Artigo Original

RELAÇÃO ENTRE A PANDEMIA DA COVID-19 E OS RESULTADOS DOS EXAMES DE LESÃO CORPORAL E CAUTELARES. O ANTES E O DURANTE

Como citar: Santos FS, Duarte ML. Relação entre a pandemia da COVID-19 e os resultados dos exames de lesão corporal e cautelares. O antes e o durante. Persp Med Legal Pericia Med. 2023; 8: e230305

https://dx.doi.org/10.47005/230305

Recebido em 28/10/2022
Aceito em 02/03/2023

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas – UNCISAL sob o parecer nº 5.335.053/CAAE: 56868622.0.0000.5011. A coleta dos dados também teve a anuência da Chefia Especial do IML Estácio de Lima – Maceió/AL. Os autores informam não haver conflitos de interesse.

RELATIONSHIP BETWEEN THE COVID-19 PANDEMIC AND THE RESULTS OF PERSONAL INJURY AND PRECAUTIONARY EXAMS. BEFORE AND DURING

Fernanda Souza dos Santos (1)

http://lattes.cnpq.br/6039501858607679https://orcid.org/0000-0002-1086-5054

Maria Luisa Duarte (2)

http://lattes.cnpq.br/1797072187529809https://orcid.org/0000-0001-9030-2720

(1) Graduanda do Bacharelado em Medicina – FAMED – Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas – UNCISAL – Maceió/AL – Brasil (autora principal)

E-mail: nandasds93@gmail.com

(2) Mestrado e Doutorado em Patologia (Anatomia Patológica) pela Universidade

Federal Fluminense/RJ, Especialista em Medicina Legal e Perícias Médicas pela

ABMLPM/AMB, Professora Titular da FAMED das Disciplinas de Medicina Legal e Ética

Médica – Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas-UNCISAL, Maceió –

                       AL, Brasil. (orientadora)

RESUMO

Introdução: A pandemia da covid-19 revelou a vulnerabilidade do mundo em lidar não só com uma doença desconhecida, mas também com dificuldades e consequências socioeconômicas e violentas, bastante danosas para a sociedade. Objetivos: Analisar os laudos dos exames periciais de lesões corporais e cautelares realizados no IML Estácio de Lima – Maceió/AL, no período de 2018 a 2021, considerando as alterações que poderiam ser constatadas no antes e durante a pandemia da Covid-19. Material e métodos: Estudo documental, epidemiológico, descritivo, e analítico através de amostragem.As variáveis consideradas foram: gênero, faixa etária, procedência, verificação da ocorrência da lesão corporal, o instrumento e meio utilizado na agressão, além das respostas aos quesitos oficiais relacionados a lesão corporal. Resultados: De um total de 2208 laudos, 743 foram perícias consequentes a lesão corporal e 1465 perícias cautelares. O percentual maior dos laudos analisados foi de perícias cautelares, constituindo 66,34% da totalidade, com prevalência do gênero masculino, representando 92,01%. Já com relação as perícias de lesão corporal, houve maior prevalência do gênero feminino na faixa etária de 21 a 30 anos. Discussão: Observou-se que não houve alteração relevante das perícias no período anterior e durante a pandemia, pois já era preponderante as perícias cautelares, mantendo-se o predomínio de adultos do gênero masculino, jovens. Já em relação as perícias de lesão corporal, o gênero feminino foi mais prevalente, representando 63,52% dos laudos analisados durante o estudo. As lesões mais evidenciadas foram aquelas produzidas por instrumentos contundentes sem associações, em um total de 1048, predominando as lesões corporais leves. Conclusão: Diante dos achados, conclui-se que não ocorreu alteração quantitativa ou qualitativa significante relacionada as perícias analisadas, no antes e durante a pandemia da Covid-19.

Palavras-chave: covid-19, lesões corporais, violência, perícia médico-legal.

