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Relato de Caso

RELATO DE TRÊS CASOS: SUSPEITA DE ABUSO SEXUAL E PROLAPSO URETRAL

Como citar: Freiria GF, Andrade LI, Ferreira LCS, Zanuncio AV, Diniz AAM, Nunes JPF. Relato de três casos: suspeita de abuso sexual e prolapso uretral. Persp Med Legal Pericia Med. 2022; 7: e221118

https://dx.doi.org/10.47005/221118

Recebido em 01/09/2022
Aceito em 24/11/2022

Os autores informam que haver conflito de interesse.

THREE CASE REPORTS: SUSPICION OF SEXUAL ABUSE AND URETHRAL PROLAPSE

Gabriela Ferreira Freiria (1)

http://lattes.cnpq.br/6817383186551912https://orcid.org/0000-0002-1043-5572

Leonardo Isolani e Andrade (1)

http://lattes.cnpq.br/5623511422797664 https://orcid.org/0000-0001-8215-1360

Letícia Conceição de Sousa Ferreira (1)

http://lattes.cnpq.br/3009185983616140https://orcid.org/0000-0002-5619-4006

Andressa Vinha Zanuncio (2)

http://lattes.cnpq.br/9200056649934993https://orcid.org/0000-0001-5760-1307

Alexandre Afonso Macedo Diniz (3)

http://lattes.cnpq.br/8570134718345884https://orcid.org/0000-0002-1043-5572

João Paulo Fonseca Nunes (4)

http://lattes.cnpq.br/3424771828547431https://orcid.org/0000-0002-7425-1414

(1) Graduando em Medicina, Universidade Federal de São João del-Rei, Campus Centro-Oeste, Divinópolis-MG, Brasil. (autor principal)

(2) Mestre e Doutora – UFMG. Professor Adjunto UFSJ/CCO. Médica Legista – PCMG. (orientador)

(3) Médico Legista e Urologista, Divinópolis-MG, Brasil. (coorientador)

(4) Médico Legista e Médico do Trabalho, Divinópolis-MG, Brasil. (coorientador)

E-mail para correspondência: zandressa@gmail.com

RESUMO

Palavras-chave: prolapso uretral, prolapso de uretra, hemorragia genital, abuso sexual infantil.

Introdução: O prolapso uretral pode ser caracterizado por uma protrusão circular da uretra distalmente ao meato uretral externo, sendo seu diagnóstico inteiramente clínico. A etiologia ainda não é completamente definida, mas existem algumas hipóteses de causas clínicas. O prolapso de uretra também é um dos achados no abuso sexual infantil, porém, por se tratar de um quadro raro, os profissionais de saúde possuem pouca experiência em diagnosticá-lo e diferenciá-lo dos demais eventos que ocorrem na infância. Objetivo: Demonstrar a importância do diagnóstico diferencial do prolapso de uretra, no rol das afecções clínicas que podem levantar a suspeita de abuso sexual de crianças. Materiais e métodos: Trata-se de um estudo descritivo, que apresenta o relato de três casos de prolapso uretral em crianças, ocorridos em uma cidade de médio porte do estado de Minas Gerais, que foram avaliadas por perito médico-legista devido suspeita de abuso sexual. Discussão: O prolapso de uretra é um quadro pouco frequente, mas deve ser considerado no diagnóstico diferencial de casos de hemorragia urogenital em crianças pré- púberes. Conclusão: É imprescindível caracterizar corretamente o prolapso de uretra, sua provável etiologia e, na suspeita de abuso sexual, ser investigado pela autoridade médico pericial.

