela população estudada quem não se enquadre ao que se estabelece como tendo uma relação/associação causa-efeito. Assim, muitas vezes a causa pode ser subdividida para ser melhor analisada, ou mesmo verificar que aspecto da causa se pretende estudar, muitas vezes são múltiplas causas ou seja causa complexa. Assim como os efeitos, podem ser um ou vários. Tanto os modificadores de efeito como os confundidores são variáveis que podem interferir na relação causal (Figura 1). E as nomeadas concausas pelo direito, seriam tais confundidores ou modificadores de efeito? Ou seriam outras causas? Cientificamente ainda não fica evidente tal conclusão.

Gleiser (31) citando Einstein, expõe que “o que vemos do mundo é uma ínfima fração do que existe”, porque “qualquer tecnologia de detecção tem alcance e precisão limitados”. E na medicina, particularmente na medicina legal e ciências forenses/medicina legal e perícias médicas, esta questão não é diferente.
Assim, apontamos dois problemas concretos: sendo a base de estabelecimento de nexo causal, epidemiológica e, portanto, coletiva, como estabelecer o nexo de causalidade entre uma dada condição particular, logo singular, dado a variabilidade natural de um evento real e o aparecimento de um dado agravo à saúde e uma doença, transtorno ou lesão em um dado indivíduo, singular, com características únicas? Ou seja, como eu faço a aplicação de um conhecimento obtido através de um conjunto de pessoas a uma única destas pessoas?
E, como lidar com esta questão no escopo de uma perícia médica, que estabelece um nexo de causalidade, mas cujo evento acontece em um indivíduo singular, e com toda a variabilidade possível a uma análise científica? Qual seria o grau de certeza?
A questão se torna ainda mais complexa quando analisada sob o prisma das perícias envolvendo responsabilidade médica, especialmente no âmbito civil: “na análise do nexo causal deve-se sempre ter em mente que o organismo humano não é um dispositivo mecânico, em que os processos de funcionamento são, em regra, constantes e previsíveis. Toda atividade médica é regida pela incerteza, variabilidade e imprevisibilidade, características inerentes à própria biologia humana. A possibilidade de um resultado adverso está intrinsecamente presente em toda e qualquer intervenção médica, sendo imprevisível o exato comportamento do organismo do paciente a qualquer tipo de conduta, diagnóstica ou terapêutica” (32).
4. O SIGNIFICADO DE NEXO DE CAUSALIDADE NA MEDICINA LEGAL E PERÍCIA MÉDICA/MEDICINA LEGAL E CIÊNCIAS FORENSES
Na medicina legal e perícia médica/ medicina legal e ciências forenses teremos como um dos pontos fundamentais a avaliação do dano à pessoa, e na sequência a verificação da existência de nexo causal entre este dano encontrado (efeito) com o evento que é apontado como causa.
Mesmo considerando que o laudo médico pericial não é a prova única, podendo até mesmo ser descartada pelo juízo, segundo Nascimento (33), o estabelecimento do nexo causal é imprescindível para que o juiz possa estabelecer a correlação entre a lesão sofrida pela vítima e a conduta lesiva do ofensor, a fim de que a justiça possa definir, concluir sobre o processo em questão, e sobre sua respectiva indenização.
No Brasil (34), a Resolução nº 1.488/98 do Conselho Federal de Medicina, modificada pela Resolução CFM n. 1.810/2006 e pela nº 1.940/2010,no seu art. 2º, define que para o estabelecimento do nexo causal entre os transtornos de saúde e as atividades do trabalhador, além do exame clínico (físico e mental) e os exames complementares, quando necessários, deve o médico considerar: I – a história clínica e ocupacional, decisiva em qualquer diagnóstico e/ou investigação de nexo causal; II – o estudo do local de trabalho; III – o estudo da organização do trabalho; IV – os dados epidemiológicos; V – a literatura atualizada; VI – a ocorrência de quadro clínico ou subclínico em trabalhador exposto a condições agressivas; VII – a identificação de riscos físicos, químicos, biológicos, mecânicos, estressantes e outros; VIII – o depoimento e a experiência dos trabalhadores; e IX – os conhecimentos e as práticas de outras disciplinas e de seus profissionais, sejam ou não da área da saúde.
