Artigo Original

TRANSTORNOS DO HUMOR: ASPECTOS FORENSES DA RESPONSABILIDADE PENAL

Como citar: Valença AM, Telles LEB, Dourado JB, Meyer LF, Rigonatti LF, Moraes TM, Silva AG, Nard AE. Transtornos do humor: aspectos forenses da responsabilidade penal. Persp Med Legal Pericia Med. 2024; 9: e240410

https://dx.doi.org/10.47005/240410

Recebido em 04/03/2024
Aceito em 04/04/2024

Os autores informam que não há conflito de interesse.

Mood Disorders: Forensic Aspects of Penal Responsibility

Alexandre Martins Valença (1)

http://lattes.cnpq.br/6780184620648314https://orcid.org/0000-0002-5744-2112

Lisieux Elaine Borba Telles (2)

http://lattes.cnpq.br/4016631092809678https://orcid.org/0000-0003-4105-5924

José Brasileiro Dourado (3)

http://lattes.cnpq.br/3640377381459554https://orcid.org/0000-0002-4142-7698

Leonardo Fernandez Meyer (4)

http://lattes.cnpq.br/4177923085484642https://orcid.org/0000-0003-1916-9757

Luiz Felipe Rigonatti (5)

http://lattes.cnpq.br/8824428611541473https://orcid.org/0000-0002-4264-6446

Talvane Marins de Moraes (4)

http://lattes.cnpq.br/6457995239550104https://orcid.org/0000-0003-3085-3736

Antonio Geraldo da Silva (4)

http://lattes.cnpq.br/9471338065453170https://orcid.org/0000-0003-3423-7076

Antonio Egidio Nard (4)

http://lattes.cnpq.br/0970789513843822https://orcid.org/. 0000-0002-2152-4669

(1) Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro- RJ, Brasil (autor principal)

(2) Instituto Psiquiátrico Forense Maurício Cardoso, Porto Alegre-RS, Brasil (autor principal)

(3) Universidade Federal de Pernambuco, Recife-PE, Brasil (autor principal)

(4) Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro -RJ, Brasil (autor principal)

(5) Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo, São Paulo-SP, Brasil (autor principal)

e-mail: avalen@uol.com.br

RESUMO

O objetivo desse artigo é realizar uma revisão narrativa sobre o conceito de responsabilidade penal, aplicado aos principais transtornos do humor: transtorno bipolar e depressão. Casos graves desses transtornos podem tornar esses indivíduos não responsáveis criminalmente, no caso de afetar seu entendimento ou deteerminação, dessa forma recebendo medida de segurança. A avaliação da responsabilidade  penal nesses casos é de extrema importância, para que se possa ajustar em cada caso a aplicação de medidas de segurança e de sanções penais e correcionais adequadas.

Palavras-chave: Transtorno bipolar, depressão, responsabilidade penal, medida de segurança

ABSTRACT

The objective of this article is to carry out a narrative review of the concept of criminal responsibility, applied to the main mood disorders: bipolar disorder and depression. Severe cases of these disorders can make these individuals not criminally liable, in the event that affects their understanding or determination, thus receiving a security measure. The assessment of criminal responsibility in such cases is extremely important, so that the application of appropriate security measures and penal and correctional sanctions can be adjusted in each case.

Keywords : Bipolar disorder, depression, penal responsibility, security measure.

1. INTRODUÇÃO

Em Direito Penal, para que alguém seja responsável penalmente por um determinado delito, são necessárias três condições básicas: ter praticado o delito, à época do delito ter entendimento do caráter criminoso da ação e faculdade de determinar-se (1). O que é ou não imputado é o ato.

O Código Penal Brasileiro (2) (Lei Substantiva Penal) em seu Título III (Da Responsabilidade Penal) trata dos casos de responsabilidade, ou seja, daqueles que, embora tenham cometido um crime, não podem ser responsáveis por ele ou o são parcialmente, tendo, destarte, suma responsabilidade abolida, no primeiro caso, ou diminuída, no segundo. Além dos menores, que recebem outro tratamento jurídico em legislação especial, a lei declara isento de pena, sob certas condições, aqueles que cometem ação ou omissão e apresentam desenvolvimento mental incompleto (silvícolas não aculturados, apedeutas e surdos-mudos de nascença). Os retardados ou doentes mentais são automaticamente isentos de pena desde que a patologia ou condição interfiram na faculdade de entendimento ou faculdade de determinação. A lei prevê ainda, também sob certas condições especiais, a redução da pena respectiva para algumas formas de transtorno mental.