ABSTRACT

Introduction: The covid-19 pandemic revealed the world’s vulnerability in dealing not only with an unknown disease, but also with socio-economic and violent difficulties and consequences, quite harmful to society. Objectives: To analyze the reports of the forensic examinations of personal injuries and precautionary measures carried out at IML Estácio de Lima – Maceió/AL, from 2018 to 2021, considering the changes that could be observed before and during the Covid-19 pandemic. Material and methods: Documentary, epidemiological, descriptive, and analytical study through sampling. The variables considered were: gender, age group, origin, verification of the occurrence of bodily harm, the instrument and means used in the aggression, in addition to the answers to the official questions related to bodily harm. Results: Of a total of 2208 reports, 743 were investigations resulting from bodily injury and 1465 were precautionary investigations. The highest percentage of the analyzed reports was of precautionary expertise, constituting 66.34% of the total, with a prevalence of males, representing 92.01%. Regarding the body injury expertise, there was a higher prevalence of females in the age group from 21 to 30 years. Discussion: It was observed that there was no relevant change in the expertise in the previous period and during the pandemic, as precautionary expertise was already predominant, maintaining the predominance of male, young adults. Regarding the body injury expertise, the female gender was more prevalent, representing 63.52% of the reports analyzed during the study. The most evident injuries were those produced by blunt instruments without associations, in a total of 1048, with mild bodily injuries predominating. Conclusion: In view of the findings the authors conclude that there was no significant quantitative or qualitative change related to the analyzed expertise, before and during the Covid-19 pandemic.

Keywords: covid-19, personal injury, violence, medico-legal expertise.

1. INTRODUÇÃO

A pandemia da covid-19 revelou a vulnerabilidade do mundo em lidar não só com uma doença desconhecida, mas também com dificuldades e consequências danosas para a sociedade (1). Com o acelerado avanço da transmissão da doença, medidas de contenção social foram propostas com o intuito de frear o número de pessoas contaminadas, e, por conseguinte os altos índices de mortalidade em todo o mundo. Dentre as medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para o combate à pandemia, destaca-se o isolamento social, estratégia essencial para inibir o aumento exponencial dos casos da doença e a sobrecarga no serviço de saúde. (2)

Entretanto, o isolamento social, trouxe à tona, de forma potencializada, repercussões sociais negativas. A violência no meio familiar cresceu como consequência de um isolamento social imposto, do medo de contágio, estresse, e uma mudança no estilo de vida. Segundo dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, foram 37,5 mil registros de denúncias no número 180 (o serviço registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgãos competentes) entre Janeiro e Abril no ano de 2020, contra 32,9 mil no mesmo período do ano de 2019 no Brasil. Números que refletem o número de denúncias via telefone, mas não a quantidade de denúncias realizadas através de boletim de ocorrência e encaminhadas aos Institutos médicos legais para exames periciais (3).

Cabe salientar que a violência pode ser classificada, segundo a OMS, quanto à natureza física, sexual, psicológica ou abandono. Quanto à natureza física entende-se qualquer ação que ofenda a integridade ou a saúde corporal (4). Dessa forma, os exames de perícia médico-legais servem como guia para caracterizar as lesões de forma quantitativa e qualitativa quando se refere aos danos provenientes da violência. Quanto ao grupo mais vulnerável como vítima de lesões corporais na pandemia encontram-se crianças, mulheres e idosos, que já são os mais vulneráveis mesmo antes do fenômeno de 2020 e que diante do isolamento encontram-se com maior risco de sofrerem qualquer tipo de violência (5).

A partir desse aumento dos casos de violência doméstica no país no presente período, ressalta-se a importância das perícias médico-legais na análise das lesões corporais tanto para elucidar e caracterizá-las como leves ou graves, quanto para identificar as consequências dessas lesões para as vítimas. Este estudo visou analisar os laudos de lesão corporal e exames cautelares realizados no Instituto Médico Legal Estácio de Lima no período de 2018 a 2021, a procura da relação entre a pandemia da covid-19, o incremento da violência, e as modalidades dos casos de lesões corporais.

2. MATERIAL E MÉTODO

O estudo em questão, foi de natureza documental, epidemiológico, descritivo, e analítico através de amostragem.A somados laudos das perícias de lesão corporal e cautelares a serem analisados no período dos quatro anos, de 1º de janeiro de 2018 a 31 de dezembro de 2021, resultou em um total de 31.078 laudos.

O tempo que foi programado para o início e a conclusão da pesquisa não seria suficiente para analisar um número tão elevado. Então, como consequência, foi necessário utilizar a amostragem, garantindo uma parte representativa do levantamento pesquisado, de modo a ter validade, e projetado para representar a soma total encontrada.