Para que se estabeleça o nexo causal entre um dano à pessoa, seja por doença, transtorno ou lesão, e as sequelas daí decorrentes, que constituem o efeito e a causa que lhe deu base. Este efeito é a necessária existência de uma doença, transtorno ou lesão, ou sequela após estas, que representem um dano à pessoa, entendendo aqui o componente físico, psíquico, social ou espiritual, cujo diagnóstico é feito com base no exame clínico, nos exames complementares e na história clínica e ocupacional, disponíveis a cada época.
E, mais uma vez, cabe aqui ressaltar a necessidade de diálogo entre Direito e Medicina. A análise pericial não é realizada sem propósito, ou distante da realidade dos fatos. Os conceitos aplicáveis em Medicina, nem sempre coincidem com aqueles utilizados pelo Direito, especialmente no que pertine à relevância técnico-jurídica para o deslinde de uma controvérsia.
É preciso, pois, adequar as conclusões aos seus reflexos jurídicos.
“O resultado do trabalho de um perito, expresso no laudo pericial, tem o potencial de influenciar decisivamente a autoridade requisitante na formação de sua convicção, exigindo redobrada atenção na conclusão acerca da relação de causa e efeito entre a conduta e um alegado dano, pois tal relação não pode embasar-se apenas em meras conjecturas, opiniões, deduções ou probabilidades, mas sim em uma indiscutível certeza probatória. Infelizmente, o instituto do nexo de causalidade tem sido muito frequentemente utilizado em perícias médicas de forma atécnica, equivocada ou incompleta, pois não basta afirmar-se pericialmente que determinada conduta médica tenha contribuído para o desencadeamento ou agravamento de um dano ou patologia, mas comprovar tecnicamente ter sido esta conduta: (a) ilícita (contrária às normas profissionais) e; (b) suficiente e adequada para o resultado adverso, frente às circunstâncias próprias de sua apresentação no caso concreto. Por isso, é fundamental, em perícias, a correta verificação do nexo causal, cuja desconsideração inexoravelmente levará a graves equívocos. Deve-se lembrar que provar é querer, em substância, demonstrar a verdade. Por vezes torna-se difícil, ou até mesmo impossível, identificar o fato que constitui a verdadeira causa do dano. Tecnicamente, para caracterizar o nexo causal, exige-se um encadeamento entre o fato e o dano que consista na conexão e congruência entre ambos, de modo que a realidade de um conduza logicamente ao conhecimento do outro. Para apreciar a relação de causalidade, o perito deve necessariamente considerar que, para o Direito brasileiro, causa é aquela eficiente ou decisiva que, por suas circunstâncias, inequivocamente determina o dano. Trata-se, portanto, de uma questão de fato a ser investigada em cada caso concreto, e não é suficiente observar a mera superveniência lógico-cronológica” (32).
O segundo pressuposto é a constatação de que existiu exposição a um agente externo. Para esta constatação, a metodologia deve contemplar o estudo do ambiente onde se ocorreu esta exposição, ou mesmo de estudos elaborados por outros técnicos que acompanham esta equipe interdisciplinar.
Os diagnósticos médicos são estabelecidos, consideramos as entidades nosológicas denominadas doenças, transtornos e lesões que estão definidas na Classificação Estatística Internacional de Doenças pela Organização Mundial da Saúde e Organização Panamericana da Saúde, na sua décima revisão – CID-10 (35). Assim, trabalhamos com os mesmos conceitos básicos, e, considerando não ser a medicina uma ciência exata, ocorrem variações em sua aplicabilidade.
A ocorrência de um agravo à saúde em um indivíduo A nem sempre ocorre da mesma forma que em individuo B, ou seja, eles podem apresentar alguns sintomas e sinais de forma diferenciada. Mas, tanto o indivíduo A como indivíduo B terão que apresentar características básicas para que definamos que nos dois casos está ocorrendo um agravo à saúde definida na CID. Muitas vezes o diagnóstico de um agravo à saúde é realizado apenas através de exame médico pela inexistência de exames complementares, específicos e de reconhecida comprovação científica, ou pelo não acesso a exames já existentes.
