Úrsula Bueno Do Prado Guirro (1)
Aline Lika Kambara (1)
Gabriele Vieira Bonanno (1)
Emílio Zuolo Ferro (2)
Ivan Dieb Miziara (2)
Carmen Silva Molleis Galego Miziara (2)
(1) Universidade Federal do Paraná
(2) Universidade de São Paulo
INTRODUÇÃO: Os estudantes de medicina precisam aprender durante a graduação a técnica dos procedimentos habitualmente indicados na assistência em saúde, como intubação orotraqueal, acesso venoso central, drenagem de tórax, ente outros. Historicamente, o treinamento destas habilidades ocorreu em pessoas que faleceram nos hospitais-escola. À luz da ética e legislação contemporâneas, o treinamento dos estudantes em cadáveres de pessoas que faleceram recentemente nos hospitais-escola pode ser questionável, especialmente quando ocorre sem autorização dos familiares ou consentimento prévio do paciente, não há registro no prontuário e não houve reflexão visando a formação médica ética e legal. Não foram encontrados dados na literatura que descrevam se o treinamento ainda ocorre no Brasil.
OBJETIVO: O objetivo primário deste estudo foi avaliar se ocorre o treinamento de habilidades médicas em cadáveres em um curso de medicina brasileiro e, no caso positivo, com que frequência.
O objetivo secundário foi conhecer a percepção dos estudantes e docentes sobre o treinamento de procedimentos médicos em cadáveres quanto à/ao: 1) utilidade do treinamento, 2) intenção de participar/convidar estudantes, 3) sentimento experimentado, 4) obtenção da autorização prévia à realização do procedimento junto dos familiares ou consentimento do paciente.
MÉTODO: Após liberação ética (CAAE 56603322.0.0000.0102 e parecer consubstanciado 5.444.231), foram convidados para participar todos os estudantes maiores de idade e regularmente matriculados e todos os docentes médicos alocados no mesmo curso de medicina de uma universidade pública brasileira localizada em uma capital da região sul. O universo amostral consistia de 1.200 estudantes e 400 professores. Após convite e esclarecimento da pesquisa, aqueles que aceitaram participar assinaram termo de consentimento livre e esclarecido. A participação foi anônima e consistiu de preenchimento individual do instrumento da pesquisa. Foram coletados dados demográficos (para estudantes: idade, sexo e semestre matriculado; para professores: idade, sexo, tempo de experiência e especialidade médica) e questionário desenvolvido para o estudo, com dez perguntas, versando sobre a prática de procedimentos médicos por estudantes em cadáveres recém-falecidos no hospital-escola e as percepções dos participantes acerca da prática. Os dados obtidos foram digitados em planilha eletrônica e foram excluídas as participações com questionários rasurados ou com menos de 50% de respostas. Par apresentação dos resultados, estudantes foram agrupados em ciclos descritos por básico, médio e estágio (respectivamente 1-4º, 5º-8º e 9º-12º semestre). O estudo estatístico foi feito com apoio do software R versão 4.2.1. Os resultados foram discutidos com base na ética médica e legislação brasileira vigente.
RESULTADOS: Participaram 437 estudantes (36,4%) e 88 professores (22,0%). Após exclusão de questionários incompletos, restaram 403 estudantes e 87 professores.
Da amostra de estudantes, a maioria era mulher (58,1%) com idade média de 23,4 ± 3,3 anos e 3,7% dos estudantes relatou ter treinado procedimentos em cadáveres (n=15), na maioria durante o estágio (53,3%). O procedimento mais executado foi a intubação orotraqueal (53,3%), seguido por dois ou mais procedimentos no mesmo cadáver (33,3%). Ao praticar os procedimentos, o sentimento mais frequentemente apontado foi o positivo (61,5%). Todos afirmaram que não houve pedido de autorização prévia à prática ou desconhecia se houve (100%). Dos estudantes que ainda não foram convidados para praticar procedimentos em cadáveres, a maioria não sabia que o convite poderia ocorrer no hospital-escola antes da participação neste estudo (81,4%). Sabendo do que se tratava e após esta pesquisa, a maioria respondeu que aceitaria o convite (87,6%), considerou útil a prática (83,1%) e acreditou que solicitar o consentimento seria importante (92,3%).