O cálculo da amostragem foi realizado através do programa aquare.la acessado em 03/04/2022 no site https://www.aquare.la. Utilizando-se o intervalo de confiança de 95% para cada ponto estimado, calculou-se 46 laudos mensais por quatro anos (48 meses), resultando em 2.208 laudos.

A coleta dos dados foi obtida através dos laudos das perícias de lesão corporal e cautelares, do arquivo do Instituto Médico Legal (IML) Estácio de Lima, em Maceió/AL, realizados no período já informado. Foi elaborado um formulário protocolo, onde foram inseridas as informações da coleta.

As variáveis estudadas foram: gênero, faixa etária, procedência, instrumento ou meio utilizado na agressão, tipo de lesão encontrada, gravidade da lesão e se houve sequela, – verificada nas respostas aos quesitos oficiais dos laudos. Os dados coletados dos laudos no formulário padronizado foram armazenados em uma planilha eletrônica de dados (Microsoft Excel® 2010) e posteriormente confrontados com a literatura atual.

Os autores informam a inexistência de conflitos de interesse.

3. RESULTADOS

Foram analisados através da amostragem, laudos das perícias dos exames de lesão corporal e cautelares no IML Estácio de Lima, durante 04 anos (2018 a 2021), obtendo o resultado de 1465 perícias cautelares, e 743 lesões corporais. Totalizando 2208 exames analisados. Em relação ao gênero 1348 exames cautelares foram realizados no masculino, o que representa 92,01%.  E somente 117 realizados no gênero feminino. Já nos exames de lesão corporal foram verificados 472 (63,52%) laudos do gênero feminino e 271 masculinos. (Gráfico 1)

Graf. 1 – Total dos exames analisados, nas perícias de lesão corporal e cautelares, além do quantitativo do gênero em cada modalidade de perícia. Fonte: Arquivo do IML Estácio de Lima – Maceió/AL. Laudos dos exames de lesões corporais e cautelares no período de 01 de janeiro de 2018 a 31 de dezembro de 2021.

Em relação às perícias realizadas em custodiados, constatou-se que dos 1465 exames, a maioria foi realizada no gênero masculino, na faixa etária de 21 a 30 anos, considerados adultos jovens. Dentre os exames de lesão corporal, das 743 perícias, a faixa etária mais prevalente constatada foi a de 21-30 anos, similar ao resultado das perícias cautelares, predominando os adultos jovens do gênero feminino. (Tabela 1).

Faixa EtáriaMasculino CautelarFeminino CautelarMasculino Lesão CorporalFeminino Lesão Corporal
0-10 anos1913
11-20 anos282305186
21-30 anos6284163136
31-40 anos2552761130
41-50 anos117114770
51-60 anos49042330
61-70 anos12040403
71-80 anos050302
81-90 anos01
91 +01
TOTAL1348117271472
Tab. 1 – Resultados das perícias cautelares e lesão corporal, com faixa etária e gênero.
Fonte: Arquivo do IML Estácio de Lima – Maceió/AL. Laudos dos exames de lesões corporais e cautelares no período de 01 de janeiro de 2018 a 31 de dezembro de 2021.

Quanto à comparação entre os 04 anos (2018-2021), das perícias realizadas em custodiados e nas de lesão corporal, houve pouca variabilidade quantitativa no decorrer do período antes e após o período da pandemia tanto no gênero masculino quanto no feminino.  

Ao analisar os 2208 laudos sendo 46 laudos ao mês durante os 04 anos (2018-2021) não houve variabilidade irrestrita entre os anos devido a metodologia aplicada segundo o intervalo de confiança de 95% e margem de erro 2%. A variabilidade observada está relacionada ao tipo de exame, sendo o cautelar mais prevalente durante todos os anos 334 e 386 em 2018 e 2019 para 358 e 387 em 2020 e 2021, respectivamente.

 O ano que houve maior prevalência de exames em custodiados foi o de 2021 com 387. Já nas perícias de lesão, o ano de 2018 apresentou maior quantitativo com 220 exames (Gráfico 2).

 
Graf. 2 – Número de casos por gênero nos resultados das perícias cautelares e de lesão corporal nos 04 anos.
Fonte: Arquivo do IML Estácio de Lima – Maceió/AL. Laudos dos exames de lesões corporais e cautelares no período de 01 de janeiro de 2018 a 31 de dezembro de 2021.