Mas é importante salientar que existe uma infinidade de situações em que o homem pode se sentir adoecido, incomodado, lesado em sua integridade física, dentre outras possibilidades, e pode considerar-se doente. Neste caso, é necessário o conhecimento e a distinção de que, muitas vezes, aquilo que sente é uma enfermidade e não pode ser caracterizado como um agravo à saúde já classificado pela OMS.
Existe diferença entre doença e enfermidade. Doença (equivalendo-se aqui a transtornos e lesão) é um termo amplamente utilizado e refere-se a qualquer condição que prejudica a função normal do organismo, caracterizada como conjunto de sintomas e sinais já classificados como uma doença, um transtorno, uma lesão, ou um problema relacionados à saúde, reconhecidos pela Organização Mundial de Saúde – a qual revisa constantemente a CID, a partir dos novos conhecimentos científicos que vão sendo adquiridos, estabelecendo o que, em dado momento histórico, temos como doenças, transtornos, e problemas relacionados à saúde.
Enfermidade pode ser utilizada como sinônimo de doença, mas este termo é ocasionalmente usado para se referir especificamente à experiência pessoal do paciente, e no caso da perícia médica, do periciando, em relação a sua doença. O problema é que, muitas vezes, à esta condição de adoecimento, o médico não diagnostica a correspondente doença, transtorno ou problema de saúde, logo, não caracterizando dano corporal. Ou seja, às queixas do requerente descritas no início do processo podem corresponder à enfermidade sentida pelo autor e referida na anamnese durante o exame médico pericial, porém, não haverá evidência dos demais critérios necessários a conclusão “diagnóstico de uma doença, transtorno ou problema relacionado a saúde”, caracterizando uma doença ou problema de saúde que conste na CID 10.
Na medicina, algumas especialidades como a medicina legal e perícia médica/medicina legal e ciências forenses, trabalham cotidianamente com o estabelecimento de nexo causal, sendo nosso objetivo caracterizar se existe a doença, transtorno, lesão ou outro problema de saúde, ou ainda sequelas que se caracterize como um dano à pessoa, cabendo ao médico perito atenção sobre possíveis disparidades entre o relatado – como o periciado refere suas queixas, história da doença, história ocupacional, dentre outras questões, e o que é diagnosticado como dano à pessoa. E este deve ser um dos agravos constantes na Classificação Internacional da Doença – CID em vigor, além de definir qual a sua natureza, extensão e sequelas.
O segundo requisito para se estabelecer nexo causal é que o dano à pessoa tenha relação direta com um dado fato. Ou seja, que a causa que deu origem ao dano pessoal ou ao agravamento do dano, tenha sido de modo inquestionável o que está sendo apontado como causador. Assim, faz-se necessário a constatação à quais agentes ou fatores etiológicos o indivíduo estava exposto.
Assim, ao objetivarmos estabelecer nexo causal, é necessária a confirmação de que existe um efeito, representado por um dano corporal resultante de uma doença ou problemas de saúde relacionados ao trabalho (classificada na CID-10) e uma causa, que pode ser um agente etiológico ou fator de risco ocupacional, de qualquer natureza, a que estava exposto o indivíduo.
Segundo Oliveira, Vieira e Corte-Real (36), no trabalho sobre nexo de causalidade e estado anterior na avaliação médico legal do dano corporal é um assunto de particular relevância, e consideram ser uma das suas principais dificuldades, consideram colocar o estabelecimento da imputabilidade em jogo múltiplos elementos, nomeadamente o diagnóstico médico, a dúvida científica, problemas de eventuais estados anteriores ou até o segredo médico.
Para Oliveira, Vieira e Corte-Real (36), “uma decisão errada relativamente à imputabilidade pode levar a uma injustiça num sentido ou noutro” e consideram que “os principais erros de peritagem são erros de imputabilidade”. Os autores pontuam a necessidade de dissociar o procedimento médico do procedimento jurídico. “É fundamental que se compreenda que existe uma diferença entre o procedimento médico, que procura estabelecer uma relação entre a alteração da integridade psico-física de uma dada pessoa e um determinado evento, e o procedimento jurídico, que tem por missão atribuir as consequências dessa alteração ao responsável pelo evento, isto é, pelo ato ou omissão que provocou as lesões, com tudo o que do ponto de vista jurídico se pode daí retirar no plano da responsabilidade do autor desse evento e da reparação da vítima”.
