Os autores informam que não há conflito de interesse.
RESUMO ESTENDIDO
INTRODUÇÃO:
Politraumatismo é o termo utilizado para designar a presença de lesões graves em dois ou mais órgãos ou partes do corpo (1). Em acidentes com grande energia cinética envolvida, como acidentes aéreos, muitas vezes o politraumatismo impede ou dificulta a identificação das vítimas por afetar meios tradicionais de reconhecimento, como datiloscopia ou análise odontológica (2). Nesse cenário, a antropologia forense é extremamente valiosa.
Definida como um ramo da antropologia que estuda seguimentos corporais, ossadas ou corpos em avançado estado de putrefação com o propósito de identificação (3), a antropologia forense faz uso de identificadores como morfologia facial, sinais particulares (tatuagens e cicatrizes), características do esqueleto humano e anomalias anatômicas para possibilitar o reconhecimento de cadáveres (2). Além da identificação de características específicas da vítima, como tatuagens ou peças de roupa, que podem ser comparadas com relatos ante-mortem, a antropologia forense também faz uso de métodos como exames de imagem ou análise esquética para a estimativa de fatores como sexo e idade, também importantes no processo de identificação. A antropologia forense atua também diretamente, em questões relativas ao foro, no que diz respeito a elucidação da causa médico legal da morte dos fragmentos corporais, dos corpos com elevada destruição pelos mecanismos que perpassam grande violência na causalidade do dano com desfecho morte, e dos cadáveres em avançado estado de putrefação.
É, portanto, crucial que essas técnicas de identificação sejam de amplo conhecimento, principalmente no que tange a acidentes de grande porte.
MATERIAIS E MÉTODOS:
As informações descritas neste relato se baseiam no laudo pericial produzido pela Polícia Civil de Minas Gerais. A discussão foi pautada em consulta à literatura disponível e seleção de artigos como referencial teórico.
RELATO DE CASO:
Trata-se da necropsia de um adulto do sexo masculino, cuja causa de morte foi identificada como politraumatimo contuso, em razão de acidente aéreo, com grande energia envolvida resultando na queda da aeronave no ano de 2024.
A queda do avião resultou na morte dos tripulantes que estavam a bordo. O resgate dos corpos sucedeu com a o requisição de necropsia das vítimas, incluindo um cadáver do sexo masculino, identificado pela genitália externa. Sua cor foi determinada pela observação de pele preservada e sua altura pela medida direta do corpo sobre a mesa de necropsia.
A cronotanatognose permitiu estipular que o tempo estimado de morte era superior a 12 horas. Suas principais lesões foram produzidas por ação contundente, levando ao diagnóstico de causa de morte como politraumatismo contuso.
Apesar da ação contundente, havia preservação do desenho digital de ambas as mãos, que possibilitou exame necropapiloscópico com resultado positivo. Também foram colhidas amostras biológicas para estudo genético e exame anatomopatológico.
Na análise dos restos mortais, foram observadas áreas com presença de osteófitos (bicos de papagaio) se projetando dos corpos das vértebras torácicas inferiores. Também foi solicitado exame tomográfico que evidenciou reconstruções tomográficas tridimensionais do corpo com ênfase em estruturas ósseas. Corroborado pelo achado de osteófitos na coluna vertebral e pelo estudo da superfície sinfisial, compatível com fase V de Suchey Brooks (método que estima idade por meio de análise da sínfise púbica), estimou-se o intervalo de idade como em torno de 45,6 anos ± 10,4 anos.
DISCUSSÃO:
Em acidentes de grande impacto, como quedas de aeronave, ou de grande escala, tal qual desastres naturais, não é incomum que métodos considerados como padrão ouro de identificação não estejam acessíveis. O guia de Identificação de Vítimas de Desastres, publicado pela Interpol e reconhecido em diversos países, nota que o ideal é realizar a identificação de vítimas por meio de Identificadores Primários: DNA, impressões digitais, registros odontológicos e próteses com números de série individuais (4). Quando o acesso a esses identificadores não é possível, a antropologia forense permite que outros caminhos sejam abertos para o reconhecimento de cadáveres: após o Tsunami no Japão em 2011, cerca de 90% das vítimas foram identificadas por meio de reconhecimento visual e de objetos pessoais/roupas (5).
Além disso, a antropologia forense também se faz útil em análises de cadáveres que já passaram pelo processo de decomposição ou estão em estado de putrefação extrema: Um estudo croata (6) demonstrou que a identificação de corpos exumados após a guerra de 1991 ocorreu, em sua maioria, por meio de uma combinação de fatores biológicos e não biológicos.
Caso a identificação da vítima se prove difícil em primeiro momento, é possível lançar mão de estratégias que limitem o perfil do indivíduo, como determinação de sexo e de idade. No caso relatado, o legista fez uso do método Suchey-Brooks para estimar a idade da vítima, como uma margem de erro de ± 10,4 anos. O método consiste na análise da sínfise púbica, que geralmente se encontra preservada em cadáveres. Na sínfise, mudanças da superfície óssea ocorrem em todas as idades, desde a fusão da epífise na juventude até a degeneração da velhice, que acabam por possibilitar a datação óssea com uma margem confiável (7).
A radiologia forense também tem importante papel nesse processo. Por meio da tomografia computadorizada, reconstruções 3D do sistema ósseo possibilitam o reconhecimento de anomalias anatômicas e processos degenerativos, além de sequelas de traumas ou procedimentos (8). Atualmente, o uso de realidade aumentada para criação de modelos de reconstrução de restos craniofaciais fragmentados é uma empolgante possibilidade que pode ser aperfeiçoada e amplamente distribuída no futuro (9).
CONCLUSÃO:
Em casos como o acidente aéreo descrito, em que a energia distribuída no impacto foi alta e as vítimas sofreram politraumatismos importantes, a antropologia forense é extremamente importante no processo de identificação, assim como quando os corpos já passaram por decomposição extensa. O legista pode fazer uso de estratégias como análise de roupas e objetos pessoais, reconhecimento de sinais como cicatrizes e tatuagens, análise dos restos mortais e emprego de exames radiológios para estimações de sexo e idade. O presente trabalho objetiva expor a possibilidade e a importância de lançar mão desses métodos quando meios mais fidedignos, como datiloscopia e estudos genéticos, não estão disponíveis.