A presença de dano corporal foi apurada em 337 (23%) laudos analisados no período do estudo das perícias cautelares. Sendo 1128 exames sem a presença de lesões. A faixa etária mais prevalente encontrada foi de 21-30 anos no gênero masculino quantificando 211 perícias.

Dos 743 exames periciais realizados de lesões corporais, 711 (95,69%) constataram a presença de dano corporal, dentre eles, 25 decorrentes de acidentes. No ano de 2018 foi apurado 14 exames derivados de acidentes; em 2019 – 04 laudos; 2020 foram evidenciados 03 e em 2021, 04 exames. Dentre essas perícias houve prevalência do gênero feminino nos quatro anos da pesquisa.

Foi contabilizado o quantitativo de crianças de 0-10 anos e idosos a partir de 61 anos no decorrer dos 04 anos das perícias de lesões corporais. O ano de 2018 contabilizou 13 crianças da faixa 0-1anos; 2019 – 5 crianças; em 2020 – 7 crianças, e em 2021 também 7 menores. E na somatória dos anos evidenciou-se a presença de 32 prováveis casos de violência doméstica. Já os idosos, em 2018 foram 3 exames; 2019 – 4 laudos; em 2020 não houve perícia em idosos constatada na amostragem, e em 2021 foram periciados 7. É imprescindível salientar a presença de danos predominantes no gênero feminino com 450 exames periciais. Já no gênero masculino foi de 261 exames. (Tabela 2).

Faixa EtáriaMasculino CautelarFeminino CautelarMasculino Lesão CorporalFeminino Lesão Corporal
0-10 anos1715
11-20 anos80056382
21-30 anos2110659106
31-40 anos080147102
41-50 anos16013183
51-60 anos083854
61-70 anos010305
71-80 anos 021
81-90 anos11
91 + 1
TOTAL32413261450


Tab. 2 – Perícias cautelares e de lesão corporal, com faixa etária segundo gênero e a presença de dano corporal.

Fonte: Arquivo do IML Estácio de Lima – Maceió/AL. Laudos dos exames de lesões corporais e cautelares no período de 01 de janeiro de 2018 a 31 de dezembro de 2021.

Quanto ao gênero e a presença de dano ao exame cautelar em cada ano (2018 a 2021), houve prevalência masculina, sendo o ano de 2018 e 2021 respectivamente, apresentando 86 casos de lesão corporal comprovada em ambos os gêneros.

No decorrer dos 04 anos houve maior quantidade de exames apresentando danos no ano de 2018, com 209 laudos; 2019 – 151 exames com presença de danos; em 2020 observaram-se 188, e já em 2021 – 163 foram contabilizados. Em 32 perícias não foram evidenciadas no laudo, a presença de lesões, no decorrer dos 04 anos referentes à pesquisa. Desses que não houve danos, em 2018, foram apurados 11 (2 do gênero masculino e 9 do feminino); 2019 constatados 09 (4 do gênero masculino e 5 do feminino); 2020 obtiveram 08 exames (3 do gênero masculino  e 5 do feminino) e em 2021 – 4 perícias sendo 1 masculina e 3 femininas (Gráfico 3).

Graf. 3 – Resultado quantitativo das perícias cautelares e a presença de dano corporal, associado ao gênero.
Fonte: Arquivo do IML Estácio de Lima – Maceió/AL. Laudos dos exames de lesões corporais e cautelares no período de 01 de janeiro de 2018 a 31 de dezembro de 2021.

Em relação ao tipo de energia que causou as lesões, a mecânica foi a mais predominante nos custodiados com 329 (97,6%) casos. As lesões causadas por mais de um tipo de instrumento consideradas mistas, representaram 06 casos e a energia física (eletroplessão e queimadura), 02 casos. A lesão contusa esteve presente na maioria das perícias em um total de 316 (93,7%). Além disso, observou-se a existência de lesões mistas, dentre elas a associação da contusa e cortante em 02 casos (0,59%); 01 caso de queimadura (0,29%); e associada a eletroplessão em 03 laudos (0,89%). Lesão perfuro contundente em 07 exames periciais (2,07%); cortante em 04 casos (1,18%); e perfuro cortante com 02 casos (0,59%). Não foram constatados nos laudos periciais, respostas afirmativas relacionadas a presença de ofensa à integridade corporal ou à saúde pertinentes às energias química, físico-química, biodinâmica ou bioquímica.

