Os autores informam que não há conflito de interesse.
Ana Laura de Carvalho Satti
Maria Carolina Sartório
Matheus Santos Guimarães de Moura
Ivan Dieb Miziara
Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, Departamento de Medicina Legal, Bioética, Medicina do trabalho e Medicina física e reabilitação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP)
INTRODUÇÃO: A psicose puerperal é definida como um tipo de transtorno psicótico breve ocorrendo nas três semanas após o parto, mas, predominantemente nas primeiras 48-72 horas, embora seja rara (0,1 a 0,2%) é urgência médica e deve ser tratada o mais breve possível. A presença de sintomas prodrômicos (irritabilidade, mudança súbita de comportamento entre outros) que evoluem rapidamente para quadro psicótico (delírios e alucinações). Nesse contexto, o infanticídio é o ápice para a interpretação forense. Em 2021, o The Lancet publica artigo questionando se a psicose puerperal é uma nova doença. Nem a CID nem o DSM trazem esse diagnóstico como uma doença distinta.
OBJETIVOS: Expor os principais conflitos enfrentados pelos médicos peritos diante do suposto crime de infanticídio na óptica do Código Penal.
MÉTODOS: Estudo realizado no Departamento de Medicina Legal, Bioética, Medicina do Trabalho e Medicina Física e de Reabilitação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Foi realizada revisão narrativa de literatura com enfoque a sinais e sintomas sugestivos ou conclusivos de psicose puerperal diante de crime de infanticídio. Foram acessados artigos nas bases de dados Lilacs e PubMed, aplicando os descritores “transtorno psicótico”, “psicose pós parto”, “perícia”; livros textos também foram incluídos. Não foi estabelecido limite de tempo na busca, mas foram incluídos artigos obtidos na íntegra.
RESULTADOS: O artigo 123 do Código Penal, de 1940, determina que o crime de infanticídio é “matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena – detenção, de dois a seis anos.”, nesse ponto é visível a dificuldade para definir assertivamente o que é logo após, assim como estabelecer os critérios mentais que tornaram esse crime uma ação não em que a mulher não tinha noção do fato realizado. A ciência ainda tem dificuldades para estabelecer a nosologia e a relação temporal entre o início das alterações mentais e o parto e quais as mudanças biológicas estão envolvidas, essas são as palavras de um dos maiores investigadores do tema, Patrick McGorry.A busca de relação genética entre o transtorno bipolar e a psicose puerperal tem sido aventada. Mas, outra questão a ser discutida, nem todas as psicoses puerperais estão ligadas ao infanticídio. Outro dilema enfrentado é a falta de hábito em aplicar os termos infanticídio e neonaticídio com suas designações individuais. O primeiro seria a morte de uma criança no primeiro ano de vida por sua mãe e o segundo seria a morte nas primeiras 24 horas de vida. A questão central para o médico perito é estabelecer se o neonaticídio decorre de uma questão social em que a criança é indesejada ou se decorre de um transtorno dissociativo, de despersonalização ou alucinatório em que a mãe não apresenta capacidade de entendimento e autodeterminação. A literatura médica raramente imputa o neonaticídio à doença mental. Cabe ao médico perito estabelecer com rigor técnico que no momento do ato criminoso a mulher estava sob condição de doença que aboliu completamente sua capacidade. Dessa forma, o médico perito deve realizar a perícia cumprindo o rito técnico e solicitar documentações médicas sobre as condições clínicas e mentais da periciada à época do puerpério. A busca de fatores de risco pode auxiliar o médico, mas é preciso saber que o perfil das mulheres varia conforme a tipologia do fato, isto é, neonaticídio e infanticídio. Diagnósticos diferenciais entre síndrome de identificação errônea delirante que pode estar acompanhada de hostilidade em relação à identificação errática delirante, a Síndrome de Capgras em que a mulher pode acreditar que seu filho foi trocado e que a criança diante dela é uma impostora. Pela fugacidade dos sintomas psicóticos, a perícia psiquiátrica que determina a imputabilidade da mãe infanticida frequentemente é realizada já na ausência de qualquer manifestação clínica de psicose
CONCLUSÕES: A perícia psiquiátrica da mulher que alega psicose puerperal é desafiadora pela fugacidade do quadro sintomático e a realização tardia. Se baseia em análise de documentação médica – desde o momento do parto e puerpério – sintomatologia descrita por familiares próximos, pela epidemiologia do quadro e sua associação com transtornos de humor.
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