Artigo de Revisão

DILEMAS ENFRENTADOS PELOS MÉDICOS PERITOS DIANTE DA PSICOSE PUERPERAL RELACIONADA AO INFANTICÍDIO

Como citar: Satti ALC, Sartório MC, Moura MSG, Miziara ID. Dilemas enfrentados pelos médicos peritos diante da psicose puerperal relacionada ao infanticídio. Persp Med Legal Pericia Med. 2023; 7: e221221

https://dx.doi.org/10.47005/221221

Recebido em 28/01/2022
Aceito em 31/03/2022

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Os autores informam não haver conflito de interesse.

DILEMMAS FACED BY EXPERT PHYSICIANS IN THE FACE OF PUERPERL PSYCHOSIS RELATED TO INFANICIDE

Ana Laura de Carvalho Satti (1)

https://orcid.org/0000-0001-6534-5788

Maria Carolina Sartório (1)

https://orcid.org/0000-0001-7253-9732

Matheus Santos Guimarães de Moura (1)

https://orcid.org/0000-0002-2797-883X

Ivan Dieb Miziara (2)

https://orcid.org/0000-0001-7180-8873

(1) Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, Departamento de Medicina Legal, Bioética, Medicina do trabalho e Medicina física e reabilitação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo – SP, Brasil. (autor)

(2) Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, Departamento de Medicina Legal, Bioética, Medicina do trabalho e Medicina física e reabilitação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo – SP, Brasil. (orientador)

Email: a.laurasatti@hc.fm.usp.br

RESUMO

Introdução: A psicose puerperal é definida como um tipo de transtorno psicótico breve ocorrendo nas três semanas após o parto, mas, predominantemente nas primeiras 48-72 horas, embora seja rara (0,1 a 0,2%) é urgência médica e deve ser tratada o mais breve possível. A presença de sintomas prodrômicos (irritabilidade, mudança súbita de comportamento entre outros) que evoluem rapidamente para quadro psicótico (delírios e alucinações). Nesse contexto, o infanticídio é o ápice para a interpretação forense. Em 2021, o The Lancet publica artigo questionando se a psicose puerperal é uma nova doença. Nem a CID nem o DSM trazem esse diagnóstico como uma doença distinta. Objetivo: Expor os principais conflitos enfrentados pelos médicos peritos diante do suposto crime de infanticídio na óptica do Código Penal. Marco conceitual: O estabelecimento o nexo entre estado de psicose puerperal e o infanticídio é uma tarefa muito difícil e depende, muitas vezes, de documentos do médico assistente. Metodologia: Estudo realizado no Departamento de Medicina Legal, Bioética, Medicina do Trabalho e Medicina Física e de Reabilitação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Foi realizada revisão narrativa de literatura com enfoque a sinais e sintomas sugestivos ou conclusivos de psicose puerperal diante de crime de infanticídio. Foram acessados artigos nas bases de dados Lilacs e PubMed, aplicando os descritores “transtorno psicótico”, “psicose pós-parto”, “perícia”; livros textos também foram incluídos. Não foi estabelecido limite de tempo na busca, mas foram incluídos artigos obtidos na íntegra. Resultados: O artigo 123 do Código Penal, de 1940, determina que o crime de infanticídio é “matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena – detenção, de dois a seis anos.”, nesse ponto é visível a dificuldade para definir assertivamente o que é logo após, assim como estabelecer os critérios mentais que tornaram esse crime uma ação não em que a mulher não tinha noção do fato realizado. A ciência ainda tem dificuldades para estabelecer a nosologia e a relação temporal entre o início das alterações mentais e o parto e quais as mudanças biológicas estão envolvidas, essas são as palavras de um dos maiores investigadores do tema, Patrick McGorry. A busca de relação genética entre o transtorno bipolar e a psicose puerperal tem sido aventada. Mas, outra questão a ser discutida, nem todas as psicoses puerperais estão ligadas ao infanticídio. Outro dilema enfrentado é a falta de hábito em aplicar os termos infanticídio e neonaticídio com suas designações individuais. O primeiro seria a morte de uma criança no primeiro ano de vida por sua mãe e o segundo seria a morte nas primeiras 24 horas de vida. A questão central para o médico perito é estabelecer se o neonaticídio decorre de uma questão social em que a criança é indesejada ou se decorre de um transtorno dissociativo, de despersonalização ou alucinatório em que a mãe não apresenta capacidade de entendimento e autodeterminação. A literatura médica raramente imputa o neonaticídio à doença mental. Cabe ao médico perito estabelecer com rigor técnico que no momento do ato criminoso a mulher estava sob condição de doença que aboliu completamente sua capacidade. Dessa forma, o médico perito deve realizar a perícia cumprindo o rito técnico e solicitar documentações médicas sobre as condições clínicas e mentais da periciada à época do puerpério. A busca de fatores de risco pode auxiliar o médico, mas é preciso saber que o perfil das mulheres varia conforme a tipologia do fato, isto é, neonaticídio e infanticídio. Diagnósticos diferenciais entre síndrome de identificação errônea delirante que pode estar acompanhada de hostilidade em relação à identificação errática delirante, a sindrome de Capgras em que a mulher pode acreditar que seu filho foi trocado e que a criança diante dela é uma impostora. Pela fugacidade dos sintomas psicóticos, a perícia psiquiátrica que determina a imputabilidade da mãe infanticida frequentemente é realizada já na ausência de qualquer manifestação clínica de psicose. Conclusão: A perícia psiquiátrica da mulher que alega psicose puerperal é desafiadora pela fugacidade do quadro sintomático e a realização tardia. Se baseia em análise de documentação médica – desde o momento do parto e puerpério – sintomatologia descrita por familiares próximos, pela epidemiologia do quadro e sua associação com transtornos de humor.

