Os autores informam que não há conflito de interesse.
INTRODUÇÃO
O transtorno afetivo bipolar é compreendido como um transtorno episódico e fásico, consistindo em episódios de depressão e mania, caracterizando o subtipo I, ou hipomania, característico do tipo II, alternados com períodos de eutimia. A literatura psiquiátrica aponta haver comprometimento na regulação cognitivo-emocional em partes cerebrais como o córtex do cíngulo anterior dorsal, o córtex pré-frontal dorsolateral e dorsomedial, somado à hiper-responsividade da amígdala, do córtex frontal ventrolateral e do córtex do cíngulo anterior ventral.
Por sua vez, a mania é definida na quinta versão do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, o DSM-V, como período de humor elevado, expansível ou irritável, no qual o paciente apresenta aumento da energia ou atividade, com sintomas de autoestima inflada ou grandiosidade, redução da necessidade de sono com manutenção da disposição, fuga de ideias, pensamentos acelerados, distraibilidade, agitação psicomotora e comportamentos de risco. Inobstante, esse estado de perturbação do humor deve ser grave a ponto de causar prejuízo social, demandar hospitalizações ou exibir características psicóticas, com duração do quadro de, ao menos, uma semana, estando presente na maior parte do dia quase diariamente.
Do ponto de vista epidemiológico, houve aumento de 12,4% na incidência de TAB na população brasileira geral entre 2005 e 2014. Similarmente, sua prevalência é variável conforme a amostra estudada, contudo, em 2017, apontou-se 1% de apresentação do quadro ao longo da vida em relação aos seus subtipos I e II no Brasil, geralmente manifestando-se for volta dos 21 anos. Dessa forma, o presente estudo tem por objetivo investigar e identificar a existência da possível correlação entre os episódios de mania bipolar do TAB I e o comportamento violento e/ou criminal, conforme relatado na literatura científica.
METODOLOGIA
Elegeu-se como desenho de estudo o método de revisão sistemática, orientada pelas recomendações do protocolo Preferred Reporting Items for Systematic Review and Meta-Analyses (PRISMA). Obteve-se a questão norteadora a partir do acrônico PCC, onde a letra P corresponde à População (pessoas com TAB I em episódio de mania), o primeiro C refere-se ao Conceito (comportamento violento/criminal); e o segundo C é relativo ao Contexto (literatura científica). A partir disso, obteve-se a questão: Existe correlação, descrita na literatura, entre os episódios de mania do TAB I e o comportamento violento, agressivo e/ou criminal?.
As buscas na literatura foram realizadas por pares em junho e julho de 2024, mediante pesquisas nos bancos de dados PubMed e Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), que indexam bases como MEDLINE, LILACS, dentre outras. A coleta de dados deu-se mediante uso da língua inglesa, empregando termos do Medical Subject Headings (MESH), em quatro grupos, cujos termos similares foram combinados entre si por meio da ferramenta de busca avançada da PubMed, utilizando o operador booleano OR entre sinônimos dos respectivos agrupamentos, sendo eles: Grupo I (Bipolar Affective Disorder), Grupo II (Criminal Behavior), Grupo III (Violent Behavior) e Grupo IV (Aggressive Behavior), pareados entre grupos por meio do AND da seguinte forma: (Grupo I) AND (Grupo II OR Grupo III OR Grupo IV).
Incluíram-se artigos originais, disponíveis on-line, na íntegra, gratuitos, escritos em inglês, espanhol ou português, publicados no período entre 20142024, que respondessem à questão de pesquisa. Em contrapartida, excluíram-se da pesquisa os artigos que não abordassem TAB I; cujo enfoque estivesse em outros episódios que não os de mania; que não abordassem o comportamento violento, agressivo ou criminal; com as metodologias: revisão sistemática, narrativa ou de escopo; e que não se mostravam congruentes à questão norteadora. Ademais, estudos duplicados foram considerados apenas uma vez. Assim, os estudos elegíveis incluíram estudos observacionais transversais, relatos de caso, série de casos, longitudinais, ecológicos, demográficos, estudos de caso-controle e de coorte.
