Trabalho aprovado pela Comissão de Ética do Instituto Médico Legal de Porto Velho – RO, na reunião 003/2022, ocorrida em 08/07/2022. Os autores informam não haver conflito de interesse.
AN ATYPICAL HOMICIDE CAUSED BY CUT-THROATS IN BRAZIL
Conrado Falcon Pessoa (1)
http://lattes.cnpq.br/7889843286078053 – https://orcid.org/0000-0003-4854-5141
Nathália dos Santos Vieira Loubet (2)
http://lattes.cnpq.br/7287028244416209 – https://orcid.org/0009-0008-2956-6696
Ana Cecília Guedes Pereira Falcão (3)
http://lattes.cnpq.br/8421929250333889 – https://orcid.org/0000-0002-0876-2590
Murilo Sérgio Valente-Aguiar (4)
http://lattes.cnpq.br/5886046890650632 – https://orcid.org/0000-0003-4623-7022
(1) Centro Universitário São Lucas – UNISL, Porto Velho – RO, Brasil. (autor principal)
(2) Centro Universitário São Lucas – UNISL, Porto Velho – RO, Brasil. (autor secundário)
(3) Faculdades Integradas Aparício de Carvalho – FIMCA, Porto Velho – RO, Brasil. (levantamento bibliográfico e coordenador)
(4) Instituto Médico Legal Dr. José Adelino da Silva, Porto Velho – RO, Brasil. (coordenador e orientador)
Email: conradofalcon@hotmail.com
RESUMO
Quando a polícia é chamada para investigar um crime envolvendo ferimentos incisos no pescoço, é necessário determinar se as lesões foram resultados de um homicídio, suicídio ou um acidente. Essa tarefa pode se tornar desafiadora se o legista não puder estar presente na cena do crime ou se não houver testemunhas confiáveis para explicar as lesões no corpo.
Neste relato de caso, o cadáver apresentava quatro feridas incisas na região anterior do pescoço, três das quais mostravam marcas características de hesitação, sugerindo que se tratava dum caso de suicídio. No entanto, duas marcas de constrição cervical também foram encontradas, que insinuavam um estrangulamento. Durante a investigação policial, descobriu-se que as marcas de constrição cervical eram compatíveis com a trama da corda usada pelos assassinos para arrastar o corpo para uma área distante da cena do crime. As marcas de hesitação, por outro lado, foram relacionadas à embriaguez dos autores do crime.
Essas informações foram essenciais para que o legista descartasse o estrangulamento como causa da morte e determinasse que a asfixia mecânica, resultante da aspiração de sangue dos cortes na garganta, foi a causa responsável pelo desfecho fatal do caso. Esse resultado permitiu a elucidação do crime como um homicídio atípico. É importante ressaltar que a divulgação de descobertas não comprovadas em autópsias forenses de homicídios é crucial para o desenvolvimento e aprimoramento da medicina legal.
Palavras chave: Homicídio, Suicídio, Autópsia, Asfixia, Estrangulamento, Lesões no pescoço.
ABSTRACT
When the police are called in to investigate a crime involving neck incisions, determining the nature of the wounds – whether they were inflicted by homicidal, suicidal, or accidental means – can be challenging. This is especially true if the medical examiner cannot be present at the crime scene or if there are no reliable witnesses to provide insight into the nature of the wounds.
In this case report, the victim’s body displayed four incisive wounds to the anterior part of the neck. Three of these wounds had hesitation marks, indicating that the cause of death was likely suicidal. However, two cervical constriction marks suggested the possibility of strangulation. As the police investigation progressed, it was discovered that these marks were consistent with the pattern left by the rope used by the killers to drag the body to a remote location away from the crime scene. The hesitation marks, on the other hand, were attributed to the killer’s alcohol intoxication.
All this information was crucial in enabling the medical examiner to rule out strangulation as the cause of death, and instead determine that the victim had died due to mechanical asphyxiation resulting from blood aspiration from the neck incisions. This conclusion enabled the crime to be classified as an atypical homicide. It is important to emphasize that sharing the findings from forensic autopsies of homicides is essential for the advancement and improvement of forensic medicine.
Keywords: Homicide, Suicide, Autopsy, Asphyxia, Strangulation, Neck injuries.
1. INTRODUÇÃO
Na literatura forense brasileira, as lesões cervicais recebem diferentes nomes de acordo com sua localização. Lesões localizadas na região anterior ou lateral do pescoço são conhecidas como “esgorjamento”, enquanto aquelas na parte posterior são chamadas de “degolação”, em referência à gola da camisa [1-3]. Essas lesões podem ser únicas ou múltiplas, com profundidades variáveis que podem atingir a coluna cervical. Já em outras literaturas forenses internacionais, esses tipos de ferimentos são geralmente referidos como “garganta cortada” [4].
O ato de cortar a garganta é um método frequentemente utilizado por pessoas que cometem homicídios, mas é raro em casos de suicídio ou acidente [3-9]. Quando o médico-legista se depara com um corpo que apresenta esse tipo de ferimento, a tarefa se torna bastante desafiadora, especialmente quando não há testemunhas confiáveis ou informações prévias sobre o caso [3, 5, 7].
