Los autores informan que no existe conflictos de intereses.
CHARACTERISTICS OF INJURIES CAUSED BY LESS-LETHAL AMMUNITION SHOOTING: A HISTORICAL VIEW
Orlando Victorino de Moura Junior (1)
http://lattes.cnpq.br/5368323540973280 – https://orcid.org/0000-0003-0125-2587
Ivan Dieb Miziara (2)
http://lattes.cnpq.br/3120760745952876 – https://orcid.org/0000-0001-7180-8873
(1) Universidade de São Paulo, Departamento de Medicina Legal, Bioética, Medicina do Trabalho e Medicina Física e Reabilitação, São Paulo-SP, Brasil. (autor principal)
(2) Universidade de São Paulo, Departamento de Medicina Legal, Bioética, Medicina do Trabalho e Medicina Física e Reabilitação, São Paulo-SP, Brasil. (orientador) E-mail: orlando.moura@hc.fm.usp.br; ivan.miziara@usp.br
RESUMO
Introdução: No início da década de 1970, foi introduzido no arsenal militar um novo tipo de arma de fogo com formato e funcionamento idênticos aos que já vinham sendo empregados há séculos por forças de diversos países, porém agora alimentados com uma munição de borracha ou plástico, cujo emprego visava conter os alvos sem provocar danos letais. Até os dias atuais as armas de fogo com projéteis menos letais são empregadas por forças policiais. Objetivos: Este trabalho visa expor quais as características das lesões provocadas por este tipo de munição, quais as partes do corpo mais acometidas, além de averiguar quais as sequelas mais frequentes e se há risco de óbito no seu emprego. Método: Foi realizada uma revisão bibliográfica no PubMed e todos os artigos e relatos de caso envolvendo lesões em humanos vivos provocados por esse tipo de munição foram analisados. Resultados: 37 artigos foram incluídos no presente estudo e, somados, expuseram um total de 932 lesões, sendo que 612 puderam ser classificadas entre contusas ou perfuro-contusas. Discussão: Os disparos por munições menos letais, apesar de serem conhecidas como “munição não-letal”, podem resultar em morte ou graves comprometimentos de órgão, sentido ou função, principalmente quando atingem regiões mais sensíveis do corpo humano, como a face ou olhos. Conclusão: Das lesões que puderam ser classificadas, 60% foram contusas e 40% perfuro-contusas. A cabeça foi a região mais acometida. Os olhos representaram 32% do total de lesões, o que justifica a perda visual como sequela mais relatada. O risco de óbito existe, sendo que 26 pessoas morreram devido às lesões decorrentes dos tiros.
Palavras-Chave: Ferimentos por arma de fogo; Ferimentos não penetrantes; violência com arma de fogo
ABSTRACT
introduction: In the early 1970s, a new type of firearm was introduced into the military arsenal, with a format and function identical to those that had been used for centuries by forces from different countries, but now fed with rubber or plastic ammunition, whose use was intended to contain the targets without causing lethal damage. Until the present-day firearms with less lethal projectiles are used by police forces. objectives: This article aims to expose the characteristics of the injuries caused by this type of ammunition, which parts of the body are most affected, in addition to finding out which are the most frequent sequelae and whether there is a risk of death in its use. methods: A literature review was performed on PubMed and all articles and case reports involving injuries in live humans caused by this type of ammunition were analyzed. results: 37 articles were included in the present study and, together, they exposed a total of 932 injuries, of which 612 could be classified as simple blunt or perforated contusion. discussion: Shots by less-lethal ammunition, despite being known as «non-lethal ammunition», can result in death or serious impairment by damaging organs, sense or function, especially when they reach more sensitive regions of the human body, such as the face or eyes. conclusion: Of the injuries that could be classified, 60% were blunt and 40% perforated-contuse. The head was the most affected region. The eyes accounted for 32% of the total number of injuries, which justifies visual loss as the most frequently reported sequelae. The risk of death exists; 26 people died from gunshot wounds.
Keywords: Gunshot wounds; firearms; nonpenetrating wounds; blunt injuries.