Acerca da seleção, os artigos foram triados por dois pesquisadores, às cegas, inicialmente, por seus resumos e títulos, para, posteriormente, serem lidos na íntegra e elegidos conforme os critérios de exclusão e inclusão previamente estabelecidos. Quando em dúvida acerca da inclusão e legibilidade de algum artigo, um terceiro pesquisador intercedeu. Na sequência, os artigos selecionados foram processados no Excel for Windows®; os dados foram sintetizados de uma tabela através do método de redução de dados, a qual contém dados como: nome do(s) autor(es), ano de publicação, objetivos, métodos, amostra, país de origem e principais resultados. Sintetizaram-se os achados dos artigos em áreas temáticas concernentes à pesquisa, as quais nortearão a discussão.
RESULTADOS
Encontraram-se 974 artigos nas bases selecionadas, sendo 475 da PubMed e 499 da BVS. Desses, 464 eram duplicatas. Dos demais, elegeram-se 12 com base em título e resumo. Em adição, recuperaram-se 18 obras de fontes adicionais (Consensus). Com isso, 30 artigos foram analisados na íntegra (01 da PubMed, 11 da BVS, 18 da Consensus). Enfim, incluíram-se 15 artigos nesta revisão (05 da Consensus e 10 da BVS).
Todos os artigos foram redigidos na língua inglesa, sendo o mais antigo datado de 2016, ao passo que o mais recente era de 2024. No que tange à nacionalidade, um era da França, um era da Tunísia, um da Etiópia, dois dos Estados Unidos, quatro da China e seis da Turquia. As amostras envolvidas foram predominantemente compostas por indivíduos com TAB I, apesar de alguns estudos não distinguirem os tipos I do II. Além dos que enfocaram no TB, houve os que o fizeram em conjunto/comparação à Esquizofrenia e com o Transtorno por Uso de Substâncias (TUS). Notou-se relação entre o comportamento violento e os episódios de mania em múltiplos estudos.
DISCUSSÃO
A pluralidade de nacionalidades dos artigos, as diferenças culturais às quais as amostras estão sujeitas e a variedade de subtemáticas possíveis refletem a distribuição mundial do TAB e sua característica etiopatogênica multifatorial. Com isso, é possível perceber-se como os aspectos biológicos, psíquicos e sociais exercem influência na vida do paciente com TB e na manifestação de seus sintomas. Nessa perspectiva, o sexo biológico pode influenciar na intensidade de sintomas maníacos agudos, como evidenciado em estudos de rastreio e comparação, onde indivíduos do sexo masculino pontuaram significativamente mais alto em categorias como: interesse sexual, comportamento disruptivo e agressivo, enquanto as mulheres tiveram melhor percepção da própria doença. Concomitantemente, o papel da testosterona é controverso na literatura, uma vez que, em alguns estudos, os níveis salivares do hormônio não mostram alterações significativas nas diferentes fases do transtorno bipolar I e em indivíduos saudáveis; outros apontam que a testosterona e o polimorfismo do MAOA interagem ao modular a raiva e a reatividade emocional nos homens genéticos. Similarmente, há artigos sugerindo associação fraca, mas significativa, entre o hormônio e a agressão.
No que diz respeito ao sistema imunológico e estado pró-inflamatório, observou-se que a história de violência foi fator de risco para violência física em pacientes com TAB em mania. Notou-se que o maior número de episódios de mania, elevações no ácido úrico, na T4 livre e na relação monócito/linfócito (MLR) estavam relacionadas à violência maníaca, sugerindo possível envolvimento imunológico na fase e na sua expressão clínica. Nessa perspectiva, constatou-se que os valores do índice de resposta inflamatória sistêmica (SIRI) e do índice imunoinflamatório sistêmico (SII) foram significativamente menores naqueles com TAB que cometeram delitos em comparação aos pacientes não-infratores com TAB e controles saudáveis. Ademais, a contagem de linfócitos foi significativamente maior nos pacientes que cometeram delitos do que nos controles; a contagem de plaquetas foi significativamente menor nos pacientes com TAB que cometeram delitos do que nos pacientes não-infratores com o transtorno, tal como o nível de HDL-c foi menor naqueles com TB que cometeram delitos em comparação aos demais. A partir disso, descobriu-se que, para pacientes com transtorno bipolar, não receber tratamento psiquiátrico ativo, estar no período maníaco da doença e ter valores baixos de plaquetas e HDL entre os parâmetros sanguíneos constituem risco de envolvimento em crime.
Ressalta-se, ainda, a possibilidade de influência de polimorfismos genéticos: o polimorfismo rs2227283 do gene GRIK2 pode estar associado à ocorrência de agressão em pessoas da população Han com TAB I. De mesmo modo, o alelo A foi um fator de risco para o comportamento agressivo. Visto isso, sugeriu-se, ainda, que o sistema glutamato pode estar envolvido no mecanismo fisiopatológico do comportamento agressivo.