“A imputabilidade médica[1] (também chamada causalidade médico-legal) é a relação entre a situação psico-física de um determinado indivíduo e um determinado facto, é o elemento que permite admitir cientificamente a existência de uma ligação entre um qualquer evento e um estado patológico, uma alteração na integridade psico-física; por exemplo, entre um acidente de viação e uma fractura ou entre uma fractura e uma dor articular. A causalidade jurídica será a qualidade da causa, a relação entre a responsabilidade do autor do evento (do tal acto ou omissão) e a situação considerada; é o elemento que, em direito, permite admitir que um determinado acto é a causa de uma determinada situação; por exemplo, que o erro cometido pelo responsável por um dado acidente é a causa do prejuízo sofrido pela vítima.”
Para Oliveira, Vieira e Corte-Real (36), “a análise do nexo de causalidade representa a etapa intermediária entre a imputabilidade médica e a causalidade jurídica, é o caminho percorrido desde o evento até à situação, a explicação da causa(s), da(s) sua(s) modalidade(s) de ação e do(s) seu(s) papéis respectivos. O estabelecimento da causalidade é competência do jurista. O estabelecimento da imputabilidade médica e a análise do nexo que a fundamenta é tarefa do perito médico. O perito médico está presente para informar o jurista, para o esclarecer, para o ajudar na decisão que este terá de tomar relativamente à causalidade. E não basta, por vezes, que dê uma resposta afirmativa ou negativa. É frequentemente preciso (sempre preciso, acrescentaríamos) que explique o raciocínio que sustenta a passagem da causa ao efeito, isto é, a imputabilidade, no caso dos danos cuja apreciação é de índole médica. A imputabilidade médica é, pois, de certa forma, a explicação, frequentemente simples, mas por vezes muito complexa, dos mecanismos fisiopatológicos que permitiram às lesões iniciais gerar lesões temporárias ou permanentes, apesar, por exemplo, dos eventuais tratamentos. Esta explicação deve, naturalmente, ser cientificamente coerente. E esta coerência supõe desde logo que as lesões iniciais sejam perfeitamente conhecidas e que as sequelas tenham sido perfeitamente inventariadas e analisadas.”
Para Oliveira, Vieira e Corte-Real (36), no estabelecimento do nexo de causalidade, que eles denominam de imputabilidade médica, e, para tal, pode utilizar os critérios propostos por Muller e Cordonnier em 1925, ajustados por diversos autores, mas bastante referido na literatura médico-legal como critérios de Simonin (37), por ter dado melhor explicitação e divulgação.
“Em número de sete na sua versão original (e não vislumbramos razões substanciais para seguir os reagrupamentos ou modificações propostas posteriormente por diversos autores), estes critérios constituem uma preciosa ajuda à reflexão e à decisão. Devem, todavia, ser interpretados com precaução e com a consciência plena de que nenhuma regra doutrinal estipula que a verificação de um determinado número desses critérios permite concluir pela imputabilidade, sendo, todavia, certo que a verificação de alguns é absolutamente obrigatória. Envolvem, como veremos, três aspectos essenciais: a sede (localização das lesões e sequelas), o tempo (intervalo de aparecimento e continuidade evolutiva) e a explicação patogénica (a fisiopatologia das lesões e sequelas). Analisemos então cada um deles:
1.º O primeiro critério é o da verossimilhança científica;
2.º O segundo critério a ponderar envolve a certeza diagnóstica. Consiste em determinar com exatidão as lesões e a sua natureza adequada à etiologia em causa. É um critério capital;
3.º O terceiro critério a ter em consideração é o da integridade pré-existente da região ou da função atingida, isto é, a exclusão da pré-existência de dano;
4.º O quarto critério a ponderar é a concordância de lugar, isto é, a adequação entre a região atingida no contexto do evento e a sede da lesão;
5.º A adequação temporal, isto é o intervalo entre o ato ou evento e o aparecimento das lesões, é outro critério importante, a interpretar em função de cada caso particular;
6.º Encadeamento anátomo-clínico ou, por outras palavras, continuidade evolutiva. Trata-se de critério encadeado com o anteriormente referido e que pode ser determinante, sobretudo quando o tal intervalo abordado no ponto anterior é demasiado longo.