De acordo com Taborda (3), dentro do sistema de justiça criminal no Brasil, três fases devem ser distinguidas: o inquérito, os procedimentos judiciários e a execução do julgamento. Durante a primeira fase, o delito será investigado detalhadamente pela autoridade policial. Serão colhidas evidências materiais e testemunhais, realizando-se todos os procedimentos de análise técnica. Em seguida, estas informações serão enviadas para o judiciário, com uma descrição explicando como o ato criminoso possivelmente ocorreu, indicando o possível autor.

Durante a fase de procedimento judicial, o departamento de justiça avalia a denúncia e indica como deseja prosseguir. É durante esta fase que o Exame de Responsabilidade Penal (Incidente de Insanidade Mental) ou Exame de Dependência de Drogas (Laudo de Exame de Dependência de Substâncias) acontece, por solicitação das partes ou por instrução judiciária espontânea. Neste caso, o processo é então interrompido até a realização da perícia psiquiátrica. Posteriormente, recomeça seu curso, independentemente da conclusão do exame, ou seja, mesmo se o acusado é considerado doente mental. Este estágio termina com a sentença criminal, que se apresenta com três possibilidades: condenação (com ou sem substituição por medida de segurança), absolvição (após demonstração da inocência do agente) e absolvição baseada na responsabilidade do agente, que neste caso irá cumprir uma medida de segurança (internação em hospital de custódia ou tratamento psiquiátrico ambulatorial).

O Incidente de Insanidade Mental é substanciado pela Perícia Psiquiátrico- Forense, que é realizada por perito oficial do Estado. É importante salientar que a avaliação pericial será de natureza retrospectiva, procurando identificar o funcionamento mental do autor do crime, no momento que este crime ocorreu.

O objetivo do presente artigo é realizar uma revisão narrativa sobre os aspectos da responsabilidade penal nos principais transtornos do humor: Transtorno bipolar e depressão. Não há nenhum conflito de interesses no presente artigo.

2. O CONCEITO DE RESPONSABILIDADE PENAL

Do ponto de vista jurídico, a responsabilidade pressupõe no agente, contemporaneamente à ação ou omissão, a capacidade de entender o caráter criminoso do fato e a capacidade de determinar-se de acordo com este entendimento. É possível então se definir a responsabilidade como a existência dos pressupostos psíquicos pelos quais alguém é chamado a responder penalmente pelo crime que praticou. De acordo com Vargas (4), o conceito básico de responsabilidade seria a condição de quem tem aptidão para realizar com pleno discernimento um ato.

Representa a responsabilidade uma relação de causalidade psíquica entre o fato e o seu autor. Com uma frase interessante, Von Liszt, apud Lutz (5) resume bem esta questão: “responsável é todo indivíduo mentalmente desenvolvido e mentalmente são”. Para Hungria (6), na terminologia jurídica, esse vocábulo expressa a capacidade penal in genere, ou seja,  obrigação de responder penalmente pelo fato.

Ao cometer um delito, um indivíduo considerado responsável será submetido a uma pena. Ao não responsável ou parcialmente responsável, será aplicada uma medida de segurança. Segundo Paim (7), entende-se por medida de segurança, o ato jurídico que consiste na “providência substitutiva ou complementar da pena, sem caráter expiatório ou aflitivo, mas de índole assistencial, preventiva e recuperatória, e que representa certas restrições pessoais e patrimoniais, fundada na periculosidade e não na responsabilidade do criminoso”.

