Relato de Caso

GENÉTICA FORENSE NA INVESTIGAÇÃO DO ESTUPRO COLETIVO: CONCEITUAÇÃO E RELATO DE CASO

Como citar: Viana THH, Arnaud D, Correia FFC, Alencar VB, Filho VVPM, Santiago VR, Rocha SMVB. Genética forense na investigação do estupro coletivo: conceituação e relato de caso. Persp Med Legal Pericia Med. 2022; 7: e221225

https://dx.doi.org/10.47005/221225

Recebido em 13/11/2022
Aceito em 23/12/2022

Os autores informam não haver conflito de interesse.

FORENSIC GENETICS IN THE RESEARCH OF COLLECTIVE RAPE: CONCEPTUALIZATION AND CASE REPORT

Thaís Helena Holanda Viana (1)

http://lattes.cnpq.br/3578084334531024https://orcid.org/0000-0002-9217-0837

Davi Arnaud (2)

http://lattes.cnpq.br/6936150514231303  – https://orcid.org/0000-0001-8070-3563

Fernanda Freire Collyer Correia (2)

 http://lattes.cnpq.br/3723448791611381  – https://orcid.org/0000-0002-9588-3541

Vitória Bezerra de Alencar (2)

http://lattes.cnpq.br/4419299758656481https://orcid.org/0000-0002-3137-5919

Velko Veras Pereira de Matos Filho (2)

https://lattes.cnpq.br/4797176917289535https://orcid.org/0000-0002-4820-5852

Vivian Romero Santiago (2)

http://lattes.cnpq.br/6684284091519797https://orcid.org/0000-0003-1739-6681

Samyra Maria Vieira Brasil Rocha (3)

 http://lattes.cnpq.br/1445391093091737https://orcid.org/0000-0001-6813-1486

(1) Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Curso de Medicina, Centro de Ciências da Saúde (CCS), Fortaleza – CE, Brasil. (autor principal)

(2) Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Curso de Medicina, Centro de Ciências da Saúde (CCS), Fortaleza – CE, Brasil. (autor secundário)

(3) Farmacêutica perita do Núcleo de Pesquisa em DNA Forense da Coordenadorias de Análises Laboratoriais Forenses, Perícia Forense do Estado do Ceará (PEFOCE), Fortaleza – CE, Brasil (orientador) Email: thaishelenaholanda@gmail.com

RESUMO

Introdução: A violência sexual, no âmbito da Medicina Legal, é exempificada pelo estupro, principalmente, cuja epidemiologia é devastadora para vítimas do sexo feminino e da etnia negra. A punição desse crime, normalmente, é embasada pela a análise dos materiais contendo DNA, encontrados nos exames de corpo de delito. O objetivo desse estudo é relatar um caso de estupro coletivo, explicando a importância e a complexidade dos exames de perfil genético. Material e método: O presente estudo enquadra-se na modalidade de relato de caso, advindo de uma demanda para esclarecer a natureza dos suspeitos de um crime de estupro coletivo. Foi realizada também uma revisão narrativa da literatura sobre estupro coletivo em três bases de dados de livre acesso. Resultados: GSL, mulher, possível vítima de estupro coletivo, ocorrido no interior do Ceará, foi submetida a exame pericial, em que foram obtidas amostras de material biológico, dela e de CAA, o principal suspeito, que posteriormente foram analisadas pela Perícia Forense do Estado do Ceará. Discussão: No processo de análise das amostras,  podem estar presentes outros tipos celulares, além dos espermatozoides, a exemplo de células epiteliais. De tais amostras, pode-se extrair o DNA das células não espermatozoides. Essa estratégia oferece grande contribuição em situações em que pequena quantidade de material masculino é encontrada junto ao material celular da vítima. Conclusão: Houve compatibilidade da possibilidade de CAA ser o principal suspeito, porém, não o único. Assim, o resultado final corroborou com a hipótese principal de estupro coletivo.

Palavras-chave: estupro, perfil genético, genética forense.

ABSTRACT

Introduction: Sexual violence, within the scope of Legal Medicine, is exemplified by rape, mainly, whose epidemiology is devastating for female and black victims. The punishment of this crime is usually based on the analysis of materials containing DNA, found in forensic examinations. The aim of this study is to report a case of gang rape, explaining the importance and complexity of genetic profiling tests. Material and method: The present study is part of the case report modality, arising from a demand to clarify the nature of the suspects of a crime of gang rape. A narrative review of the literature on gang rape was also carried out in three open access databases. Results: GSL, a woman, a possible victim of gang rape, which occurred in the interior of Ceará, was submitted to an expert examination, in which samples of biological material were obtained, from her and from CAA, the main suspect, which were later analyzed by the Forensic Expert of the State of Ceara. Discussion: In the process of analyzing the samples, other cell types may be present, in addition to spermatozoa, such as epithelial cells. From such samples, DNA from non-sperm cells can be extracted. This strategy offers a great contribution in situations where a small amount of male material is found together with the victim’s cellular material. Conclusion: The possibility of CAA being the main suspect was compatible, but not the only one. Thus, the final result corroborated the main hypothesis of gang rape.

