AUTOEROTIC ASPHYXIA – WHEN SHAME TAKES THE SCENE
Carlos Durão
https://orcid.org/0000-0003-4799-4842
(1) Hospital Vila Franca de Xira, Lisboa, Portugal.
(2) Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, Portugal.
Email: drcarlosdurao@hotmail.com
RESUMO
A morte autoerótica é definida como a morte acidental que ocorre durante a atividade sexual individual e solitária, em que algum tipo de instrumento ou aparato foi utilizado para aumentar a estimulação sexual da vítima, dando origem a uma morte não intencional. Apresentamos o relato da autópsia de um homem de 50 anos enviado para autópsia com história de suicídio por enforcamento. As características das vestimentas da vítima, das manchas de sêmen na roupa, com a presença de papel higiênico junto destas, sugerindo masturbação, e a ausência de um sulco bem marcado de enforcamento, pela proteção de uma espuma utilizada pela vítima, permitiu a reconstituição do provável mecanismo produzido pela vítima na sua asfixia, com o auxílio de uma corda e de um elástico preso ao tacão de um sapato alto, que ao se quebrar, terá produzido o acidente mortal. A descrição deste caso é importante para alertar para o conceito da morte autoerótica e evitar a interpretação errônea da etiologia médico legal, permitindo que casos acidentais sejam interpretados como suicídios, ou mesmo que mortes naturais sejam interpretadas como mortes autoeróticas sem que para isso se enquadrem no conceito de morte autoerótica, que por definição deve ser sempre uma morte acidental.
Palavras-chave: morte autoerótica, asfixia autoerótica, autópsia.
ABSTRACT
Autoerotic death is defined as accidental death that occurs during individual and solitary sexual activity in which some type of instrument or apparatus was used to increase the victim’s sexual stimulation leading to an unintentional death. We present the autopsy report of a 50-year-old man presented for autopsy with a history of suicide by hanging. The characteristics of the victim’s clothes, the semen stains on the clothes, with the presence of toilet paper next to them, suggesting masturbation and the absence of a hanging groove due to protective foam used by the victim, allowed the reconstitution of the probable mechanism produced by the victim in his asphyxia with the help of a rope and an elastic band attached to the heel of a high shoe, which, when broken, would have produced the fatal accident. The description of this case is important to alert to the concept of autoerotic death and avoid the misinterpretation of the legal medical etiology, allowing accidental cases to be interpreted as suicides, or even natural deaths to be interpreted as autoerotic deaths without fitting into the concept of autoerotic death, which must always be an accidental death.
Keywords: autoerotic death, autoerotic asphyxia, autopsy.
1. INTRODUÇÃO
A morte autoerótica é bem definida, segundo Sauvageau e Geberth, como a morte acidental que ocorre durante a atividade sexual individual e solitária em que algum tipo de instrumento ou aparato foi utilizado para aumentar a estimulação sexual da vítima na origem de uma morte não intencional (1). A hipoxifilia é um fenômeno recorrente na medicina forense, mas apesar de sua recorrência, são raros os relatos (2). Os casos de morte autoerótica ainda são de mais rara descrição na língua portuguesa. A sua identificação e sobretudo a sua documentação costuma ser dificultada pela intervenção de terceiros, que manipulam e descaracterizam a vítima ou desfazem o local da morte, em regra, imbuídos por natural e opróbrio sentimento. A vergonha da cena, que motiva a sua rápida descaracterização por quem encontra o cadáver e muito das vezes pela pouca experiência de quem atua na perícia destes casos, pode permitir uma interpretação errônea da etiologia médico legal, permitindo que casos acidentais sejam interpretados como suicídios, ou mesmo que mortes naturais sejam interpretadas como mortes autoeróticas sem que para isso se enquadrem no conceito de morte autoerótica, que por definição deve ser sempre acidental.
2. RELATO DE CASO
Apresentamos o relato de um homem de 50 anos encontrado, já cadáver, por familiares que relataram que teriam achado a vítima suspensa por uma corda que, entretanto, foi cortada.