ABSTRACT

Introduction: Urethral prolapse can be characterized by a circular protrusion of the urethra distally to the external urethral meatus, and its diagnosis is entirely clinical. The etiology is still not completely defined, but there are some hypotheses of clinical causes. Urethral prolapse is also one of the findings in child sexual abuse, however, as a rare condition, health professionals have little experience in diagnosing and distinguish it from other events that occur in childhood. Objective: To demonstrate the importance of the differential diagnosis of clinical conditions that can also characterize suspected child sexual abuse. Material and methods: This is a descriptive study, which presents the report of three cases of urethral prolapse, in which suspicions of sexual abuse were raised in a medium-sized city in Minas Gerais. Discussion: Urethral prolapse is an uncommon condition, but it should be considered in the differential diagnosis in cases of urogenital hemorrhage in prepubertal children. Conclusion: It is essential to correctly characterize the urethral prolapse, its probable etiology and, in the case of suspected sexual abuse, to be investigated by the expert medical authority.

Keywords: urethral prolapse, genital hemorrhage, child sexual abuse.

1. INTRODUÇÃO

O prolapso uretral é uma condição rara que é mais frequentemente encontrada em meninas pré-púberes negras e em mulheres pós-menopausa brancas. Pode ser caracterizado por uma protrusão circular da uretra distalmente ao meato uretral externo. O diagnóstico é inteiramente clínico, ou seja, não necessita de solicitação de exames laboratoriais e de imagem. Sua etiologia não é muito bem esclarecida, porém algumas hipóteses são formuladas, como níveis baixos de estrogênio, associação fraca entre as camadas musculares da uretra e episódios recorrentes de aumento da pressão intra-abdominal (1).

Os achados mais frequentes são hemorragia urogenital indolor, disúria, retenção urinária e dor aguda na região genital, porém muitos casos não possuem sintomas e são achados incidentais em crianças no exame físico de rotina. A presença de sangue na fralda ou roupa íntima é a forma de apresentação mais comum e é necessário saber diferenciar de outras causas, como traumas, puberdade precoce e vulvovaginite.

O tratamento se divide em conservador, que apresenta taxa de sucesso de apenas um terço dos casos, e cirúrgico. O conservador se baseia na diminuição dos esforços com o repouso, banhos de assento para redução da inflamação e a utilização de estrógenos tópicos no local. O procedimento cirúrgico é indicado quando há complicações como hemorragia intensa, gangrena de Fournier, ou recidivas e ausência de melhora (2).

É importante pontuar que, por se tratar de um quadro raro, os profissionais de saúde possuem pouca experiência em diagnosticar e conduzir os casos, o que pode culminar em consequências psicológicas para a criança e os pais. Dessa forma, ressalta-se a importância da divulgação desses casos para a comunidade científica.

2. MATERIAL E MÉTODO

Trata-se de um estudo com delineamento descritivo e os dados obtidos dos casos relatados a seguir foram retirados de laudos periciais de um posto de perícia integrada da cidade de Divinópolis, Minas Gerais.

3. DESCRIÇÃO E TÉCNICA

3.1. CASO 1

Menina, 4 anos, levada a consulta médica pela mãe porque a criança apresentou sangramento genital. Durante consulta é constatado sangramento vaginal e colhida história de suposto “abuso sexual pelo pai”. A Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) e a Polícia Civil foram acionadas. A criança se encontrava muito agitada e sentindo dor a manipulação de área genital, por isso não foi possível realizar exame físico de forma adequada e foi solicitada uma nova avaliação com a criança sob sedação. A criança era pré-púbere, sem comorbidades, não fazia uso contínuo de medicações, e não tinha histórico de alterações anu-genitais prévias.

Submetida ao exame físico na sala do bloco cirúrgico do hospital da internação, sob sedação leve, com procedimento realizado e acompanhado por anestesista.

Ao exame físico, em posição ginecológica, notou-se a ausência de evidências de lesões em área extragenital, abdome plano, sem massas palpáveis. Observou-se o monte de Vênus sem pelos, simetria dos grandes e pequenos lábios, o clitóris e meato urinário usuais, o vestíbulo e fúrcula íntegros e fossa navicular aspecto usual, sem evidências de lesões.