Palavras-chave: psicose, psicose puerperal, infanticídio.

ABSTRACT

Introduction: Puerperal psychosis is defined as a type of brief psychotic disorder occurring within three weeks after delivery, but predominantly within the first 48-72 hours, although rare (0.1 to 0.2%), it is a medical emergency and should be be treated as soon as possible. The presence of prodromal symptoms (irritability, sudden change in behavior, among others) that rapidly progress to a psychotic condition (delusions and hallucinations). In this context, infanticide is the apex for forensic interpretation. In 2021, The Lancet publishes an article questioning whether puerperal psychosis is a new disease. Neither the ICD nor the DSM bring this diagnosis as a distinct disease . Objective: To expose the main conflicts faced by medical experts in the face of the alleged crime of infanticide from the perspective of the Penal Code Conceptual framework: Establishing the nexus between puerperal psychosis and infanticide is a very difficult task and often depends on documents from the attending physician. Material and methods: Study carried out at the Department of Legal Medicine, Bioethics, Occupational Medicine and Physical and Rehabilitation Medicine of the Faculty of Medicine of the University of São Paulo. A narrative review of the literature was carried out, focusing on signs and symptoms suggestive or conclusive of puerperal psychosis in the face of the crime of infanticide. Articles in the Lilacs and PubMed databases were accessed, applying the descriptors “psychotic disorder”, “postpartum psychosis”, “expertise”; Textbooks were also included. No time limit was established for the search, but articles obtained in full were included. Results: Article 123 of the Penal Code, from 1940, determines that the crime of infanticide is “killing, under the influence of the puerperal state, one’s own child, during childbirth or shortly after: Penalty – detention, from two to six years. ”, at this point it is visible the difficulty to assertively define what it is right after, as well as to establish the mental criteria that made this crime an action in which the woman was not aware of the fact performed. Science still struggles to establish nosology and the temporal relationship between the onset of mental changes and childbirth and which biological changes are involved, these are the words of one of the greatest researchers on the subject, Patrick McGorry. The search for a genetic relationship between bipolar disorder and puerperal psychosis has been suggested. But, another issue to be discussed, not all puerperal psychoses are linked to infanticide. Another dilemma faced is the lack of habit in applying the terms infanticide and neonaticide with their individual designations. The first would be the death of a child in the first year of life by its mother and the second would be the death within the first 24 hours of life. The central question for the medical expert is to establish whether the neonaticide stems from a social issue in which the child is unwanted or whether it stems from a dissociative, depersonalization or hallucinatory disorder in which the mother does not have the capacity for understanding and self-determination. The medical literature rarely attributes neonaticide to mental illness. It is up to the medical expert to establish with technical rigor that at the time of the criminal act the woman was under a condition of illness that completely abolished her capacity. In this way, the medical expert must carry out the examination by complying with the technical rite and request medical documentation on the clinical and mental conditions of the expert at the time of the puerperium. The search for risk factors can help the doctor, but it is necessary to know that the profile of women varies according to the typology of the fact, that is, neonaticide and infanticide. Differential diagnoses between delusional misidentification syndrome which may be accompanied by hostility towards delusional erratic identification, Capgras syndrome in which the woman may believe that her child has been switched and that the child in front of her is an imposter. Due to the transience of psychotic symptoms, the psychiatric expertise that determines the imputability of the infanticidal mother is often performed in the absence of any clinical manifestation of psychosis. Conclusion: The psychiatric expertise of the woman who claims puerperal psychosis is challenging due to the elusiveness of the symptomatic picture and the late realization. It is based on an analysis of medical documentation – from the moment of childbirth and the puerperium – symptoms described by close family members, the epidemiology of the condition and its association with mood disorders.