Keywords: rape, genetic profiling, forensic genetics.

1. INTRODUÇÃO

A violência sexual, coforme a Organização Mundial da Saúde, define-se como “qualquer ação na qual uma pessoa, valendo-se de sua posição de poder e fazendo uso de força física, coerção, intimidação ou influência psicológica, com uso ou não de armas ou drogas, obriga outra pessoa, de qualquer sexo e idade, a ter, presenciar ou participar de alguma maneira de interações sexuais, ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, com fins de lucro, vingança ou outra intenção”(1). Tal conduta hostil impacta diretamente nas condições psicológicas e/ou físicas da vítima, podendo levar a lesões, infecções sexualmente transmissíveis, disfunção sexual, ansiedade, depressão e até suicídio, se caracterizando como um importante problema de saúde pública.

No âmbito da Medicina Legal, a violência sexual é exemplificada pelo estupro, o qual se caracteriza como o ato de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal (cópula entre pênis e vagina) ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso (qualquer ato que destina a satisfação do instinto sexual, a exemplo do sexo anal, oral ou beijo lascivo), de acordo com o conceito presente no artigo 213 do Código Penal Brasileiro(2). Com relação à sua epidemiologia, apresenta altíssima prevalência de vítimas do sexo feminino (88,2%) e da etnia negra (52,2%), de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022(3). Já o agressor, é predominantemente do sexo masculino e tem relação emocional ou física próxima da vítima, o que acarreta em maiores danos socioemocionais para elas.

Tal prática ilegal se caracteriza como natureza hedionda, ou seja, um crime considerado de gravidade extrema, com tratamento diferenciado e com maior poder punitivo em relação a outras infrações penais, sendo considerado um crime inafiançável. No que tange ao estupro coletivo na esfera penal, este se caracteriza pelo estupro cometido por dois ou mais agentes (4). De acordo com o Art. 9º-A, a Lei 12.654/12, os condenados por crimes hediondos ou de natureza grave contra a pessoa são obrigados a fornecer, mediante extração de DNA, a identificação de perfil genético, sendo armazenada em banco de dados sigiloso, por meio de técnica adequada e indolor. Esse armazenamento auxiliará nos processos de investigação de crimes atuais e antigos, por meio da comparação de dados, como ocorre desde 1985(5).

Dessa forma, o objetivo desse estudo é relatar um caso de estupro coletivo, explicando a importância e a complexidade dos exames de perfil genético realizados no Núcleo de Pesquisa em DNA Forense do Estado do Ceará.

2. MATERIAL E MÉTODO

O presente estudo foi realizado no Núcleo de Pesquisa em DNA Forense do Estado do Ceará, com os profissionais da área e o auxílio de estudantes da graduação em Medicina da Universidade de Fortaleza. Tendo como base tal experiência, o estudo enquadra-se na modalidade de relato de caso, advindo de uma demanda do município de Mombaça, interior do Ceará, para esclarecer a natureza dos suspeitos de um crime de estupro coletivo.

Foram respeitados todos os princípios da ética em pesquisa com seres humanos, como o sigilo e a preservação da autonomia. Foi realizada também uma revisão narrativa da literatura sobre estupro coletivo, com a  aplicação de descritores em ciências da saúde em três bases de dados de livre acesso (PubMed; Capes Periódicos e Google Acadêmico) com aplicação dos descritores em  ciências  da  saúde de  “estupro”;  “perfil genético”;  e  “genética forense”

3. DESCRIÇÃO

GSL, mulher, vítima de suspeito estupro coletivo, ocorrido no distrito de Morada Nova, em Mombaça, no interior do Ceará, foi submetida a exame pericial, em que foram obtidas amostras de material biológico posteriormente analisadas pelo Núcleo de Pesquisa em DNA Forense da Coordenadorias de Análises Laboratoriais Forenses da Perícia Forense do Estado do Ceará, em Fortaleza-CE. O exame objetivou precisar o perfil genético das amostras, por meio de inspeção comparativa, a fim de estabelecer eventual relação de identidade genética.

As amostras destinadas a exame de Identificação de Perfis Genético em Caso de Crimes Sexuais foram subdivididas em Amostras Questionadas, concernentes a um swab vaginal e um swab retal coletados da vítima, e Amostras Referências, as quais consistiram em dois swabs orais coletados da vítima e dois swabs orais coletados de CAA, suspeito do delito.