Ainda segundo Paim (7), a pena e a medida de segurança são distinguidas pelos seguintes aspectos:

  1. A pena assume cunho essencialmente ético e é baseada na justiça; a medida de segurança, eticamente neutra, tem por fundamento a utilidade.
  2. A pena é sanção e se impõe por um fato certo, isto é, o crime praticado; a medida de segurança não é sanção e se impõe por um fato provável, isto é, o provável retorno à prática de fato previsto como crime.
  3. A pena tem como caráter jurídico essencial o “sofrimento”, sendo repressiva e intimidante. A medida de segurança tem caráter de tratamento, assistência e pedagogia.
  4. A pena é retributiva; a medida de segurança serve ao fim de segregação tutelar ou readaptação do indivíduo.
  5. A pena, além de expiatória, visa à prevenção geral (coação psicológica e abstenção do crime) e especial (escarmento, emenda de quem sofre). A medida de segurança visa somente à prevenção especial (neutralização profilática ou recuperação social do indivíduo).

Para Taborda3, uma diferença importante entre a pena e a medida de segurança é que nesta última o tempo de duração não é sabido, ou seja, nunca é estabelecido um tempo máximo, devendo persistir enquanto o interno for considerado potencialmente perigoso. Na pena, ao contrário, o tempo de prisão é estabelecido.

Cabe ao perito informar se o indivíduo é mentalmente desenvolvido e mentalmente são. Ao juiz compete sentenciar sobre a capacidade e responsabilidade (aplicação de pena ou medida de segurança). Quanto à aplicação da medida de segurança, a lei presume a periculosidade dos inimputáveis, determinando a aplicação da medida de segurança àquele que cometeu o ilícito e se apresenta nas condições do artigo 26. Estas disposições estão presentes no artigo 26 do código de processo penal de 1984, em seu caput e parágrafo único:

É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com este entendimento.

Parágrafo único

A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação da saúde mental ou por desenvolvimento incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com este entendimento.

Na fixação do pressuposto da responsabilidade penal baseado na culpa moral, existem três critérios fundamentais: o biológico, o psicológico e o biopsicológico ou misto. O critério biológico condiciona a responsabilidade à saúde mental, à anormalidade da mente. Desta forma, se o agente apresenta uma doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou deficiência mental grave, deve ser considerado irresponsável, sem necessidade de posterior indagação psicológica. O critério psicológico não indaga se há uma perturbação mental mórbida: declara a irresponsabilidade se, ao tempo do crime, estava abolida no agente, seja qual for a causa, a faculdade de apreciar a criminalidade do fato (momento intelectivo) e de determinar-se de acordo com esta apreciação (momento volitivo). Finalmente, o critério biopsicológico, que é a reunião dos dois primeiros: a responsabilidade só é excluída, se o agente, em razão de doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardamento mental, era, no momento da ação, incapaz de entendimento ético-jurídico e determinação. É importante salientar que o nosso código penal vigente adotou este último critério. Outra questão é que o código adotou como responsabilidade penal o homo medius, o homem relativamente normal, ou o tipo comum do homem da sociedade. Não se trata de um tipo ideal, de um homem abstrato, mas de um padrão fixado segundo a média estatística (6).

O método biopsicológico exige a averiguação da efetiva existência de um nexo de causalidade entre o estado mental anômalo e o crime praticado, isto é, que este estado, contemporâneo à conduta, tenha privado parcial ou completamente o agente de qualquer das mencionadas capacidades psicológicas (seja a intelectiva ou a volitiva). É indispensável o exame psiquiátrico pericial, sempre que houver dúvidas em relação à sanidade mental do acusado. Entretanto, cabe ao juiz a palavra final na decisão de aplicar pena ou medida de segurança. A conclusão positiva do laudo pericial não substitui a sentença judicial, que é soberana (8,9).  No caso de receber medida de segurança na forma de internação hospitalar, para ser desinternado, o indivíduo será examinado em nova perícia, denominada exame de verificação de cessação de periculosidade. Nesse exame será avaliado se houve remissão da sintomatologia psicótica, se há sinais de arrependimento por parte do infrator, bem como se o mesmo conta com apoio sociofamiliar. Uma vez que estes aspectos sejam favoráveis, ele poderá ser desinternado (10).