1. INTRODUÇÃO
Em 1970 o Governo Britânico introduziu ao mundo militar um novo tipo de armamento: armas de fogo com munição composta por projéteis de borracha. Tal evento ocorreu no chamado Conflito na Irlanda do Norte, também conhecido como The Troubles, e eram parecidos com os que foram usados pela coroa inglesa em Hong Kong durante o final dos anos 60 para combater a revolta de trabalhadores. (1, 3, 4)
Inicialmente, o dispositivo media cerca de 19 centímetros e possuía um metal em seu centro para dar peso. Permitia que a polícia disparasse contra uma multidão mantendo certa distância, sem a utilização de munição convencional (e, portanto, provavelmente letal). Com peso de aproximadamente 140 a 200 gramas, o então novo projétil apesar de não letal podia causar sérios danos às suas vítimas, e foi o que houve: a estreia nas manifestações em Honk Kong deixou várias pessoas gravemente feridas e uma morta. (4)
Em 1970, os britânicos iniciaram o uso de um novo tipo de composição: um cilindro sólido com ponta romba, medindo cerca de 14 cm de comprimento por 3,8 cm de diâmetro, com um peso de 150 gramas. Capaz de ser projetado a uma velocidade de 70 metros por segundo (ou 257 km/hora). A nova ferramenta para controle de tumultos tinha a pretensão de não ser letal e, para tal, não deveria ser utilizada a uma distância menor que 22 metros, além de a mira ser direcionada para os membros inferiores de quem deveria ser contido.(4)
Assim como ocorreu com as munições tradicionais utilizadas em guerras ao longo da história, a munição não letal evoluiu e teve uma composição muito variada ao longo do tempo. Atualmente, os projéteis vulgarmente chamados de Balas de “borracha” são munições constituídas de elastômero (além do propelente e pólvora), fabricadas pela indústria bélica e empregadas por forças policiais comumente no controle de tumultos em multidões e protestos, com o intuito de serem menos danosas e letais do que as munições tradicionais de ação perfuro-contundente. As armas que deflagram tais munições têm as mesmas características e modo de ação das armas utilizadas para se deflagrar munições letais, isto é, contam com um mecanismo interno para que, após o acionamento do gatilho pelo operador, o percursor da arma choque-se contra a espoleta da munição provocando uma faísca, com conseguinte explosão da carga de pólvora. A pressão desta explosão empurra o projétil através do cano da arma a uma velocidade aproximada de 250 metros por segundo, fazendo-a percorrer um trajeto efetivo de 20 a 50 metros. Ressalta-se que, apesar das características gerais de funcionamento comum, atualmente mais de 75 tipos de munições não letais são fabricadas mundo à fora e, assim como ocorre com as munições tradicionais, há um espectro de características muito amplo para que as forças de segurança pública ou privada decidam qual será o projétil empregado em determinada atividade.(6, 7)
Diferente das munições letais, as munições não letais apresentam, teoricamente, uma ação apenas contundente. A expectativa para os ferimentos provocados por essas munições de borracha é a de que apenas danos superficiais ocorram, infringindo basicamente dor e lesões dermatológicas devido ao impacto em quem é atingido. Na prática, porém, lesões mais graves e até mesmo fatais podem advir de disparos inadvertidamente efetuados a distâncias inadequadas e em regiões específicas do organismo. Como é de se esperar em qualquer trauma, a localização do corpo acometida é um dos principais preditores de gravidade da lesão perpetrada por determinado instrumento. Assim sendo, os tiros com munições não letais quando efetuados em regiões mais sensíveis do corpo, como a região de face e cervical, podem provocar lesões graves e até mesmo fatais, especialmente se efetivados a distâncias muito curtas.(8, 9)
De acordo com o conceito médico legal, conforme descrito por Genival Veloso de França em seu livro “Medicina Legal”, as lesões mais comuns produzidas por ação contundente são vistas na superfície, apesar de poderem repercutir danos em profundidade (a exemplo das fraturas ósseas). Os objetos causadores deste tipo de lesão podem agir por pressão, explosão, deslizamento, percussão, compressão, descompressão, distensão, torção, fricção, por contragolpe ou de forma mista. Dentre as diversas possibilidades, algumas lesões contusas são: rubefação, escoriação, equimose, edema, hematoma etc. As lesões perfuro-contusas, por sua vez, apresentam um componente de perfuração (geralmente predominante) e de contusão, são lesões provocadas quase sempre por projéteis de armas de fogo.