4. TÉCNICA E SOLUÇÃO

Para obtenção do DNA genômico, as amostras referências foram extraídas empregando-se a resina Chelex® 100, enquanto as amostras questionadas foram submetidas a método de extração com o kit DNA IQ® da Promega Corporation e extração orgânica. Por sua vez, para a quantificação, as amostras de DNA foram submetidas ao método da Reação de Cadeia da Polimerase (PCR), utilizando-se o sistema Quantiplex Pro® da Qiagem, com o uso do equipamento de PCR em Tempo Real QuantStudio® 5, da Applied Biosystems.

Já a amplificação de DNA foi realizada por meio do método da Reação em Cadeia da Polimerase (PCR), com a utilização dos sistemas Power Plex Fusion 6C® e Power Plex Y23® da Promega Corporation, o que resultou em vinte e quatro loci gênicos e vinte e três haplotípicos. Por fim, com o intuito de revelar os perfis alélicos, os produtos obtidos das etapas anteriores, foram submetidos à corrida eletroforética em capilar no aparelho ABI 3500 Genetic Analyzer da Applied Biosystems.

Cabe destacar que, no processo de análise das amostras de material biológico já descritos, podem estar presentes outros tipos celulares, além dos espermatozoides, a exemplo de células epiteliais. De tais amostras, pode-se extrair o DNA das células não espermatozoides, mediante um mecanismo de extração distinto. Outrossim, utilizou-se marcadores moleculares específicos para o cromossomo Y, o qual está presente somente em indivíduos do sexo masculino. Essa estratégia oferece grande contribuição em situações em que pequena quantidade de material masculino é encontrada junto ao material celular da vítima.

5. DISCUSSÃO

Como resultado da análise da Fração Não Espermática (FNE) do swab vaginal e  do swab retal, obteve-se um perfil genético feminino, compatível em todos os loci analisados, com os da vítima, denotando GSL como produtora das amostras inspecionadas. Já no que concerne à amostra extraída da Fração Espermática (FE) do swab vaginal, identificou-se material genético proveniente de, ao menos, três indivíduos, sendo a vítima um deles, uma vez que seus alelos foram detectados na amostra em questão.

Dessa forma, procedeu-se à identificação de todos os possíveis genótipos dos demais contribuintes da mistura, e, a partir disso, realizou-se a comparação desses genótipos com o perfil do suspeito. Com base nessa análise, constatou-se a compatibilidade de CAA com um dos genótipos da amostra, com possibilidade vinte e cinco trilhões de vezes maior do referido suspeito ser um dos contribuinte da mistura em comparação com outro indivíduo indeterminado, segundo os cálculos estatísticos realizados empregando-se o LR MIX 2.1.5. Vale destacar, ainda, que os possíveis genótipos do terceiro contribuinte da amostra foram identificados, de modo que poderão ser comparados com as amostras referências de outros suspeitos caso necessário.

Por sua vez, na amostra oriunda do swab retal, não foi identificado perfil genético oriundo do sexo masculino. Em face disso, utilizou-se marcadores moleculares específicos para o cromossomo Y, conforme já referido, o qual demonstrou a presença de mistura de material genético com contribuição de um perfil haplotípico compatível com o do suspeito, CAA, a partir das amostras de swab vaginal e swab retal da vítima.

Por conseguinte, voltando-se para o caso em questão, a interpretação dos dados revelou que as Frações não Espermáticas (FNE) dos swabs vaginais e retais foram positivos para a vítima e, o estudo da Fração Espermática do swab vaginal detectou a presença de materiais genéticos provenientes de ao menos outros dois indivíduos.  Comparando-se esses achados com o material biológico do suspeito CAA, houve compatibilidade da possibilidade de ele ser o principal suspeito, porém, não o único. Assim, o resultado final corroborou com a hipótese principal de estupro coletivo, sendo CAA um dos criminosos.

6. CONCLUSÃO

A violência sexual, principalmente aquela praticada contra a mulher, é uma realidade dramática tanto no Brasil quanto no mundo, configurando uma grave violação dos direitos humanos e também do Código Penal Brasil. Tendo isso em vista, este estudo de caso alerta para a importância do exame de corpo de delito, principalmente com o uso das técnicas de análises comparativas de perfis genéticos, no intuito de evitar equívocos e aplicar as devidas punições aos agressores, protegendo, assim, a população de tais crimes hediondos.


Referências bibliográficas

  1. NAÇÕES UNIDAS BRASIL. OMS aborda consequências da violência sexual para saúde das mulheres. [Online]; 2021. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/80616-oms-aborda-consequencias-da-violencia-sexual-para-saude-das-mulheres
  2. BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
  3. BRASIL. Anuário Brasileiro de Segurança de 2022. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5
  4. BRASIL. Lei nº 12.654, de 28 de maio de 2012.
  5. Jeffreys A, Wilson V, Thein S. Individual-specific ‘fingerprints’ of human DNA. Nature 316, 76–79 (1985). https://doi.org/10.1038/316076a0