É importante salientar que o fato de o indivíduo estar internado, em uso de medicação, é um fator importante de erro pericial que pode liberar para o mundo, indivíduo que só está bem por estar protegido. O perito deve estar atento a todos esses aspectos, em sua avaliação pericial. Certamente a medida de segurança tem a função de proteger a sociedade e o indivíduo de si mesmo.

3. Responsabilidade Penal nos Transtornos do Humor

Podemos caracterizar  sumariamente as Síndromes maníacas e depressivas que fazem parte do quadro clínico do transtorno bipolar, sintetizando algumas ideias (11):

Os estados de mania acompanhados por sintomas psicóticos, muitas vezes de feitio paranoide, acompanhados de grande excitação e agitação psicomotora, podem propiciar a realização de atos violentos. Neste caso caem na irresponsabilidade penal (art. 26 do Código penal). Na depressão psicótica o indivíduo por considerar, de forma delirante, que ele e algum familiar “vão sofrer para sempre ou serão condenados”, podendo planejar um homicídio deste familiar, seguido de tentativa de suicídio. Com frequência encontramos casos em que apenas o homicídio foi cometido, tendo o indivíduo apenas se ferido, após ser impedido de dar continuidade a seus atos por outros. Certamente estes casos também caem na irresponsabilidade penal. A hipomania e a depressão moderada podem trazer um prejuízo na capacidade de entendimento e determinação, o que pode apontar para a semi-imputabilidade (12) (parágrafo único do art. 26 do Código Penal). É novamente importante salientar que aquilo que vai determinar a responsabilidade ou irresponsabilidade são as faculdades de entendimento e determinação, de forma que cada caso é único e deve ser examinado detalhadamente pelo perito.

4. CONCLUSÃO

O exame de responsabilidade penal representa a contribuição do conhecimento psiquiátrico para o esclarecimento de um fato de interesse jurídico, contendo o raciocínio e a contribuição do perito. Esse vai fundamentar o diagnóstico psiquiátrico, com base nas principais alterações psicopatológicas apontadas no exame mental, avaliar a influência da doença mental na capacidade de entendimento e determinação à época do delito, e finalmente estabelecer se há um nexo de causalidade entre a doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardamento mental e o delito cometido, dentro do critério biopsicológico.

O estudo da responsabilidade penal de indivíduos com transtornos do humor é de interesse para a justiça criminal, para a psiquiatria e a sociedade como um todo. A avaliação da responsabilidade  penal é de extrema importância, para que se possa ajustar em cada caso a aplicação de medidas de segurança e de sanções penais e correcionais adequadas.


Referências bibliográficas

  1. Palomba GA. Tratado de Psiquiatria Forense. São Paulo: Atheneu, 2003.
  2. Código de Processo Penal. 3a. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais; 1998.
  3. Taborda JGV. Criminal justice system in Brazil: functions of a forensic psychiatrist. Int J Law Psychiatry 2001 ; 24: 371-386.
  4. Vargas HS . Manual de Psiquiatria Forense. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S.A, 1ª ed;1990.
  5. Lutz GA . A responsabilidade criminal no novo Código Penal. Rio de Janeiro: Arquivos do manicômio Judiciário, 1941.
  6. Hungria N. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, vol. 1; 1949.
  7. Paim I. Curso de Psicopatologia. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas Ltda. 4ª ed;1979.
  8. Valença AM , Chalub M, Mendlowicz M et al. Conceito de responsabilidade penal em psiquiatria forense. J Bras Psiquiatr. 2005 ; 54(3): 248-252.
  9. Valença AM , Chalub M, Mendlowicz M et al. Responsabilidade penal nos transtornos mentais. J Bras Psiquiatr. 2005 ; 54(4): 328-333.
  10. Oliveira GC, Valença AM, Moraes T ; Mendlowicz M. Cessation of dangerousness status: an analysis of 224 reports from the Instituto de Perícias Heitor Carrilho, Rio de Janeiro, Brazil. Rev Bras Psiquiatr. 2017; 39: 45-54.
  11. Dalgalarrondo P. Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais. Porto Alegre: Artmed, 2019.
  12. Valença AM, Nardi AE. Penal Responsibility in Bipolar Disorder. Jornal Brasileiro de Psiquiatria 2010; 59: 77-79.