7.º Finalmente, a realidade do fato ou do evento associado às lesões observadas, ou seja, a exclusão de uma causa estranha. Esta é uma condição indispensável à qual se pode juntar a intensidade do traumatismo. Este último critério completa o da verossimilhança, referido logo no início, particularmente no domínio dos traumatismos psíquicos ou emocionais.
É precisamente esta cuidadosa ponderação no âmbito da análise de cada caso submetido a perícia, que permitirá ao perito médico obter uma primeira resposta à problemática em apreço. E se esta é positiva, deve então assinalar a imputabilidade, não esquecendo que deve dar apenas uma opinião técnica ao jurista a quem compete.”
Assim, no estabelecimento da imputabilidade médica e do nexo de causalidade no dano corporal pós-traumático os critérios de verossimilhança, certeza diagnóstica da lesão, integridade pré-existente da região ou da função atingida, concordância de lugar entre a região atingida no contexto do evento e a sede da lesão, adequação temporal, espaço entre o ato ou evento e o aparecimento das lesões, encadeamento anátomo-clínico, e exclusão de uma causa estranha, parecem atender se não a imputabilidade, nexo causal ou associação causal. E este associação é tanto maior, quanto mais evidente for a caracterização do trauma.
Um ponto importante ainda não muito estudado na literatura é sobre estabelecer o nexo de causalidade nos casos das doenças e transtornos em dano à pessoa, cujo agravo à saúde não se caracterize como pós-traumático, ou seja, a ocorrência da possível causa não é evidente. Assim como o momento inicial quando a saúde da pessoa foi comprometida, e a partir de quando este dano foi iniciado (Figura 2).
[1] Em Direito, chama-se de imputabilidade penal a capacidade que tem a pessoa que praticou certo ato, definido como crime, de entender o que está fazendo e de poder determinar se, de acordo com esse entendimento, será ou não legalmente punida. A inimputabilidade pode ser absoluta ou relativa.
Se for absoluta, isso significa que não importam as circunstâncias, o indivíduo definido como “inimputável” não poderá ser penalmente responsabilizado por seus atos na legislação convencional, ficando sujeitos às normas estabelecidas em legislação especial.
Se a inimputabilidade for relativa, isso indica que o indivíduo pertencente a certas categorias definidas em lei poderá ou não ser penalmente responsabilizado por seus atos, dependendo da análise individual de cada caso na Justiça, segundo a avaliação da capacidade do acusado, as circunstâncias atenuantes ou agravantes, as peculiaridades do caso e as provas existentes.
“Em número de sete na sua versão original (e não vislumbramos razões substanciais para seguir os reagrupamentos ou modificações propostas posteriormente por diversos autores), estes critérios constituem uma preciosa ajuda à reflexão e à decisão. Devem, todavia, ser interpretados com precaução e com a consciência plena de que nenhuma regra doutrinal estipula que a verificação de um determinado número desses critérios permite concluir pela imputabilidade, sendo, todavia, certo que a verificação de alguns é absolutamente obrigatória. Envolvem, como veremos, três aspectos essenciais: a sede (localização das lesões e sequelas), o tempo (intervalo de aparecimento e continuidade evolutiva) e a explicação patogénica (a fisiopatologia das lesões e sequelas). Analisemos então cada um deles:
1.º O primeiro critério é o da verossimilhança científica;
2.º O segundo critério a ponderar envolve a certeza diagnóstica. Consiste em determinar com exatidão as lesões e a sua natureza adequada à etiologia em causa. É um critério capital;
3.º O terceiro critério a ter em consideração é o da integridade pré-existente da região ou da função atingida, isto é, a exclusão da pré-existência de dano;
4.º O quarto critério a ponderar é a concordância de lugar, isto é, a adequação entre a região atingida no contexto do evento e a sede da lesão;
5.º A adequação temporal, isto é o intervalo entre o ato ou evento e o aparecimento das lesões, é outro critério importante, a interpretar em função de cada caso particular;
6.º Encadeamento anátomo-clínico ou, por outras palavras, continuidade evolutiva. Trata-se de critério encadeado com o anteriormente referido e que pode ser determinante, sobretudo quando o tal intervalo abordado no ponto anterior é demasiado longo.