Já no primeiro relato da literatura médica a respeito das lesões provocadas pelo uso das balas de borracha, publicado no British Medical Journal por J. Shaw em 1972, três casos de crianças com contusão pulmonar são descritos. Três pacientes apresentaram alteração radiológica imediatamente após o ocorrido, demonstrando lesão pulmonar, além de queixas respiratórias, como dispneia.(10)
Em um dos estudos pioneiros no tema e que analisou uma quantidade expressiva de pessoas vitimadas por disparos de munição não letal, R. Millar e colaboradores viram que em um grupo de 90 pessoas que foram atingidas, uma foi a óbito e 17 sofreram sequelas permanentes, além de que as lesões sofridas por 41 pessoas as levaram a serem admitidas para atendimento hospitalar.(5)
Diversos relatos na literatura de lesões graves provocadas por disparos com munição não letal direcionam nossa atenção para a necessidade de tais equipamentos serem empregados de forma extremamente técnica e consciente. É evidente que os armamentos equipados com munições de borracha têm menor potencial de causar lesões graves e fatais quando comparados com as armas de fogo tradicionais; de qualquer maneira, uma clara noção das lesões que elas provocam é essencial para que se possa estabelecer a forma correta de utilizá-las e em quais situações.
Este trabalho tem por objetivo expor as características das lesões provocadas por uso de armamento com munições chamadas “não letais”. Ou seja, expor quais as características das lesões provocadas por este tipo de munição, quais as partes do corpo mais acometidas, além de averiguar quais as sequelas mais frequentes e se há risco de óbito no seu emprego.
2. MATERIAL E MÉTODO
O estudo foi feito no Departamento de Medicina Legal, Ética Médica e Medicina Social e do Trabalho da Universidade de São Paulo através de uma revisão narrativa da literatura médica internacional.
No PubMed, foi realizada pesquisa de artigos científicos com os seguintes termos, associados com o booliano “OR”:
Rubber bullet; rubber ammunition; bean bag rounds; plastic ammunition; non lethal ammunition; less lethal ammunition; flexible baton round; plastic bullet; non lethal projectile; crowd control ammunition; rubber coated bullet.
Não foi estabelecido nenhum filtro temporal ou de idiomas.
Os resultados obtidos foram verificados em busca de títulos que contivessem qualquer um dos termos citados e os artigos, bem como os relatos de caso, que trazem descrição das lesões sofridas por vítimas de disparos com munição não letal foram lidos na íntegra e tiveram seus dados computados.
3. RESULTADOS
Após leitura de todos os títulos, 70 trabalhos selecionados estavam relacionados com o tema pesquisado e foram lidos na íntegra; destes, 37 foram incluídos no presente estudo por abordarem disparos com munição não letal contra seres humanos vivos e descreverem as lesões, nenhum destes artigos foi excluído posteriormente. Os demais não foram incluídos por estudarem disparos contra organismos não humanos, cadáveres ou simulacros (por exemplo, gel balístico).
A tabela a seguir sumariza os resultados obtidos com os estudos incluídos.