Na região vestibular foi observada massa circunferencial mamilonada vermelho- violácea, de aspecto edemaciado, em região ao redor de óstio uretral, que impediu a visualização da membrana himenal/vagina (Figura 1). Após afastamento da massa supracitada, usando swab de algodão, foi possível visualizar a membrana himenal. Notou-se que o hímen tinha consistência membranosa, de forma anular, de orla média e óstio médio, apresentando-se íntegro. Ausência de secreções ou vegetações sugestivas de doenças venéreas. Região perianal: ausência de lesões macroscópicas visíveis, ânus com pregueamento habitual, tônus musculares preservados.

Figura 1: Massa circunferencial mamilonada vermelho-violácea visualizada no exame físico.

3.1.1. Exames complementares

Colhidos dois swabs orais, dois swabs vaginais, dois swabs perianais para análise de DNA e demais exames cabíveis no Laboratório de Biologia Forense do Instituto De Criminalística. Realizados dois esfregaços de swabs em lâminas, sendo um perianal e outro vaginal, enviados para Pesquisa de Espermatozoide no Laboratório de Anatomia Patológica, cujo resultado foi ausência de espermatozoides nas lâminas e ausência de microrganismos coráveis causadores de tricomoníase ou gonorreia. Conclusão: Quadro compatível de enfermidade denominada prolapso uretral.

3.2. CASO 2

Menina, 6 anos. Compareceu à UPA, levada pela mãe, com história de dor abdominal e sangramento vaginal. A pediatra constatou alteração ao exame de região genital. Suspeitando de abuso sexual, acionou a PMMG e o concurso do Perito Médico-Legista.

Ao exame médico-pericial observou-se, a região vestibular, massa circunferencial mamilonada violácea, impedindo a visualização da membrana himenal/vagina. Introduzido um cateter nº 6 lubrificado com xilocaína gel pelo orifício daquela massa, observou-se a drenagem de líquido amarelo citrino compatível com urina.

Conclusão: Quadro compatível com prolapso uretral. A médica pediatra assistente iniciou o tratamento e acompanhará a evolução da criança. A PMMG, que já havia sido acionada pela pediatra, exarou o Registro de Eventos de Defesa Social (REDS).

3.3. CASO 3

Criança do sexo feminino, 5 anos de idade, admitida em hospital por suspeita de abuso sexual. A mãe procurou atendimento médico devido a sintomas urinários da criança: hematúria, tumoração na região vaginal e presença de sangue na roupa íntima. Realizada inspeção vaginal sob sedação e prescrito pomada local (Candicort).

No dia seguinte a família procurou atendimento com o especialista que optou por internação para melhor investigação do quadro, realizada notificação de suspeita de abuso.

Realizado o exame médico-pericial, 3 dias após a primeira consulta médica, foi visualizada tumoração violácea com orifício central e secção às 4h, na região da vagina (Figura 2). O hímen não foi examinado por dificuldades no exame físico. Hipótese diagnóstica: Prolapso de uretra.

Figura 2: Tumoração violácea na região da vagina

Foi solicitado avaliação da urologia que realizou redução do prolapso e inspeção himenal após 3 dias, sendo observado hímen íntegro, com borda estreita e óstio amplo, anular, com presença de entalhe às 8h (Figura 3). Ausência de secreções sugestivas de doenças.

Figura 3: Inspeção após redução do prolapso de uretra.

4. DISCUSSÃO

O sangramento genital em pré-púberes, como os relatados neste artigo, deve ser investigado e conduzido de maneira minuciosa, a fim de esclarecer as causas e promover o fluxo correto de assistência à criança. Dentre as causas, destacam- se trauma, abuso sexual, corpo estranho, puberdade precoce, vaginites infecciosas, tumores genitais, líquen escleroso e prolapso de uretra. O abuso sexual é, em uma significativa parte dos casos, a principal hipótese diagnóstica considerada pelos médicos, assim como pelos responsáveis. Porém, a prevalência dessas diferentes etiologias varia entre os estudos. O prolapso de uretra é uma causa rara nesta faixa etária, mas é um dos achados no quadro de abuso sexual infantil, tema delicado e que apresenta crescimento nas últimas décadas.