7.º Finalmente, a realidade do fato ou do evento associado às lesões observadas, ou seja, a exclusão de uma causa estranha. Esta é uma condição indispensável à qual se pode juntar a intensidade do traumatismo. Este último critério completa o da verossimilhança, referido logo no início, particularmente no domínio dos traumatismos psíquicos ou emocionais.
É precisamente esta cuidadosa ponderação no âmbito da análise de cada caso submetido a perícia, que permitirá ao perito médico obter uma primeira resposta à problemática em apreço. E se esta é positiva, deve então assinalar a imputabilidade, não esquecendo que deve dar apenas uma opinião técnica ao jurista a quem compete.”
Assim, no estabelecimento da imputabilidade médica e do nexo de causalidade no dano corporal pós-traumático os critérios de verossimilhança, certeza diagnóstica da lesão, integridade pré-existente da região ou da função atingida, concordância de lugar entre a região atingida no contexto do evento e a sede da lesão, adequação temporal, espaço entre o ato ou evento e o aparecimento das lesões, encadeamento anátomo-clínico, e exclusão de uma causa estranha, parecem atender se não a imputabilidade, nexo causal ou associação causal. E este associação é tanto maior, quanto mais evidente for a caracterização do trauma.
Um ponto importante ainda não muito estudado na literatura é sobre estabelecer o nexo de causalidade nos casos das doenças e transtornos em dano à pessoa, cujo agravo à saúde não se caracterize como pós-traumático, ou seja, a ocorrência da possível causa não é evidente. Assim como o momento inicial quando a saúde da pessoa foi comprometida, e a partir de quando este dano foi iniciado (Figura 2).

Na caracterização do nexo causal de doenças e transtornos, vamos ter dificuldade na verificação do critério da verossimilhança científica, porque os estudos médicos que estabelecem nexo causal e mais frequentemente associação, são elaborados a partir de casos individuais, que em conjunto resultam em indicadores de frequência, incidência, prevalência risco relativo e risco atribuído. O maior problema é que estes achados, mesmo que cientificamente aceitos, não se aplicam de forma perfeita ao individual. Resultante dos modelos matemáticos newtonianos, estes estudos mesmo ao utilizar regressão logística fazem análise de associação, não tem poder de utilizar um grande número de variáveis, mesmo com a utilização de programas avançados com o Statistical Analysis System – SAS. O fato é que os estudos estatísticos e epidemiológicos, neste momento histórico, são importantes, pois servem de orientação a estudos que aprimorem esta relação causa-efeito que venham através de banco de dados mais complexos e amplos, e venham a aperfeiçoar esta questão.
No caso das doenças e transtornos, o segundo problema é a certeza diagnóstica, principalmente na exatidão das doenças e transtornos e a sua natureza adequada à etiologia em causa.
O terceiro critério, o da integridade pré-existente da região afetada, ou da função atingida, que pode ser denominada como data inicial da doença ou transtorno, para exclusão da pré-existência de dano, é muito dificilmente identificada, sendo comum a utilização de data do diagnóstico, mas que para a análise de nexo causal pode ser muito distante do que precisamos avaliar neste critério.
O quarto critério, a adequação entre a região atingida no contexto do evento e a sede da doença ou transtorno é de difícil aplicabilidade. A exposição a agentes que são absorvidos pelo organismo e que apresentam efeitos tóxicos, nem sempre tem conhecido a fisiopatologia e a toxicologia, assim como não sabemos os impactos na pessoa de agravos à mente e a consciência.
Difícil é também a adequação temporal, estabelecer o intervalo entre quando ocorreu o ato ou evento (causa) e o aparecimento das doenças e transtornos (efeito) em casos que não se caracterizam como pós-traumático.