O cadáver deu entrada no serviço de patologia forense com história de suicídio. A vítima vestia apenas uma camiseta, “collants” e cuecas que continham umas folhas de papel higiênico cuidadosamente dobradas, além de uma longa corda que permitia reconstruir uma laçada no pescoço, com a presença de um anteparo macio entre o pescoço e o laço. Após a reprodução deste laço observou-se a presença de um tênue sulco, muito pouco marcado, pela proteção deste anteparo de espuma. Os achados necroscópicos revelaram acentuada congestão visceral e presença de petéquias subpleurais, sinais inespecíficos, mas compatíveis com sinais gerais de asfixia. O exame toxicológico foi negativo para drogas de abuso, medicamentos e etanol. A histologia foi compatível com os achados macroscópicos de congestão, não revelando outros achados patológicos.
A forma como se encontrava cuidadosamente dobrado o papel higiênico, a presença dos collants, a posição peniana demonstrada pelos seus livores, compatíveis com eventual ereção recente, eram compatíveis com um gesto de masturbação.
Diante da suspeita de morte autoerótica levantada pela observação cadavérica, foram solicitadas as fotografias do local de morte. Nas fotos do local, foi possível observar a presença de um par de sapatos femininos, cujo tacão de um dos pés estava partido e ainda com a presença de laços que se comunicavam com o restante do aparato, que incluía um forte elástico, que a vítima teria usado de forma a permitir um gesto de hipóxifilia. Foi justamente a quebra deste tacão, deixado no local de morte, que provavelmente terá desencadeado o acidente que culminou no desfecho fatal (fig.1).

3. DISCUSSÃO
A morte autoerótica já tem sido reconhecida há mais de 200 anos, porém muitos casos acabam confundidos como suicídios, uma vez que, antes de 1991, não existia ainda um conceito bem definido sobre a morte autoerótica (3). Hélio Gomes em seu livro Medicina Legal de 1939 faz a seguinte legenda: “pederasta passivo na mesa do necrotério do Instituto Médico-Legal. Suicídio por enforcamento. No ânus do invertido-suicida foi encontrado um membro de madeira. Vejam-se os seios artificiais, a roupa íntima, os sapatos femininos e os balangadans no pescoço” (4). Atualmente, não somente a linguagem seria considerada desatualizada, imprópria ou mesmo ofensiva, mas a própria descrição do caso nos remete para uma possível morte por asfixia autoerótica. Não que suicídios bizarros não possam existir, mas os conceitos à época não seriam muito esclarecedores na definição desta possível morte autoerótica.
Aliás, ainda hoje persistem dúvidas e falsas interpretações que interferem não somente com a investigação do caso em questão, mas também com o contexto social, epidemiológico e nas diversas implicações jurídicas que estas podem ter. A indenização de um seguro de vida pode não ser paga, ao se declinar uma morte por suicídio, quando o suicídio é uma exclusão de garantia contratual, da mesma forma que uma morte violenta, de etiologia acidental, pode ter uma indenização diferente da de uma morte natural. Não se pode esquecer também que, em algumas crenças religiosas, o suicídio tem um contexto muito diferente de uma morte acidental ou natural.
É muito importante distinguir as causas de mortes naturais durante uma atividade autoerótica ou sexual das mortes autoeróticas propriamente ditas. Um enfarte do miocárdio por isquemia do miocárdio, um acidente vascular cerebral por hemorragia subaracnóidea são patologias relativamente comuns durante o esforço físico e, portanto, também frequentes durante a atividade sexual. É evidente que a coincidência da morte natural durante o ato sexual ou prática autoerótica, embora eventualmente relacionada, não deixa de ser uma morte natural (5).
Suicídios também não podem deixar de serem considerados, particularmente quando existe historial psiquiátrico, como depressão por exemplo. Alguns casos até podem ser confundidos com eventuais homicídios, razão que justifica sempre a investigação, da mesma forma que também homicídios podem acontecer durante práticas autoeróticas e não somente.