Na perspectiva da influência do uso de substâncias na gênese de comportamento violento em pacientes com TAB I, alguns estudos observaram que o consumo atual de substâncias está relacionado ao comportamento violento em pacientes com TAB I, sendo que o TUS fez o risco de violência triplicar. Os indivíduos que abusavam de qualquer substância tinham maior probabilidade de ter registo criminal e história de cárcere em relação aos demais. Além disso, um dos fatores de risco mais significativos para a violência foi a história prévia de comportamento violento. Associou-se à violência ao consumo de substâncias psicoativas, sugerindo que o risco de agressividade em pacientes com TAB I é mais elevado do que na população em geral, sendo particularmente maior quando associado aos transtornos de personalidade e ao TUS, conforme descrito na literatura. Nesse quesito, sabe-se que o álcool é um fator de risco para o comportamento violento e acidentes, bem como que o uso de substâncias ilícitas aumenta significativamente o risco de comportamento violento em indivíduos com transtornos psicóticos. Mais especificamente no TAB, o álcool pode moderar os sintomas maníacos, favorecendo a perpetração da agressão a outros, especialmente no tocante às mulheres.
Dentre os diversos fatores de risco associados ao surgimento de comportamento agressivo, estados maníacos e psicóticos surgem como características relevantes para avaliação, em detrimento da prevalência destes estados no contexto patológico do transtorno afetivo bipolar. Em certo estudo, identificou-se a presença de agressão em 10,6% dos indivíduos, estando a sua presença associada à tentativa de suicídio recente, abuso de álcool, dificuldade de aprendizagem e episódio maníaco inicial. Pacientes com o primeiro episódio de TAB I com características psicóticas estiveram envolvidos em agressões graves a outras pessoas em eventos recentes. As chances de agressão aumentaram 4,9 vezes em associação à tentativa recente de suicídio, mais de 3 vezes com abuso de álcool ou dificuldade de aprendizagem e 2,6 vezes se a polaridade do episódio fosse maníaca.
Em comparação à Esquizofrenia, a TAB foi associada a taxas mais elevadas de violência em um estudo, uma vez que houve prevalência de agressão de 48,0% em pacientes com esquizofrenia e 61,8% em pacientes com episódio maníaco. Ainda nesse artigo, a violência associou-se ao gênero masculino, à admissão involuntária e a sintomas maníacos mais graves.
Já no respectivo ao histórico de violência e aos traumas na infância, notou-se, durante a avaliação de histórico de violência e traumas durante a infância em determinada amostra, que os pacientes com histórico de cárcere estiveram mais expostos à negligência física. Além disso, o temperamento hipertímico foi dominante em pacientes envolvidos em crimes. Por conseguinte, nesse estudo estabeleceu-se que todos os tipos de traumas de infância parecem se correlacionar ao comportamento violento em pacientes com TAB I e II. Em adição, os autores apontaram a tendência de maiores idades dos pacientes estarem inversamente relacionadas ao comportamento violento. Enfim, esse subtópico reflete a infância como período distinto de maturação da personalidade e das funções psíquicas. Também, reforça a necessidade de se investir na área da psiquiatria, mais especificamente, na psiquiatria forense e no estudo dos transtornos do trauma, especialmente no Brasil, país com altas taxas de violência infantil, as quais tendem à ascensão, especialmente após a pandemia da Covid-19, como se percebe em dados do Ministério da Saúde, em função do confinamento e de a maioria dos abusos ocorrer em casa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Parece haver correlação entre os episódios de mania e a propensão ao comportamento violento, agressivo e criminal em pacientes com TAB I, tendendo a ser maior em associação aos transtornos de personalidade e por uso de substância. Os fatores de risco identificados foram: não receber tratamento psiquiátrico ativo, estar no período maníaco da doença, ter sofrido traumas na infância, abusar ativamente de substâncias e apresentar histórico de comportamento violento. Outras subáreas relacionadas ao tema foram: a provável contribuição do sistema imune e do estado pró-inflamatório nos episódios de mania, bem como polimorfismos do gene GRIK2; todavia, ainda não se pode definir com certeza a especificidade de biomarcadores no comportamento violento associado à mania. O papel da testosterona é controverso na literatura, enaltecendo a necessidade de mais estudos para determinar a influência do sexo genético no comportamento agressivo associado à mania.