A distinção entre lesões na garganta homicidas e suicidas é feita através da análise de características como as marcas de hesitação, a profundidade e as bordas da ferida, além das lesões de defesa [3, 7, 10]. Essas peculiaridades, juntamente com as evidências coletadas no processamento da cena do crime e na investigação criminal, são essenciais para a elucidação do tipo de crime e sua autoria [6].
As lesões na garganta podem ser fatais devido à anemia aguda causada pelo sangramento externo, à asfixia por aspiração de sangue ou à embolia gasosa, que ocorre quando o ar entra na corrente sanguínea pela seção das veias jugulares, enquanto o corpo está em posição vertical ou sentada com o nível do pescoço mais alto que o tórax [1, 3, 8, 11, 12].
É de responsabilidade do médico legista examinar minuciosamente as lesões encontradas e, em conjunto com as provas circunstanciais, auxiliar as autoridades competentes a esclarecer a natureza da lesão em relação a todos os aspectos do caso [5].
2. RELATO DO CASO
Um homem branco, de 24 anos, foi encontrado morto em uma floresta na zona rural com ferimentos incisos na garganta e marcas de corda ao redor do pescoço, indicando a possibilidade de ter sofrido um esgorjamento seguido de estrangulamento ou vice-versa.
A autópsia foi realizada 15 horas após a morte. Durante a autópsia, a face apresentava sinais de congestão e cianose, semelhantes aos casos de asfixia mecânica. Foram identificadas duas marcas de corda no pescoço do indivíduo, uma na região hioide e outra abaixo da cartilagem tireoide (Figura 1). Essas marcas eram superficiais, horizontais e incompletas, sugerindo um estrangulamento. Além disso, o corpo apresentava escoriações de arrasto nas regiões frontal e malar direita e na pirâmide nasal, todas elas causadas em vida. Também foram identificadas quatro feridas incisas medindo 1, 4, 5 e 8 cm na garganta, causadas por instrumento cortante ou similar. Essas feridas apresentavam posições paralelas, profundidades variadas, bordas com infiltrados sanguíneos e ângulo agudo com cauda de escoriação à direita (Figura 2). A ferida mais extensa causou cortes na traqueia e na veia jugular direita, apresentando margens irregulares, semelhantes às causadas por lâmina serrilhada (Figura 3). Não foram identificados ferimentos defensivos ou danos de contenção (sulco de ligadura) no corpo.
A análise interna do corpo não revelou embolia gasosa, como sangue espumoso ou embolia aérea no ventrículo direito. Não foram encontradas fraturas no osso hioide, cartilagem tireoide ou traqueia. Não foram realizados exames anatomopatológicos ou histológicos devido à falta desse serviço no Instituto. Testes de álcool e toxicológicos não são realizados rotineiramente no Instituto. No Brasil, apenas em casos de morte violenta por acidentes de trânsito, é exigido que o médico legista realize tais exames.
3. DINÂMICA DO CRIME
O legista não participou do processo da cena do crime. As informações sobre a dinâmica do crime constam no documento oficial do Ministério Público, que apresentou a denúncia criminal dos envolvidos para julgamento no Tribunal de Justiça Criminal. A investigação policial, juntamente com as provas encontradas na autópsia, concluiu que se tratava de um homicídio cometido por duas pessoas, sendo uma mulher, com quem a vítima tinha um relacionamento próximo, e um homem.
De acordo com as provas testemunhais, a vítima e os três agressores (dois homens e uma mulher) estavam consumindo bebida alcoólica em uma propriedade rural de um conhecido. Em determinado momento, houve uma discussão decorrente da suspeita de infidelidade conjugal. A vítima, embriagada, foi até a varanda da casa e deitou-se em um banco de madeira. A mulher foi até a cozinha, pegou uma faca serrilhada e desferiu um golpe na região anterior do pescoço da vítima, que não ofereceu resistência. O segundo agressor, vendo que a vítima ainda estava viva e, instigado pela mulher, pegou outra faca em sua posse e tentou cortar a garganta da vítima. Entretanto, devido ao seu alto grau de intoxicação alcoólica, não apresentou coordenação motora adequada, causando três ferimentos superficiais na garganta da vítima. Ao presenciar o ocorrido, a testemunha (o segundo homem) fugiu do local sem ferir a vítima. Em seguida, os envolvidos utilizaram uma corda para passar no pescoço da vítima e a arrastaram ainda viva para longe do local do crime, cobrindo o corpo com vegetação e um lençol para escondê-lo. Posteriormente, retornaram à residência e lavaram o sangue do local das agressões.
4. DISCUSSÃO
Este caso apresenta particularidades intrigantes que precisam ser avaliadas, pois envolvem dois mecanismos distintos que podem causar a morte, mesmo atuando separadamente: asfixia mecânica por constrição cervical e aspiração de sangue dos cortes na garganta. Além disso, as feridas atípicas no pescoço e as lesões compatíveis com estrangulamento, que geralmente são indicativos de homicídio [11, 12], aumentaram as incertezas quanto à natureza do caso – se foi um homicídio ou um suicídio.
