Gledson Kevin Ferreira de Medeiros (1)
Marcos Vinicius da Silva Araújo (1)
Francisco Uiatam Diógenes (1)
Juliana Takitane (2)
Daniele Muñoz (3)
Daniel Romero Muñoz (3)
Renato Evando Moreira Filho (1)
(1) Universidade Federal do Ceará
(2) Universidade de São Paulo
(3) Santa Casa de São Paulo
INTRODUÇÃO: A inteligência artificial (IA) é um ramo da ciência da computação que envolve o desenvolvimento de sistemas capazes de realizar tarefas usualmente atribuídas a humanos, baseando-se na aplicação de algoritmos e modelos estatísticos. Existem diferentes abordagens que buscam resolver esse desafio, atuando de forma complementar na maioria das vezes. O aprendizado de máquina (machine learning) é uma das mais amplamente conhecidas e consiste, resumidamente, na capacidade do sistema de identificar padrões em uma imensa quantidade de dados, a partir dos quais se torna capaz de desenvolver as próprias respostas, predizendo o que se espera dele a partir dos exemplos que lhe foram expostos1. Com o avanço desses sistemas é cada vez mais palpável sua importância nos mais diversos campos de atuação, entretanto, sua implementação em maior escala ainda depende, em parte, do avanço nos estudos para definição de parâmetros aceitáveis de confiança e regulamentação adequados2. O uso de IA nas ciências forenses tem o potencial de reduzir a ocorrência de erros e vieses durante investigações, além de aumentar a probabilidade de detecção de padrões que poderiam ser negligenciados ou simplesmente não visualizados a olho nu. Dado que estas avaliações costumam demandar bastante tempo e energia, tendendo a dificultar a manutenção do foco, a IA permitiria que o profissional dedicasse sua atenção aos aspectos mais dependentes de contextualização humana e ao refinamento dos resultados obtidos na análise inicial1.
OBJETIVOS: O presente estudo teve como objetivo realizar um levantamento da literatura recente sobre a aplicação da IA em autópsias, buscando identificar os avanços na área, bem como a potencial participação dos especialistas no processo de aprimoramento dessa tecnologia.
MÉTODOS: Tratou-se de uma revisão da literatura, descritiva, realizada durante o mês de junho de 2023. A busca foi feita utilizando os descritores “machine learning” AND “autopsy”, restritos ao título e resumo, nas bases Pubmed e Biblioteca Virtual em Saúde (BVS). Foram filtrados os artigos publicados nos últimos cinco anos, com texto completo disponível, escritos em inglês ou português. No Pubmed houve 30 resultados, dos quais seis foram selecionados para leitura na íntegra após avaliação do resumo. Na BVS foram encontrados 51 artigos, sendo dois selecionados para a revisão, após exclusão de resultados repetidos ou inadequados para o escopo da pesquisa. Foram excluídos da pesquisa os trabalhos que não discorriam sobre inteligência artificial ou que estudavam seu uso em outros campos da Medicina. Os oito artigos restantes foram lidos na íntegra e avaliados qualitativamente para a produção desta revisão.
RESULTADOS E DISCUSSÃO: Lin et al.3 mostraram a possibilidade de uso de uma IA baseada em aprendizado profundo (deep learning) para diferenciar causas de morte a partir da análise espectroscópica do fluido de edema pulmonar. Os casos selecionados no estudo envolviam cinco causas básicas: morte súbita de origem cardíaca, afogamento, asfixia, lesão cerebral e intoxicação. Os dados foram obtidos a partir de 915 amostras referentes a 183 casos nos quais foi evidenciado edema pulmonar na necrópsia. A acurácia observada do modelo variou entre 87,7% e 91,7%, a depender do tipo de pré-processamento dos dados, superando os demais algoritmos estudados pelos autores. Outra possível aplicação de aprendizado de máquina em necrópsias é auxiliando na cronotanatognose. Através da avaliação do microbioma cadavérico, foi obtida uma acurácia variável de 70,6% a 74,5%, entre as três diferentes abordagens estudadas4. Além do tempo pós-morte, foi estudada ainda a capacidade de determinação de local e causa da morte, com acurácia chegando até 87,6%. Buscando facilitar a produção de relatórios de necrópsia, além de auxiliar na conferência da causa da morte, foi estudada a aplicação de modelos de classificação automática de textos e sua acurácia em determinar tanto a causa jurídica quanto a causa médica da morte, a partir da análise descritiva de relatórios de patologistas5,6. O modelo que obteve melhores resultados foi um método semi-automático, que contava com trabalho manual de especialistas, os quais faziam a seleção e categorização de características por ordem de importância. Por se tratar de um trabalho mais desgastante e limitado pela própria ideia de facilitar a atuação profissional, este foi considerado inviável. Já o modelo automático baseado em grafos atingiu uma acurácia de 88,59% a 95,33% entre os tipos de causas avaliados6. Três artigos avaliaram a utilização de diferentes métodos de aprendizado de máquina para determinação da causa de morte a partir de dados obtidos em autópsias verbais7,8,9; procedimento bastante realizado com intenção de esclarecer, posteriormente, causas que não puderam ser definidas no momento da declaração de óbito. Jeblee et al.7 obtiveram baixo valor preditivo positivo nos modelos estudados, que pegavam informações exclusivamente em formato de texto, chegando a 50,5% no seu melhor modelo aplicado a neonatos, 66,5% em adultos. Já em um estudo que buscou comparar a acurácia dos modelos de machine larning com a codificação realizada por médicos a partir dos relatórios de autópsia verbal, foi observada uma elevada acurácia, de 80-97% no melhor método utilizado8. O treinamento foi feito determinando pesos para certos sintomas e palavras-chave destacados pelos profissionais, entretanto foram inclusas apenas seis doenças (que correspondiam a 70% das causas de morte na amostra obtida), o que limita bastante a extrapolação dos resultados. Mapundu et al.9 compararam a acurácia de 9 métodos distintos na classificação de 12 categorias de diagnósticos (causas gerais de morte). Os dados foram retirados de questionários padronizados, narrativas em texto livre ou a combinação dos dois, de forma que o valor preditivo para cada situação pôde ser definido. Os melhores resultados obtiveram acurácia consistentemente acima de 90%, nas três formas de análise, com discreta superioridade no uso isolado dos questionários. Outro estudo observou a acurácia de 3 diferentes modelos em determinar causa da morte com base em uma amostra de 3100 autópsias, porém obteve um baixo valor preditivo positivo, focando principalmente em definir os pontos de maior impacto no resultado10. De acordo com a análise, idade foi o fator mais significativo, seguido por alterações histológicas, especialmente dos sistemas respiratório e cardiovascular.