Somente a análise do encadeamento anátomo-clínico de muitas doenças ou transtornos não consegue explicar o nexo causal, ou mesmo alguma associação entre causa e efeito. O que é mais fácil nos casos das lesões. E mesmo quando verificamos o encadeamento anatomopatológico, estas podem ser confundidas ou modificadas por fatores individuais, sejam genéticos, orgânicos, ambientais ou de outras ordens que ainda não temos devidamente caracterizados do ponto de vista científico.
A exclusão de uma causa estranha é a mais difícil de ser estabelecida. E novamente aqui temos o problema de que o conhecimento científico da quase totalidade de doenças e transtornos são consideradas multicausais, e neste aspecto não é fácil definir o que seja “estranho” na associação entre a causa e o efeito. E a verossimilhança se dá com referências científicas que nem sempre dão conta de explicar a existência de nexo causal ou de algum nível de associação.
Estabelece-se também que o nexo de causalidade pode ser certo ou hipotético; direto ou indireto; exclusivo ou parcial; estes termos não são utilizados nem pelos filósofos nem pelos cientistas ao discutirem este tema. Em alguns textos jurídicos se estabelece a existência de concausas, que podem ser consideradas preexistente, simultânea ou superveniente. O termo concausa, é um termo utilizado na área do Direito, considerando a necessidade de avaliação médico legal; o conceito passou a ser utilizado na medicina legal e perícia médica, porém não é encontrado nas ciências da saúde, nas demais áreas da ciência médica e nem na epidemiologia. E para esta área de conhecimento o que não é causa ou causas, é modificadora de efeito podendo ter efeito positivo, aumentando a intensidade do efeito, ou negativo, reduzindo o efeito. Ou pode ser uma variável confundidora, ou seja, aparentemente interfere, mas matematicamente se comprova, ao isolar a variável, que não apresenta interferência na relação ou associação causa-efeito.
5. CONCLUSÃO – MAIS QUESTIONAMENTOS
A utilização do nexo de causalidade em medicina legal e perícia médica, tem como objetivo avaliar se existe relação entre uma determinada causa alegada a um dano existente (doença, transtorno ou lesão, que representa prejuízo à pessoa).
Nos casos característicos de uma evidência de trauma, ou seja, no estabelecimento de nexo causal nos casos de lesões pós-trauma esta caracterização encontra nos critérios de Hill sua fundamentação, notadamente nos casos que Hill entendia como de causa direta. Porém, nos casos de doenças e transtornos, este estabelecimento ainda apresenta grandes dificuldades, principalmente pela dificuldade de caraterização do momento inicial da doença ou do transtorno.
Apesar da importância do tema observamos que somente a transição de paradigmas científicos trará condições de avançarmos em termos de conhecimento científico nesta área. Apesar da inquietação dos que estudam e atuam nestas áreas, os métodos e técnicas de que dispomos ainda são constitutivos do paradigma hegemônico cuja metodologia ainda não consegue suportar toda a complexidade de se estabelecer qual o nexo causal entre um evento e outro quando se trata de doença ou de qualquer outro agravo à saúde.
A discussão de nexo causal na ciência da saúde encontra suas bases na epidemiologia e utiliza o Paradigma II, onde o objeto epidemiológico se constitui como resíduo dos objetos probabilísticos. Utilizam modelos de risco enquanto uma probabilidade de adoecer, se acidentar ou se afastar do ambiente de trabalho, que se desvia das probabilidades puramente aleatórias. Admite-se a multicausalidade. É ainda pequeno o número de trabalhos que utilizam outras formas de abordagem, como as metodologias qualitativas, interativas, participativas e etnológicas.
Como poderemos enriquecer a teoria científica e a metodologia utilizada indo além do teste de hipóteses? Como utilizar conceitos e modelos explicativos mais abrangentes, capazes de dar conta de questões complexas como as relacionadas à saúde ocupacional? Como tomar a saúde para além da mera configuração do risco? Como ser transdisciplinar, numa área onde o trabalho interdisciplinar ainda não é uma realidade?
Das respostas para estes questionamentos, depende o futuro e evolução da ciência que envolve a Medicina Legal e a Perícia Médica.
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