Keywords: psycosis, puerperal psycosis, infanticide. 

1. INTRODUÇÃO

A psicose puerperal é definida como um tipo de transtorno psicótico breve ocorrendo nas três semanas após o parto, mas, predominantemente nas primeiras 48-72 horas, embora seja rara (0,1 a 0,2%) é urgência médica e deve ser tratada o mais breve possível. A presença de sintomas prodrômicos (irritabilidade, mudança súbita de comportamento entre outros) que evoluem rapidamente para quadro psicótico (delírios e alucinações). Nesse contexto, o infanticídio é o ápice para a interpretação forense.

As alterações psíquicas relativas à gestação e puerpério têm sido observadas e acolhidas pelos profissionais de saúde assistencial há séculos. A relação da gestante com a gravidez é personalíssima, dependendo de questões ambientais presentes e passadas; de como suas relações afetivas e de apoio estão articuladas; da percepção do próprio estado gravídico e de seu planejamento – ou falta de; e particularidades da saúde mental e psique de cada gestante em especial (1). A reação emocional da mulher ao filho por vir ou recém-nascido pode variar dentro de todo o espectro de emoções humanas, inclusive as fortemente negativas, sem que seja caracterizada doença psíquica de qualquer natureza. Em algumas ocasiões, porém, podem assumir caráter patológico, mais frequentemente se organizando em quadros psiquiátricos de alteração de humor (baby blues e depressão pós-parto) ou transtornos da sensopercepção (psicose puerperal).

Estima-se que a psicose puerperal, ou psicose pós-parto, ocorra em 1-2 a cada 1000 partos (2, 3) globalmente, sendo de 50-60% destas mulheres primíparas. Essa patologia está caracterizada no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) (4) como um subtipo do transtorno psicótico breve (ou seja, com duração dos sintomas menor que um mês), em que o quadro se inicia em até 4 semanas do parto. Os sintomas têm em seu cerne manifestações alucinatórias ou delirantes floridas (geralmente de teor de negação ou menos-valia do novo filho; persecutórios ou paranóides envolvendo a criança na narrativa psicótica; ou de comandos de mutilação e morte de si própria e/ou do recém-nascido), frequentemente apresentando um pequeno pródromo somático de insônia, agitação, labilidade de humor, declínio cognitivo discreto. A psicose puerperal é considerada uma emergência psiquiátrica, e seu tratamento deve ser iniciado imediatamente, com possibilidade de tratamento ambulatorial caso não haja probabilidade alta de tentativa de suicídio ou infanticídio. Não é necessário que haja distanciamento total entre a mãe e o recém-nascido, porém este contato deve ser feito de maneira supervisionada (5).

A maioria dos casos tem uma boa recuperação da fase aguda, com a possibilidade de recorrência em nova gestação e/ou deflagração (caso não haja diagnóstico prévio) de um transtorno psiquiátrico independente do estado puerperal, em especial transtorno bipolar (6, 7). Um desfecho menos amigável, porém, apesar de raro, é o infanticídio, caracterizado no código penal brasileiro (8) como:

Art. 23: Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após.