Os homicídios são frequentemente associados a conflitos familiares por questões de propriedade, ciúmes, conflitos políticos, ódio intenso e crimes sexuais [7, 13]. Achados de marcas de contenção ou feridas defensivas no corpo da vítima são indícios de homicídio [4]. A ausência de tais evidências neste caso também sustenta a possibilidade de suicídio
Os sulcos constritivos no pescoço da vítima sugerem estrangulamento, um método comum em homicídios e raro em acidentes e suicídios. No estrangulamento, a corda é ativamente pressionada por uma força externa, ao contrário do enforcamento, em que a pressão é causada pelo peso do corpo suspenso [11, 14]. Embora raro, o estrangulamento suicida é possível com o uso de um torniquete, um laço amarrado ao redor do pescoço e utilizar uma tração veicular ou outros objetos auxiliares [15, 16]. No Brasil, um caso atípico de estrangulamento acidental ocorreu com uma criança de 2 anos que teve seu pescoço preso quando a janela do carro foi fechada [17].
Os ferimentos agudos em suicídios com faca ou arma afiada são frequentemente encontrados no pescoço, tórax e pulsos, podendo estar presentes em outras partes acessíveis do corpo [4, 5]. No caso de cortes na garganta, os suicídios geralmente apresentam cortes menos profundos, e as lesões nas vias aéreas são menos graves do que em homicídios [11]. A falta de extensão do pescoço pode proteger as artérias carótidas, pois os músculos esternocleidomastóideos atuam como uma barreira protetora [5].
Neste relato de caso, as feridas na garganta podem indicar tanto um homicídio quanto um suicídio. As pequenas marcas de corte pareciam hesitações, como tentativas fracassadas de testar a sensibilidade à dor, o que é característico de suicídios [1, 6, 18]. Casos de suicídio sem marcas de hesitação, embora raros, tendem a indicar uma maior determinação da pessoa em cometer o ato [19]. Já a ferida mais extensa, que cortou a traqueia e a veia jugular direita, sugere um homicídio [11].
Existem duas maneiras distintas de cortar a garganta em um homicídio, com o agressor se posicionando à frente ou atrás da vítima, o que diferencia as características dos ferimentos. Cortar a garganta com o agressor atrás da vítima é o mais comum [3, 5, 7].
Quando o agressor está atrás da vítima, ele puxa a cabeça para trás e o instrumento cortante age no pescoço, da esquerda para a direita para o agressor destro e da direita para a esquerda para o agressor canhoto. A lesão começa abaixo da orelha, segue de forma oblíqua e medial para baixo, segue horizontalmente na linha média do pescoço e termina no lado oposto do pescoço, abaixo do ponto de origem. A profundidade da lesão é maior no início e depois se torna mais superficial no lado oposto, onde pode haver a cauda de escoriação da ferida. Por outro lado, quando o agressor está na frente da vítima, ele ataca com vários golpes ou cortes curtos e angulados em vez de um único golpe longo e contínuo no pescoço [3, 7].
A perda de sangue e a aspiração do sangue após o corte da garganta são os mecanismos que levaram à morte. A investigação foi fundamental para esclarecer que os sulcos de constrição cervical não estavam relacionados à agressão. Ao final do inquérito policial, ficou claro que a corda foi usada apenas para transpor o corpo. As lesões cervicais com características de marcas de hesitação, que não são comuns em homicídios, foram atribuídas ao agressor do sexo masculino, que estava embriagado e sem coordenação motora, e continuou a desferir golpes sem sucesso, causando apenas incisões superficiais que sugeriam marcas de hesitação.
5. CONCLUSÃO
É crucial destacar a importância da precisão e da uniformidade na terminologia utilizada pela comunidade científica na área forense, a fim de padronizar a documentação e possibilitar a troca de informações entre os profissionais.
Nos casos de lesões na garganta, é fundamental avaliar minuciosamente as características das feridas para determinar a causa da morte, e a colaboração entre médicos legistas, policiais e peritos é crucial para a resolução do caso.
A divulgação de achados atípicos em autópsias é de grande importância para a evolução e aprimoramento da medicina legal como ferramenta de resolução de crimes. No entanto, é essencial que esses achados sejam interpretados no contexto correto para que as conclusões sejam precisas e contribuam para a elucidação dos fatos. Nesse sentido, a integração entre a investigação da cena do crime e a medicina forense é fundamental para se chegar a conclusões mais acuradas. No caso em questão, a presença de lesões de hesitação na vítima levou inicialmente à hipótese de um suicídio complexo não planejado, mas a análise integrada das evidências apontou para um quadro de homicídio atípico.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem ao Perito Oficial Médico-Legista do Instituto Médico Legal de Porto Velho – RO, Brasil, Dr. Marco Aurélio Martins da Costa por viabilizar as imagens da autópsia que ilustram este artigo.
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