A energia mecânica também foi prevalente nas perícias de lesão corporal apresentada em 710 examinados (99,8%), e somente 01 caso de energia física (queimadura) foi presenciado. Também não foram encontrados laudos que mencionassem a presença de ofensa à integridade corporal ou à saúde relacionadas às energias química, físico-química, biodinâmica ou bioquímica. A lesão contusa predominou com 642 exames (90,29%). Esta também foi presenciada em associações tais como: contusa e perfurante com 01 exame (0,14%); contusa e corto contundente 02 laudos (0,28%); contusa e queimadura em 02 exames (0,28%); contusa e cortante 07 exames (0,98%); contusa e perfuro cortante com 01 exame (0,14%). A modalidade corto contundente foi representada por 20 casos (2,81%); corto contundente e cortante 01 caso (0,14%); cortante 11 casos (1,54%); perfuro contundente 12 casos (1,68%); e perfuro cortante 11 casos (1,54%) (Gráfico 4).




Graf. 4 – Resultado quantitativo dos tipos de lesões encontradas nas perícias cautelares e de lesão corporal.
Fonte: Arquivo do IML Estácio de Lima – Maceió/AL. Laudos dos exames de lesões corporais e cautelares no período de 01 de janeiro de 2018 a 31 de dezembro de 2021.

Das 1048 perícias de lesão corporal e cautelares que apresentaram dano corporal, 316 nos casos de perícia de lesão corporal e 642 nas cautelares, totalizando 958 laudos, decorreram de lesões contusas.  

Nas respostas aos quesitos oficiais da perícia relacionada aos custodiados, foram constatados 1.042 laudos com resposta negativa ao 1° quesito, ou seja: sem presença de lesão corporal durante o exame médico-legal e a resposta “prejudicado” aos demais quesitos oficiais relacionados a existência de dano corporal. Já a resposta negativa a todos os quesitos, esteve presente em 86 exames.

Em relação aos laudos com afirmação de dano corporal nos custodiados, em um total de 337, em 03 foram constatados a presença de resposta qualificadora representada pela presença da lesão em região ou face posterior do corpo. Já em 173 exames não foi possível afirmar ou negar a presença de qualificação, sendo descrito com “sem elementos para afirmar ou negar”. Em 09 laudos ocorreu lesão grave, representada pela solicitação do exame complementar, afastando o examinado das ocupações habituais por mais de 30 dias. No total de 152 laudos com resposta positiva a presença de dano corporal, e anotação do instrumento ou meio causador identificado ao exame, houve resposta negativa aos quesitos relacionados a qualificação e a gravidade das lesões.

Já os resultados das perícias efetuadas nos não custodiados em que houve presença de dano, concluiu-se que em 420 examinados as respostas aos quesitos foram: afirmativa a presença de ofensa a integridade corporal ou a saúde, a identificação do instrumento ou meio causador, e negativa aos quesitos relacionados a qualificação e gravidade das lesões. Em relação à resposta qualificadora da lesão, em 10 laudos indicaram presença de meio insidioso, em 02 exames a presença de tortura, e a utilização de meio cruel em 02 perícias realizados. Ainda com relação a resposta qualificadora da lesão, obteve-se o número de 151 perícias onde a resposta foi “sem elementos para afirmar ou negar”. Em outros 97 laudos anotaram “prejudicado” a tal resposta. A necessidade de exame complementar para elucidar a gravidade dos eventos foi relatada em 12 laudos contendo “resposta após exame complementar depois de 30 dias”. Lesões graves representadas pelas seguintes respostas afirmativas: a incapacidade para ocupações habituais por mais de 30 dias em 10 perícias; 03 com afirmação a debilidade permanente de função; além de 02 exames com perigo de vida evidenciado. Relatou-se 02 com deformidade permanente caracterizando lesão gravíssima; nos 32 exames em que a resposta foi negativa à presença de dano corporal, a resposta aos demais quesitos foi “prejudicada”.

No que diz respeito à procedência dos periciados nos laudos de lesão corporal, dos 743 exames, 726 constataram a presença de alagoanos e 17 de outros estados. Residentes em Maceió foram 544, e em outros municípios 199. Já em relação as perícias realizadas em custodiados, em 1254 exames evidenciaram a presença de alagoanos e em 211 não foi informada a procedência.