Apesar do aumento do número de denúncias nos últimos anos, o correto diagnóstico desses casos ainda apresenta impasses, como diferenciar sinais cutâneos decorrentes do abuso de eventos comuns na infância.

De forma geral, pode-se evidenciar quatro principais tipos de abuso, sendo eles o físico, o emocional, o por negligência e o sexual, sendo esse último o foco da nossa discussão, especialmente na infância (3).

É importante ressaltar que a gravidade do abuso e sua posterior consequência no infanto está relacionada com o tipo de abuso executado, sendo os que envolvem penetração anal, vaginal e oral os mais graves.

Dentre os fatores de risco para o abuso sexual podemos citar o sexo, sendo o feminino o mais prevalente; a idade, em que indivíduos mais jovens apresentam maior recorrência de abuso, assim como hospitalizações e infecções sexualmente transmissíveis; e educação parental, no qual é menor o risco para crianças filhas de mães cuja escolaridade é maior que 12 anos (4).

Um dos pontos que torna o diagnóstico de abuso sexual difícil é o fato de que a maior parte dos casos não apresenta lesões agudas logo após o contato sexual, como supracitado no caso 1, em que não havia lesões extracorpóreas e no caso 3, em que a criança foi encaminhada devido a sintomas urinários. Outro ponto que pode ser observado nos 3 relatos e está presente na literatura é a relação da integridade do hímen com a atividade sexual. Não é incomum relatos populares referindo que a existência da membrana himenal exclui a penetração, especialmente em mulheres adultas, porém essa informação torna-se equivocada uma vez que o hímen é elástico e sofre variações anatômicas (5). 

Nesse contexto, uma vez que o prolapso uretral pode ser diagnosticado clinicamente, sem exames laboratoriais ou de imagem, é uma etiologia que, embora rara, deve ser considerada no diagnóstico diferencial de quadros de hemorragia urogenital em crianças pré-púberes (1).

5. CONCLUSÃO

Prolapso uretral é um dos diversos achados na região genital que podem se apresentar como hemorragia urogenital e, logo, ser relacionado à violência sexual infantil. Porém, é imprescindível o diagnóstico diferencial com outras patologias que acometem o trato geniturinário das crianças, como afecções dermatológicas, infecções e outras condições congênitas ou adquiridas. Assim, a fim de caracterizar corretamente o prolapso de uretra e sua provável etiologia, todo caso suspeito deve ser avaliado por autoridades médico-periciais, como os casos descritos no presente relato, para que se verifique ou descarte abuso sexual.


Referências bibliográficas

  1. Torres R, Leite AL, Silva AV, Balona F, Ramalho G, Sousa P, et al. Prolapso Uretral. Acta Urológica. 2012; 4: p.47-50.
  2. Miares CG, Carretero SF, Serna JMP, Díaz EA. Prolapso uretral en una niña con sangrado urogenital [Urethral prolapse in a girl with urogenital bleeding]. Arch Argent          2020;           118(1):           p26-29.
  3. Gondim RMF, Muñoz DR, Petri V. Violência contra a criança: indicadores dermatológicos e diagnósticos diferenciais. Anais Brasileiros de Dermatologia. 2011; 86: p.527-536.
  4. Sanjeevi J, Houlihan D, Bergstrom KA, Langley MM, Judkins J. A review of child sexual abuse: impact, risk, and resilience in the context of culture. Journal of child sexual abuse. 2018; 27(6): p.622-641.
  5. Pomeranz ES. Child abuse and conditions that mimic it. Pediatr Clin North Am. 2018; 65(6): p.1135-50.