Sauvageau esclarece cinco mitos relacionados com as mortes autoeróticas, o primeiro deles é justamente o discutido acima. A morte autoerótica é por definição uma morte acidental, ou seja, se esta morte foi por uma causa natural ou um suicídio, não deve ser definida como morte autoerótica, uma vez que todas as mortes autoeróticas devem ser acidentais pelas definições atuais (6,7). O segundo mito é de que a morte autoerótica pode acontecer com um parceiro ou parceiros sexuais. Mais uma vez, esta não deve se enquadrar na típica definição, uma vez que, como a própria etimologia sugere, “auto” de “a si próprio” e, portanto, devem ser consideradas apenas aquelas que acidentalmente acontecem durante um ato solitário. O terceiro mito é o de que deve ser encontrado um mecanismo de escape que a vítima guarda para manter a sua segurança. Na verdade, este na maioria das vezes nem existe. O quarto mito é o de que as mortes autoeróticas estão sempre relacionadas com a asfixia. Embora a hipoxifilia seja a prática mais comum, existem outras mortes, ainda mais bizarras, como a eletrocussão ou a inserção de desproporcionais corpos estranhos no ânus (7,8). Por último, o quinto mito é o de que a masturbação está sempre presente ou a falsa interpretação do encontro de sêmen como sinal de masturbação. Não somente a masturbação pode não ser evidente na cena, como também a presença de sêmen junto ao pênis ou nas coxas pode ser tão somente um artefato post mortem, como as frequentemente encontradas nas asfixias por enforcamentos. No caso em que apresentamos, além da presença destas manchas em vários pontos, a forma como o papel higiênico foi encontrado apontava para o cuidado com que a vítima pretendia ter para sua higiene após uma ejaculação, dando mais evidência de que estas manchas de sêmen, neste caso, estariam relacionadas com a masturbação.
4. CONCLUSÃO
Este caso demonstra a importância da autópsia médico legal e da correlação dos achados necroscópicos com o local de morte na investigação da etiologia jurídica da morte, demonstrando que aquilo que se acreditava ser um suicídio era, na verdade, uma morte acidental, no contexto de uma asfixia autoerótica. A documentação e o relato destes casos são fundamentais para que os peritos possam estar familiarizados em reconhecer detalhes que costumam ser ocultados de forma que não se descubra a “vergonha da verdade”.
Referências bibliográficas
- Sauvageau A. A Revisitation of the most common methods of autoerotic activity leading to death based on the new standardized classification of asphyxia. J Forensic Sci. 2011;56(1):261.
- Byard RW, Bramwell NH. Autoerotic death – a definition. Am J Forensic Med Pathol. 1991;12(1):74–6.
- Byard RW. Autoerotic death: a rare but recurrent entity. Forensic Sci Med Pathol. 2012 Dec;8(4):349-50. doi: 10.1007/s12024-012-9319-0. Epub 2012 Feb 17. PMID: 22350823.
- H. Medicina Legal, 2ed. Rio de Janeiro; 1949. p.179.
- Hazelwood RR, Burgess AW, Groth AN. Death during dangerous autoerotic practice. Soc Sci Med. 1981;15E:129–33.
- Sauvageau, A. Current Reports on Autoerotic Deaths—Five Persistent Myths. Curr Psychiatry Rep 16, 430 (2014). https://doi.org/10.1007/s11920-013-0430-z
- Lohner L, Sperhake JP, Püschel K, Schröder AS. Autoerotic Deaths in Hamburg, Germany: Autoerotic accident or death from internal cause in an autoerotic setting? A retrospective study from 2004-2018. Forensic Sci Int. 2020 Aug;313:110340. doi: 10.1016/j.forsciint.2020.110340. Epub 2020 May 16. PMID: 32497993.
- Hejna P, Zátopková L, Janík M. Rectal explosion: a strange case of autoerotic death. Int J Legal Med. 2021 Jan;135(1):307-312. doi: 10.1007/s00414-020-02344-7. Epub 2020 Jun 26. PMID: 32592072