4. DISCUSSÃO

A violência é definida como grupo de ações que implicam em prejuízo físico e moral das vítimas. É um fenômeno universal e multifacetado caracterizado por uma expressão de dominação e opressão (6). Sempre o elemento que sofre a agressão encontra-se em posição de vulnerabilidade que pode ser de ordem física, emocional ou ambas. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a violência doméstica pode perpetuar de várias formas: física, sexual, psicológica, econômica e persecutória.

O crime de lesão corporal é previsto no Capítulo II do Título I do Código Penal promulgado em 1940, e está descrito no caput do artigo 129 como “ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem”. Dessa forma, o exame de corpo de delito objetiva resguardar a plenitude física e moral tanto nos exames rotineiros de lesão corporal quanto os realizados em indivíduos sob custódia do Estado (7).

Uma das principais finalidades do exame cautelar delegado ao perito legista é verificar a presença ou não de lesões que indicam a prática de violência ou tortura (7).Segundo o art. 1° na Lei 9.455 de 7 de abril de 1997, constitui crime de tortura quem submete pessoa presa a sofrimento físico ou mental (8).

O advento do isolamento forçado durante a pandemia potencializou situações de conflito e episódios de violência física como: o aumento do contato entre vítima e violentador em tempo e espaço, o incremento do estresse atrelado a fatores sociais, econômicos e psicológicos além da redução do contato das vítimas com o mundo externo, fora do isolamento (9).

Dessa maneira, crianças, mulheres e idosos são o grupo com maior exposição à violência doméstica antes e após a pandemia da covid-19. O estudo em questão presenciou a maioria dos exames de lesão corporal realizadas em mulheres jovens (21-30 anos) em todos os 04 anos (2018 a 2021), o que coaduna com o fato de que o gênero feminino, por sua vulnerabilidade e contexto patriarcal presente na sociedade, é o que está mais propício a sofrer violência na sociedade (10).

O contexto em que se encontra a agressão sobre o gênero feminino perpetua-se há tempos. A visão androcêntrica é legitimada por um poder simbólico que dispensa recursos e discursos, a dominação masculina ainda se fundamenta em uma sociedade patriarcal, assegurando a eles o direito correcional sobre esposa, filhos e idosos. (11). Em 2006, a lei nº 11.340/2006, denominada Maria da Penha, categorizou a violência doméstica como crime, com o propósito de erradicar a violência enraizada na sociedade brasileira buscando punir aquele que, por meio da agressão, tenta se manter dominante sobre o gênero feminino (12).

Outro ponto, relevante é que no decorrer do episódio pandêmico não houve variabilidade significante no quantitativo de perícias com a presença de danos corporais. Tais dados podem representar apenas uma parte da realidade, já que uma parcela considerável dos crimes de violência doméstica não chega a ser denunciada por medo do agressor (9). Também, o evento do isolamento social promovido pela pandemia, promoveu um encarceramento forçado com os agressores, o que se configurou como potencializador de casos subnotificados.

Segundo a metodologia por amostragem aplicada no estudo, não houve variabilidade irrestrita entre os 04 anos (2018-2021) conforme o intervalo de confiança de 95% e margem de erro 2%.  Na análise dos 2208 laudos analisados, a variabilidade observada está relacionada ao tipo de exame, sendo o cautelar mais prevalente durante todos os anos respectivamente 334 em 2018; 386 em 2019 (períodos pré-pandêmicos), para 358 em 2020 e 387 em 2021 períodos pandêmicos.

Os custodiados apresentam direitos humanos gerais universais, garantias que, em sintonia com os direitos fundamentais são assinalados em diversos documentos internacionais. Deve ser resguardada a proteção contra ameaças de violência, tortura, maus-tratos, exposição a riscos à sua saúde física ou mental e integridade pessoal (13). Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), todos os reclusos devem ser tratados com o respeito inerente ao valor e dignidade do ser humano. Não devem ser submetidos à tortura ou outras penas ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes e deverão ser protegidos de tais atos, não sendo estes justificáveis em qualquer circunstância (14).