Apesar de a psicose puerperal não ser um fator necessário para que se caracterize o crime de infanticídio, ela frequentemente está presente ou é alegada, e cabe ao médico perito designado que se avalie o estado mental da mulher em questão. Devido ao tempo dos trâmites legais, frequentemente a perícia é realizada de meses a anos após o evento criminoso, o que traz dificuldade peculiar no caso de uma patologia que é fugaz em sua essência. O presente trabalho objetiva, por meio de revisão de literatura, somar às demais publicações na área da psiquiatria forense no tema da psicose puerperal e trazer à tona as variáveis mais importantes de se analisar durante o trabalho pericial neste tipo de demanda.

2. OBJETIVOS

 Expor os principais conflitos enfrentados pelos médicos peritos diante do suposto crime de infanticídio na óptica do Código Penal.

3. MARCO CONCEITUAL

O estabelecimento o nexo entre estado de psicose puerperal e o infanticídio é uma tarefa muito difícil e depende, muitas vezes, de documentos do médico assistente.

4. METODOLOGIA

Estudo realizado no Departamento de Medicina Legal, Bioética, Medicina do Trabalho e Medicina Física e de Reabilitação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Foi realizada revisão narrativa de literatura com enfoque a sinais e sintomas sugestivos ou conclusivos de psicose puerperal diante de crime de infanticídio. Foram acessados artigos nas bases de dados Lilacs e PubMed, aplicando os descritores “transtorno psicótico”, “psicose pós-parto”, “perícia”; livros textos também foram incluídos. Não foi estabelecido limite de tempo na busca, mas foram incluídos artigos obtidos na íntegra.

5. CONTEXTUALIZAÇÃO

5.1. A MÃE

Pensamentos agressivos maternos em relação à sua prole são mais frequentes do que se poderia estimar, ainda que na ausência do raro (0,002%) fenômeno da psicose puerperal. Mesmo entre mães que não estão em vigência de psicose puerperal, mas apresentam sintomas depressivos, 41% já tiveram pensamentos de agressão direcionada aos filhos menores de três anos (9), versus 7% das mulheres sem sintomas depressivos. É interessante o exemplo de que a porcentagem de mulheres com pensamentos heteroagressivos contra o próprio bebê aumenta astronomicamente (70%) durante episódios de cólica no infante, sendo que 26% consideraram matar o infante. (10)

O evento da psicose puerperal levando a suicídio ou infanticídio é ainda mais raro, sendo que estudos logitudinais apontam maior probabilidade de suicídio ao longo da vida do que na vigência do episódio psicótico em si. Quanto ao infanticídio, é mais frequente em mulheres com sintomas depressivos concomitantes (4,5%) do que nas que não apresentam tais sintomas (<1%) (11). Outra variável analisada em estudos relativos ao perfil das mulheres que cometem infanticídio, é a sociodemografia das pessoas analisadas. Em um estudo americano retrospectivo considerando as bases de dados sobre infanticídio revelaram que mulheres jovens, de baixa renda, sem apoio do parceiro, com histórico criminal e sem cuidado de pré-natal foram as perpetradoras mais frequentes de infanticídio na população geral (11), mas entre as mulheres que foram consideradas como tendo uma influência psiquiátrica no ato, os dados apontam para mulheres jovens, de classe média-baixa, com histórico pessoal ou familiar de doença psiquiátrica (principalmente transtornos do humor, especialmente transtorno afetivo bipolar), com pouco apoio familiar e de parceiro (sugerindo um componente ambiental no desenvolvimento da psicose puerperal)  (6, 7, 13, 14, 15, 16), primigestas (embora não seja exclusivo desse grupo) (17).

5.1. O TRIBUNAL

            O infanticídio, que se mostra como figura jurídica predominante ao se tratar de psicose puerperal é um crime de prática única e exclusivamente cometido pela mulher-mãe. Um aspecto importante nesse cenário é a punibilidade da mulher que comete o delito.

Ao analisar a história do infanticídio no Brasil nos deparamos com uma figura antiga e que passa por três estatutos. O código criminal do Império de 1830 que em seu art. 198, decretava: “ Se a própria mãe matar o filho recém-nascido para ocultar a sua desonra: Pena — prisão com trabalho de 1 a 3 anos”. Já o código criminal de 1890 definia em seu art. 298 com a seguinte redação: “Matar recém-nascido, isto é, infante, nos sete primeiros dias de seu nascimento, quer empregando meios diretos e ativos, quer recusando à vítima os cuidados necessários à manutenção da vida e a impedir sua morte”. Em seu parágrafo único revelava uma pena mais branda se o crime fosse praticado pela mãe, para ocultar a desonra própria. Já o atual código leva em critérios de natureza psicofisiológica e a influência do estado puerperal. No art. 123, lê-se: “Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena — detenção de 2 a 6 anos”. Assim, o infanticídio é considerado um delito autônomo e com denominação jurídica própria18.