Estudo (Ref) | N de lesões | Tipo de lesão | Locais atingidos | Sequelas | Óbitos |
11 | 1 | perfurocontusa | Tórax lateral Esquerda | Nenhuma | 0 |
12 | 1 | Contusa | Olho Direito | Perda ocular | 0 |
13 | 182 | 69 Perfurocontusas 109 contusas | Olhos | Nenhuma: 69 Cegueira: 85 Perda leve: 11 Perda Mode:12 Perda Severa:5 | 0 |
15 | 101 | 9 Perfurocontusas 92 contusas | Olhos | 0 | |
16 | 3 | 2 Contusas 1 Perfurocontusa | 3 face, 1 olho | Perda ocular, Osteomielite | 0 |
17 | 1 | Perfurocontusa | Crânio | Perda de visão | 0 |
18 | 1 | Contusa | Fossa poplítea | Nenhuma | 0 |
19 | 3 | 3 Contusas | Tórax | Nenhuma | 0 |
20 | 6 | 5 contusas 1 Perfurocontusa | Tórax | Óbito | 1 |
21 | 1 | Contusa | Tórax | Óbito | 1 |
22 | 1 | Perfurocontusa | Face | Nenhuma | 0 |
23 | 17 | 3 Contusas 14 Perfurocontusas | 1 Pescoço 9 Crânio 1 Face 1 Olho 1 Tórax 1 Abdômen 3 costas | Óbito | 17 |
24 | 5 | 3 Contusa 2 Perfurocontusas | Olho | ||
25 | 6 | 6 Perfurocontusas | 2 Olho 1 Crânio 3 Face | 2 Perda ocular 1 Paralisia facial 6 grandes cicatrizes | 0 |
26 | 2 | Contusas | Tórax Braço | Nenhuma | 0 |
27 | 201 | 123 Contusas 78 Perfurocontusas | 27 Face 39 Tórax 35 MMSS 12 Abdômen 38 MMII* 34 Cabeça 16 Costas | 1 Psicose pós traumática 3 Cegueira 2 Obstrução intestinal por adesões | 3 |
28 | 1 | Perfurocontusas | Coxa | Nenhuma | 0 |
29 | 1 | Contusas | Olho | Diminuição acuidade visual | 0 |
30 | 28 | Perfurocontusas | 9 MMSS** 19 MMII* | 0 | |
31 | 95 | 51 Cabe/pesc 21 Tórax 4 abdômen 8 MMSS** 11 MMII* | 9 Cegueira 5 diminuição acuidade visual 4 Desfiguração em face 3 Anosmia 1 Rigidez articular 62 Nenhuma | 1 | |
32 | 10 | 7 contusas 3 Perfurocontusas | 6 Costas 1 Ombro 1 Tórax 1 Olho 1 abdomen | 0 | |
33 | 1 | Contusa | Tórax | 0 | |
34 | 3 | 2 Perfurocontusas 1 Contusa | 1 Olho 2 Face | Paralisia facial Perda de olho | 0 |
35 | 1 | 1 contusa | Olho | Nenhuma | 0 |
36 | 1 | 1 Perfurocontusa | Tórax | Nenhuma | 0 |
37 | 1 | Perfurocontusa | Tórax | Nenhuma | 0 |
38 | 189 | 49 face 41 crânio/pescoço 32 Tórax 12 abdômen 16 MMSS** 39 MMII* | |||
39 | 1 | Contusa | Tórax | NA | 0 |
40 | 1 | Perfurocontusa | Face | 1 | |
41 | 5 | 5 Contusas | Olho | 1 cegueira 2 diminuição acuidade visual | 0 |
42 | 3 | 3 contusas | 1 Abdomen 1 Coxa 1 tórax | Nenhuma | 0 |
43 | 35 | Sem detalhes | 28 MMII* 6 MMSS** 1 Cervical | Amputações | 0 |
44 | 3 | 3 contusas | 2 Face 1 Olho | 1 perda ocular 1 cegueira | 0 |
45 | 26 | 26 Perfurocontusas | Tórax | 2 |
*MMII – Membros inferiores
**MMSS – Membros superiore
No total, os estudos apresentam 932 lesões, sendo que podemos dividi-las em 367 contusas, 245 perfuro-contusas e 320 não classificadas. Dentre as partes do corpo mais atingidas, sumarizamos os segmentos anatômios mais impactados da seguinte maneira, com a ressalva de os olhos serem apresentados em separado das lesões de “cabeça e pescoço”:
Tronco: 193 lesões (20,7%)
Membros: 214 lesões (23%)
Cabeça e pescoço: 226 lesões (24,2%)
Olhos: 299 lesões (32%)
A sequela mais frequentemente relatada foi a perda visual completa, com 105 casos, acompanhada ou não de perda do globo ocular. Além disso, houve a contabilização de 26 óbitos.
A figura a seguir mostra de forma simplificada a distribuição das lesões no corpo humano:

4. DISCUSSÃO
As munições não letais surgiram como uma forma de atenuar as lesões provocadas pela atividade policial nos embates contra a população em manifestações e protestos. Muitos aspectos precisam ser discutidos a respeito de seu uso, pois esses projéteis podem nitidamente ser encarados como armamentos capazes de causar graves lesões e a morte das pessoas vitimadas por seus disparos.