A perícia de corpo de delito realizada em custodiados (ad cautelam) deve ser realizada da melhor forma, com competência, independência e imparcialidade. O exame, segundo o artigo 161 do código de processo penal poderá ser feito em qualquer dia e a qualquer hora. Entretanto, na ausência de vestígios danosos, não há a possibilidade de afirmar a ocorrência do delito ou infração. Torna-se também indispensável estabelecer o nexo causal e temporal entre as lesões encontradas e o suposto delito (15).

Dos 337 exames em custodiados em que foi constatado a presença de dano corporal, em nenhum foi positiva a resposta qualificadora a tortura. Entretanto, em 03 laudos foram constatados a presença de resposta qualificadora ao meio insidioso, representada por agressão na face ou região posterior do corpo. Já em 173 exames não foi possível uma conclusão relacionada a presença de qualificação, estando tais laudos descritos com a resposta “sem elementos para afirmar ou negar”. Tal resposta ocorre quando o perito não consegue vestígios relacionado à infração qualificadora (15). Existe ainda a problemática que envolve o nexo de causalidade e tempo nas perícias, e incertezas quanto a veracidade dos fatos questionadas e informadas pelo custodiado.

Também dentre as perícias de lesão corporal que apresentaram dano, a maioria das lesões evidenciadas durante o período pesquisado foram lesões leves e que não obtiveram resposta positiva a qualificação.

Quanto à faixa etária das pessoas privadas de liberdade no país, em 2014 segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, 30,52% tinham idade entre 18 e 24 anos e 23,39% entre 25 e 29 anos de idade (16).

Em coadunação com os desdobramentos a nível Nacional, a análise dos laudos durante os 4 anos da pesquisa, demonstrou uma prevalência do gênero masculino representado por adultos jovens de 21 a 30 anos.

O tipo de instrumento utilizado na agressão está diretamente relacionado ao diagnóstico do tipo de lesão, ao exame médico legal minucioso e independente do histórico que foi relatado pelo periciado (17). As energias de ordem mecânica envolvem vários tipos de danos que envolvem desde armas propriamente ditas como punhais e revólveres, armas naturais como punhos, pés e dentes até explosões, máquinas, veículos e quedas (18). Por envolver diversos tipos de ações (pressão, percussão, tração, torção, compressão, descompressão, explosão, deslizamento e contrachoque) é o tipo mais prevalente de energia encontrado em agressões, e na nossa pesquisa tal achado ficou demonstrado, predominando a energia mecânica representada pelas lesões causadas pelos instrumentos contundentes. Dentre os agentes mecânicos, os instrumentos contundentes são os que mais causam danos e também são os que mais apresentam variações de gravidade no corpo, que vão desde escoriações a ruptura de vísceras internas.

5. CONCLUSÃO

Durante o trabalho não foram verificadas elevações e declínios significativos em relação ao quantitativo de laudos analisados. Em relação ao exame cautelar, é evidente o elevado número de pessoas detidas que são submetidas à perícia durante todos os quatro anos do estudo. Permaneceram os mesmos parâmetros evidentes antes da pandemia: predominância de laudos realizados em custodiados do gênero masculino e prevalência de exames realizados no feminino em se tratando de exames de lesão corporal. Devem-se considerar casos de subnotificação, pois o isolamento social promovido durante o período é forte influenciador para redução dos casos de denúncias.

Apesar de os resultados não elucidarem um aumento dos casos de violência doméstica, e sim a prevalência dos altos índices de agressões ao gênero feminino é evidente a necessidade da criação de mais mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar além do incremento de centros de educação para agressores. Com o objetivo de coibir reincidências de agressões, progressivamente elevar o número de denúncias registradas e viabilizar condições de ruptura com o ciclo de agressões tão danosas a sociedade.

Atentando para os resultados obtidos, é imprescindível o papel da perícia médico legal na verificação das lesões corporais e, por conseguinte na preservação da integridade corporal de custodiados e em exames de lesão corporal rotineiros.

No nosso estudo, salientamos que se tratou de uma pesquisa por amostragem, portanto nossos resultados ficaram limitados a tal metodologia. Concebemos que caso a pesquisa fosse efetuada com o levantamento de todos os laudos periciais dos anos propostos, possivelmente os gráficos poderiam elucidar uma variação nos meses, não fugindo aos resultados encontrados.

Outras pesquisas relacionadas ao objeto que trabalhamos e a outros contextos irão elucidar melhor os achados constatados.


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