A legislação brasileira, de acordo com o Artigo 26 do Código Penal 19, considera que é “isento de pena o agente que por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”. Ou seja, este será considerado inimputável. Em se tratando do crime de infanticídio, existe redução da pena e não livramento dela, uma vez que a autora será enquadrada como semi-imputável. 

Para o crime de infanticídio tenha ordenação jurídica, são necessários quatro elementos20: o bebê ser um feto nascente ou recém-nascido, que este tenha nascido com vida, que a parturiente tenha intenção de matar e que ela, no momento do crime, esteja com a psique comprovadamente abalada por conta do estado puerperal.

Um estudo feito por Almada et al. em 2020, realizou uma pesquisa de jurisprudência em 17 processos do Rio de Janeiro e de Minas Gerais que apresentaram o crime de infanticídio e a análise de estado puerperal como principal pauta do escrito21. Dos 17 acórdãos consultados, em 3 deles houve o julgamento pelo Tribunal do Júri, sendo que em 2 as rés foram consideradas imputáveis e condenadas pelo crime de homicídio e em um 1 a ré foi considerada inimputável. Nos demais 14 processos o recurso ocorreu anteriormente ao julgamento pelo Tribunal do Júri, não abordando a questão da culpabilidade da ré. Apenas um dos acórdãos analisados traz um caso de absolvição por comprovada insanidade mental. O documento conta com a conclusão do exame de sanidade mental da ré realizado por um médico e um psiquiatra, atestando que “[…] em razão da influência do estado puerperal, era inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento” (MINAS GERAIS, Proc. nº 1.0024.03.012110-7/001).

No crime de infanticídio, a ação penal é pública incondicionada, ou seja, o Ministério Público tem a atribuição para a sua propositura, independentemente de representação do ofendido22. O bem jurídico tutelado no crime de infanticídio é a vida humana, mais precisamente a vida do nascente – aquele que ainda não se livrou totalmente da dependência da mãe – e a vida do neonato – aquele que acabou de nascer 23.

RUDÁ (2010) descreve o infanticídio configurado24 como um crime próprio, visto somente pode ser cometido pela mãe ou, em circunstâncias especiais, por terceiros; É  instantâneo, visto que sua consumação se dá com uma única conduta, não produzindo, assim, resultado prolongado no tempo; Também é um crime comissivo, pois é cometido por meio de uma ação; É crime material já que só se consuma quando surge o resultado pretendido pelo agente; É de dano, obviamente, pois se consuma com a efetiva lesão a um bem jurídico tutelado; É um crime unissubjetivo, pois pode ser praticado por uma única pessoa; É plurisubsistente, já que exige vários atos que compõem a mesma ação, logo é perfeitamente admissível a modalidade tentada porque o agente ativo poderá não alcançar seu objetivo por circunstâncias alheias à sua vontade; e por fim, é um crime de forma livre, visto que pode ser praticado de qualquer modo pelo agente, não havendo, no tipo penal, qualquer vínculo com o método.

5.3. A PERÍCIA

Embora a perícia conte com um fator de complicação temporal, pois raramente será realizada durante o episódio com maior florescer de sintomas e antes de que seja realizado um tratamento da mulher em questão, ainda algumas características podem ser determinadas no exame psíquico dado que psicose a pós-parto pode ter resolução abrupta, porém mais freqüentemente ela evolui para formas depressivas näo-puerperais prolongada (25). Embora possa ter cessado, por involução ou tratamento especializado, o quadro de alucinações, inquietação, agitação e confusão mental, é comum que a pericianda apresente humor deprimido, com ideias paranoides, hipocondríacas e niilistas. Considerando, conforme exposto acima, o risco aumentado que mulheres com doenças psiquiátricas, em especial transtorno bipolar, estão de desenvolver o quadro, tanto o prontuário de internação obstétrica, que deve conter as informações do estado mental da mãe no peri-parto, quanto, se existirem, os prontuários de acompanhamento psiquiátrico rotineiro da mãe, registros de internações prévias e da internação para controle do quadro psicótico puerperal se esta ocorreu. O perito também pode usar as informações epidemiológicas da pericianda como fatores de probabilidade da ocorrência do evento (conforme já citadas, mulheres jovens, de classe média-baixa, com histórico pessoal ou familiar de doença psiquiátrica (principalmente transtornos do humor, especialmente transtorno afetivo bipolar), com pouco apoio familiar e de parceiro e primigestas). Os dados de perícia indireta, principalmente os relatórios e prontuários médicos, são de suma importância em casos que a sintomatologia no momento da perícia, que pode acontecer de meses a anos após o evento, é frustra, ressaltando a importância de uma boa documentação médica e da capacidade dos médicos obstetras e pediatras, que acompanham a pericianda nos primeiros dias de vida do concepto, de identificarem um possível caso de psicose puerperal.