Há de se levar em consideração o contexto e a necessidade situacional em que se encontram as forças policiais quando lançam mão de tais armamentos. As armas de fogo apresentam potencial letal até mesmo quando alimentadas com as “balas de borracha”, ou “munição não letal”. Porém, há de se considerar que a sua utilização se faz num contexto operacional de segurança pública em que o uso da força é necessário, permitindo que os policiais possam combater à distância, sem empregarem as clássicas munições que, certamente, seriam mais danosas e letais do que as munições menos letais. Por conta disto, os autores deste trabalho limitam-se a apresentar e discutir apenas aspectos médico-legais do emprego desta nova munição, sem entrar no mérito operacional, sem discutir qual munição ou armamento deve ser utilizada em determinada situação. A discussão do correto tipo de armamento utilizado em determinado combate cabe aos especialistas neste tema, porém, cabe aos profissionais de saúde, especialmente aos especialistas em Medicina Legal, auxiliar nestas análises fornecendo informações do ponto de vista médico sobre o que esperar do resultado no corpo humano impactado por determinado tipo de método ou objeto de combate.
Justamente por causa da capacidade que as munições menos letais têm de levar suas vítimas a óbito, é necessária uma breve reflexão a respeito da sua terminologia. O termo “munição menos letal” soa mais adequado levando-se em conta que essas munições podem sim, conforme visto nos resultados deste estudo, obter êxito letal. É difícil de classificar como absolutamente não letal, ou letal, qualquer objeto utilizado para provocar uma lesão, pois muitos aspectos influenciam na consequência que terá determinada agressão. Apesar de improvável, golpes com relativamente baixa energia cinética também podem ser letais, como socos, por exemplo. Ou, ainda, massas muito pequenas, como a de um chumbinho utilizado nas armas de pressão, também podem causar danos fatais se atingirem regiões corporais mais frágeis. Neste trabalho, utilizamo-nos das diversas formas de se referir a este tipo de projétil, dada a variedade com que se apresentam nos trabalhos científicos ou no uso consagrado pela prática, além de evitar a repetição textual de um mesmo termo. Porém, entende-se que devido à capacidade que as munições de borracha tem de lograr êxito letal, o termo técnico mais adequado para este tipo de munição seria “munição menos letal”. International law and law enforcement firearms:
Um outro aspecto importante que não se pode deixar de avaliar é a evolução que as munições menos letais sofreram. Isso deve que ser levado em consideração porque incialmente a munição de borracha era composta por um “core” de metal, isto é, possuíam um centro de massa mais pesado e rígido, diferente da composição atual de elastômero que as munições apresentam.
Desde a sua introdução, nos anos de 1970, ela vem sofrendo modificações que visaram tornar mais eficiente suas características balísticas. Logo após surgirem essas munições, a indústria começou a produção de unidades em plástico, inicialmente em polietileno e posteriormente em poliuretano. Em 1994, uma nova modificação trouxe um design diferente aos projéteis, tornando-os mais aerodinâmicos e estáveis aos disparos. Em 1997, houve uma melhora no controle de qualidade dos órgãos regulamentadores, e em seguida, em 1999, houve uma revisão, no Reino Unido, dos protocolos de utilização desse tipo de armamento pelas unidades policiais. (3, 46)
A melhora nas qualidades balísticas da munição foi importante para que a trajetória do projétil fosse mais acurada e, aliada a um bom sistema de pontaria e um operador treinado, houvesse uma menor probabilidade de que partes indesejáveis do corpo humano fossem atingidas. Uma ressalva importante consiste no fato de que esses armamentos devem ser utilizados respeitando-se algumas regras para que não causem lesões graves, como distância de disparo e o local do corpo atingido. Entretanto, numa situação real de conflito e caos social é esperado que os operadores deste tipo de armamento consigam respeitar tais restrições e garantir que os disparos sejam efetuados de forma “segura”?
Diferente do que se espera das munições tradicionais, de chumbo, as munições de borracha teoricamente tem uma ação apenas contundente, e não perfuro-contundente, criando a expectativa de que suas consequências sejam mínimas ou que, pelo menos, não causem grandes lesões.
Os resultados desta revisão, porém, mostram que diversos são os relatos de casos e artigos trazendo a público o potencial que esse armamento tem de causar lesões graves, conforme se observa no resumo apresentado junto à Tabela 1. Foram identificados nas publicações pelo menos 245 lesões com características perfuro-contusas.