Da amostra de docentes médicos, a maioria era de homens (55,2%), idade média de 51,0 ± 10,4 anos e 48,3% treinou procedimentos médicos em cadáveres quando estavam na própria etapa de formação e atualmente apenas 2,3% respondeu que convidava estudantes para treinar procedimentos (n=2). Destes, todos convidaram estudantes para treinar intubação orotraqueal (100%), tiveram sentimentos positivos (100%), 50% concordou parcialmente em pedir autorização/consentimento e 50% discordou totalmente. Da amostra total dos docentes, 90,8% considerou importante solicitar autorização/consentimento previamente, enquanto que 9,2% não considerou importante ou não sabia responder este item e 67,8% acreditava que o treinamento em cadáveres era útil.
DISCUSSÃO: O treinamento de procedimentos médicos em cadáveres ocorreu na frequência de 3,7% no curso de medicina avaliado. Curiosamente, apesar do relato dos estudantes, apenas dois professores afirmaram fazer convites. Tal dado traz a necessidade de refletir sobre a veracidade das respostas obtidas, se foram congruentes com a realidade ou se pode ser havido omissão nas respostas dos docentes sobre o convite dos estudantes para praticar procedimentos médicos em cadáveres.
A maioria dos participantes estudantes e professores acreditava que o treinamento era útil para o aprendizado e demonstrava sentimento positivo, o que possivelmente levará a novos convites e treinamentos, exceto se impedidos. No entanto, o consentimento antes da prática de procedimentos médicos, a despeito de ser um imperativo ético descrito no artigo 22 do Código de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina, raramente foi considerado entre os participantes e houve docentes que discordavam da sua obtenção.
É fato que a sociedade se beneficia de médicos com habilidades para executar os procedimentos indicados na prática assistencial. No entanto, estudantes podem iniciar o aprendizado em manequins de simulação, onde o risco de lesões existe, mas não causará danos desnecessários em pessoas ou cadáveres. Após a encontrarem alguma proficiência e compreensão do cenário médico, os estudantes poderão gradativamente ser inseridos nos cenários de prática supervisionada por outros médicos mais experientes.
Pessoas que buscam atenção médica em hospitais-escola, que são nosocômios conveniados ao Sistema Único de Saúde, o fazem por meio do sistema de regulação de saúde e não mera escolha. Portanto, não poderiam ser consideradas “objeto de ensino” apenas por estarem ali admitidas para receber cuidados médicos, independentes de estarem vivas ou mortas.
A prática de procedimentos médicos em pessoas falecidas, se realizado, deveria ser precedido de autorização documental dos familiares ou da própria pessoa em vida. Ainda, todo procedimento médico deve ser registrado em prontuário médico com a finalidade de comprovação e proteção em casos de desdobramento médico-legal como no serviço de verificação de óbito ou em necropsia dos institutos médico-legal.
A ausência de consentimento ou autorização prévias, bem ausência do registro médico em prontuário enseja riscos médicos e jurídico sem precedentes. O vilipêndio de cadáver é descrito no artigo 212 do Código Penal brasileiro, o que inclui o tratamento desrespeitoso com o cadáver. Quando se realiza procedimentos médicos em cadáveres com a finalidade única do treinamento de estudantes, não há indicação médica para o próprio paciente ou cadáver, exceto o possível aprendizado obtido de maneira ilegal do ponto de vista jurídico.
As repercussões da prática de procedimentos em cadáveres no desenvolvimento da ética entre estudantes, na relação com os processos da morte e do morrer, no respeito ao corpo falecido, na compreensão das questões legais na transição da pessoa-cadáver e no desenvolvimento da moralidade do estudante de medicina raramente são abordadas no ensino médico e parecem ser urgentes.
Este estudo avaliou a prática de procedimentos médicos em cadáveres a partir da resposta de estudantes e docentes médicos, o que é permeado pelo entendimento e julgamento de cada participante. Não foi realizada a avaliação direta em cada caso no hospital-escola que foi sede do estudo. Desta maneira, a veracidade ou não da resposta de cada participante é um viés intrínseco do estudo.
CONCLUSÃO: O treinamento de procedimentos médicos em cadáveres ocorreu na frequência de 3,7% no curso de medicina avaliado. A maioria dos estudantes e professores considerou o treinamento útil para o aprendizado médico, a maioria dos estudantes tem a intenção de participar, experimentou sentimentos positivos, no entanto o consentimento ou pedido de autorização não foi obtido ou não foi considerado previamente. Apesar da pequena frequência observada, a prática de procedimentos médicos em cadáveres em hospital-escola suscita a discussão da ética e a repercussão na educação médica.
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