Afirma a literatura especializada que a psicose puerperal, concomitante ou não com psicose no puerpério (mulheres com quadros psiquiátricos de psicose desde antes da gestação), são consideradas inimputáveis perante a lei. (26)

Em 2021, o The Lancet publica artigo questionando se a psicose puerperal é uma nova doença e um dos problemas deste questionamento é justamente porque nem a CID nem o DSM reconhecem a psicose como um transtorno (27)

6. RESULTADOS

O artigo 123 do Código Penal, de 1940, determina que o crime de infanticídio é “matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena – detenção, de dois a seis anos.”, nesse ponto é visível a dificuldade para definir assertivamente o que é logo após, assim como estabelecer os critérios mentais que tornaram esse crime uma ação não em que a mulher não tinha noção do fato realizado. A ciência ainda tem dificuldades para estabelecer a nosologia e a relação temporal entre o início das alterações mentais e o parto e quais as mudanças biológicas estão envolvidas, essas são as palavras de um dos maiores investigadores do tema, Patrick McGorry. A busca de relação genética entre o transtorno bipolar e a psicose puerperal tem sido aventada. Mas, outra questão a ser discutida, nem todas as psicoses puerperais estão ligadas ao infanticídio. Outro dilema enfrentado é a falta de hábito em aplicar os termos infanticídio e neonaticídio com suas designações individuais. O primeiro seria a morte de uma criança no primeiro ano de vida por sua mãe e o segundo seria a morte nas primeiras 24 horas de vida. A questão central para o médico perito é estabelecer se o neonaticídio decorre de uma questão social em que a criança é indesejada ou se decorre de um transtorno dissociativo, de despersonalização ou alucinatório em que a mãe não apresenta capacidade de entendimento e autodeterminação. A literatura médica raramente imputa o neonaticídio à doença mental. Cabe ao médico perito estabelecer com rigor técnico que no momento do ato criminoso a mulher estava sob condição de doença que aboliu completamente sua capacidade. Dessa forma, o médico perito deve realizar a perícia cumprindo o rito técnico e solicitar documentações médicas sobre as condições clínicas e mentais da periciada à época do puerpério. A busca de fatores de risco pode auxiliar o médico, mas é preciso saber que o perfil das mulheres varia conforme a tipologia do fato, isto é, neonaticídio e infanticídio. Diagnósticos diferenciais entre síndrome de identificação errônea delirante que pode estar acompanhada de hostilidade em relação à identificação errática delirante, a síndrome de Capgras em que a mulher pode acreditar que seu filho foi trocado e que a criança diante dela é uma impostora (28). Pela fugacidade dos sintomas psicóticos, a perícia psiquiátrica que determina a imputabilidade da mãe infanticida frequentemente é realizada já na ausência de qualquer manifestação clínica de psicose.

7. CONCLUSÃO

A perícia psiquiátrica da mulher que alega psicose puerperal é desafiadora pela fugacidade do quadro sintomático e a realização tardia. Se baseia em análise de documentação médica – desde o momento do parto e puerpério – sintomatologia descrita por familiares próximos, pela epidemiologia do quadro e sua associação com transtornos de humor.

Muito se tem à estudar e entender sobre o quadro clínico, e o entendimento da psicose puerperal e da psicose puerperal relacionada ao infanticídio como doença, como entidade a ser classificada na CID-10 e no DSM, pode aumentar os estudos, o grau de confiabilidade e consequentemente o melhor entendimento judiciário da doença.


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