Uma limitação do nosso estudo consiste no fato de que muito provavelmente o que estamos constatando em termos epidemiológicos seja composto justamente pelos casos em que o emprego da munição não letal tenha se dado de maneira inadequada. Isto é, nas situações em que o armamento foi empregado de forma adequada – quando os disparos foram feitos a distâncias maiores, atingindo apenas os membros e causando lesões contusas – não houve motivação para procura de atendimento hospitalar, ou, ainda, não resultaram em lesões dignas de publicações ou relatos de caso. Por outro lado, nos casos em que os disparos atingiram região de face e, especialmente, olhos, muito dificilmente as vítimas deixariam de procurar atendimento médico, visto a sensibilidade da região e a susceptibilidade a maiores danos. Diversos foram os relatos em que os olhos foram atingidos pelos disparos e frequentemente a consequência foi a perda da visão devido a rotura de globo ocular, além de fratura na órbita ou até mesmo penetração do projétil para o interior do crânio devido a maior fragilidade das estruturas ósseas no fundo orbitário.
O estudo representa um forte embasamento para o alerta a respeito da periculosidade que o emprego deste tipo de armamento pode representar quando utilizado por mãos despreparadas ou mal-intencionadas. Apesar da terminologia consagrada, as “munições não letais” têm plena capacidade de matar ou, pelo menos, causar graves lesões, acometendo órgãos, sentido ou função do corpo humano. Os relatos da literatura médica a respeito das intervenções assistenciais muitas vezes necessárias para reparar ou conter danos graves provocados por este tipo de armamento deixam claro que algumas regras de segurança devem ser respeitadas, principalmente no que diz respeito ao local do corpo atingido, visto que quando áreas sensíveis são atingidas o risco de desfechos desastrosos fica muito mais pronunciado.
Qualquer disparo de arma de fogo ao atingir uma pessoa resultará em uma agressão que poderá ter consequências variadas, incluindo o óbito, e mesmo este não seja o objetivo do operador, ele deve estar ciente desta real possibilidade ao executar a ação.
5. CONCLUSÃO
No total, o estudo considerou 932 lesões e evidenciou que, das que puderam ser classificadas em contusas ou perfuro-contusas (612 lesões), 60% foram lesões contusas e 40% perfuro-contusas.
Em termos anatômicos, a cabeça foi a região mais acometida, com aproximadamente 56% dos ferimentos. Ao se considerar as lesões provocadas nos olhos separadamente das provocadas no restante da cabeça, os olhos, cujas lesões mais resultam em sequelas, representam 32% do total de lesões, seguidos por cabeça e pescoço (24,2% das lesões), membros (23%) e tronco (20,7%).
Apesar dos relatos de amputações e grandes cicatrizes, a sequela mais frequentemente relatada foi a perda visual, com 105 casos.
O risco de óbito existe, sendo que 26 pessoas morreram devido às lesões decorrentes de tiros por munição menos letal. Levando-se em conta apenas os casos descritos nos estudos incluídos neste trabalho, tal número pode ser traduzido como um óbito para cada 35 ferimentos por disparo deste tipo de armamento.
Referencias bibliográficas
- Domingues MO, Pina ME. As Primeiras Lesões por Armas de Fogo – novo paradigma para o cirurgião militar – Ambroise Paré. Revista Portuguesa de Cirurgia [Internet]. 2012 Dec 31 [cited 2023 Mar 1];0(23):77–84. Disponível em: http://revista.spcir.com/index.php/spcir/article/view/29
- Coêlho BF. Histórico da medicina legal. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo [Internet]. 2010 Jan 1 [cited 2023 Mar 1];105:355–62. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67905
- Chaves de Carvalho J. Evolução das armas de fogo. Def. Nac. [Internet]. 15º de junho de 2020 [citado 1º de março de 2023];51(603). Disponível em: http://www.ebrevistas.eb.mil.br/ADN/article/view/4941
- Metress EK, Metress SP. The Anatomy of Plastic Bullet Damage and Crowd Control. International Journal of Health Services. 1987 Apr;17(2):333–42.