CONCLUSÕES: O uso da inteligência artificial em autópsias tem o potencial de reduzir vieses e oferecer maior fundamentação na determinação da causa mortis, através da maior eficácia em reconhecer e quantificar elementos que contribuam para a formação de convencimento. Pode ainda ser de grande utilidade para aumentar a celeridade na produção de relatórios médico-legais, embora a participação e validação de profissional qualificado seja essencial para assegurar a confiabilidade dos resultados. A aplicação dessas tecnologias na rotina dos serviços ainda não é uma realidade visível no futuro próximo, por necessitar de maiores estudos com validação em amostras diversas, e que permitam a diferenciação entre um maior número de enfermidades e diagnósticos, com elevado nível de confiança. Para tanto, é de extrema importância a participação dos profissionais da área, buscando uma produção de dados de qualidade, que possam melhorar o treinamento dos modelos, mas também validando os resultados obtidos. Os aspectos éticos e legais do uso de IA (especialmente na produção de provas em processos criminais, ou definindo indicadores de saúde) são fatores que merecem uma discussão aprofundada, com participação ativa de especialistas, para que a inevitável introdução dessas ferramentas no nosso cotidiano seja feita de maneira responsável, estabelecendo protocolos que possam mitigar a ocorrência de erros na alimentação e interpretação dos dados, melhorando a eficácia dessa interação com as máquinas.
Referências:
1. Jadhav EB, Sankhla MS, Kumar R. Artificial Intelligence: Advancing Automation in Forensic Science & Criminal Investigation. Journal of Seybold Report. 2020;15(8):2064-75.
2. Wankhade TD, Ingale SW, Mohite PM, Bankar NJ. Artificial Intelligence in Forensic Medicine and Toxicology: The Future of Forensic Medicine. Cureus. 2022;14(8). DOI:10.7759/cureus.28376
3. Lin H, Liu Y, Zhang J, et al. Determination of causes of death via spectrochemical analysis of forensic autopsies?based pulmonary edema fluid samples with deep learning algorithm. J Biophotonics. 2020;13(4):e201960144.
4. Zhang Y, Pechal JL, Schmidt CJ, et al. Machine learning performance in a microbial molecular autopsy context: a cross-sectional postmortem human population study. PLoS One. 2019;14(4):e0213829.
5. Mujtaba G, Shuib L, Raj RG, Rajandram R, Shaikh K. Prediction of cause of death from forensic autopsy reports using text classification techniques: A comparative study. J Forensic Leg Med. 2018;57:41-50.
6. Mujtaba G, Shuib L, Raj RG, et al. Classification of forensic autopsy reports through conceptual graph-based document representation model. J Biomed Inform. 2018;82:88-105.
7. Jeblee S, Gomes M, Jha P, Rudzicz F, Hirst G. Automatically determining cause of death from verbal autopsy narratives. BMC Med Inform Decis Mak. 2019;19:1-13.
8. Idicula-Thomas S, Gawde U, Jha P. Comparison of machine learning algorithms applied to symptoms to determine infectious causes of death in children: national survey of 18,000 verbal autopsies in the Million Death Study in India. BMC Public Health. 2021;21:1-11.
9. Mapundu MT, Kabudula CW, Musenge E, Olago V, Celik T. Performance evaluation of machine learning and Computer Coded Verbal Autopsy (CCVA) algorithms for cause of death determination: A comparative analysis of data from rural South Africa. Front Public Health. 2022;10:990838.
10. Booth J, Margetts B, Bryant W, et al. Machine learning approaches to determine feature importance for predicting infant autopsy outcome. Pediatr Dev Pathol. 2021;24(4):351-360.