- Millar R, Rutherford WH, Johnston S, Malhotra VJ. Injuries caused by rubber bullets: A report on 90 patients. British Journal of Surgery. 1975 Jun [citado 25 jul 2021]; 62(6):480-6. Disponível em: https://doi.org/10.1002/bjs.1800620613
- Libya Main Armed Groups. 2013. Africa Research Bulletin: Political, Social and Cultural Series, 50(11), 19925B—19925C. 2015. [citado 25 jul 2021]. Global Non-Lethal Weapons Market 2015-2019. Disponível em http://www.reportlinker.com/p01911331-summary/Global-Non-lethal-Weapons-Market.html
- Techinavio 2015. Global Non-Lethal Weapons Market 2015-2019. Disponível em http://www.reportlinker.com/p01911331-summary/Global-Non-lethal-Weapons-Market.
- Haar RJ, Iacopino V, Ranadive N, et al. Death, injury and disability from kinetic impact projectiles in crowd-control settings: a systematic review. 2017. [citado 25 jul 2021] 7:e018154. Disponível em https://bmjopen.bmj.com/content/7/12/e018154
- Paulo Sérgio, P. M. Bala de Borracha. Repositório institucional da UFSC [Internet]. 2015. [citado 25 jul 2021]. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/134575/baladeborracha.comautor.pdf?Sequence=1
- Shaw J. Pulmonary contusion in children due to rubber bullet injuries. Br Med J. 1972 Dec 30 [citado 25 jul 2021]. 4(5843):764-6. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1787057/
- Marrufo AS, Boyd WD, Leshikar DE. Minimally invasive surgical management of penetrating chest injury from kinetic impact bean bag projectile. Trauma Case Reports. 2019 Aug;22:100210.
- Ifantides C, Deitz GA, Christopher KL, Slingsby TJ, Subramanian PS. Less-Lethal Weapons Resulting in Ophthalmic Injuries: A Review and Recent Example of Eye Trauma. Ophthalmology and Therapy. 2020 Aug 5;9(3):1–7.
- Rodríguez Á, Peña S, Cavieres I, Vergara MJ, Pérez M, Campos M, et al. Ocular trauma by kinetic impact projectiles during civil unrest in Chile. Eye. 2020 Aug 24;
- Elder MJ. Penetrating eye injuries in children of the West Bank and Gaza Strip. Eye 1993; 7: 429–432.
- Lavy T, Asleh SA. Ocular rubber bullet injuries. Eye. 2003 Oct;17(7):821–4.
- Amaral MBF, Bueno SC, Abdala IB, da Silveira RL. Facial fractures caused by less-lethal rubber bullet weapons: case series report and literature review. Oral and Maxillofacial Surgery. 2017 May 5;21(3):357–61.
- Amelot A, Goutagny S, Ricome S, Peyre M. Penetrating craniocerebral injury caused by a rubber bullet questions the relative harmlessness of these weapons. The American Journal of Emergency Medicine. 2013 Mar;31(3):636.e5–7.
- Best BG, Barros D’Sa AAB. Popliteal vessel injury caused by a plastic bullet. Injury. 1987 Nov;18(6):428–9.
- Shaw J. Pulmonary Contusion in Children due to Rubber Bullet Injuries. BMJ. 1972 Dec 30;4(5843):764–6.
- Czeslaw Chowaniec et al. Case study of fatal gunshot wounds from non-lethal projectiles. Forensic Science International 178 (2008) 213–217.
- Contargyris C, Peytel E. Commotio cordis après impact précordial de Flashball®. Annales Françaises d’Anesthésie et de Réanimation. 2012 May;31(5):469–71.
- Gonzalez SR, Loomba V, Obi-Osuagwu O, Al-Nowaylati A-R, Rahgozar P. Severe Craniofacial Morbidity from a Bean Bag Projectile. Plastic and Reconstructive Surgery – Global Open. 2021 May;9(5):e3589.
- Hiss J, Hellman FN, Kahana T. Rubber and Plastic Ammunition Lethal Injuries: The Israeli Experience. Medicine, Science and the Law. 1997 Apr;37(2):139–44.
- Khan S, Maqbool A, Abdullah N, Keng MQ. Pattern of ocular injuries in stone pelters in Kashmir valley. Saudi Journal of Ophthalmology [Internet]. 2012 Jul 1 [cited 2023 Mar 1];26(3):327–30. Available from: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S131945341200063X
- Khonsari RH, Fleuridas G, Arzul L, Lefèvre F, Vincent C, Bertolus C. Severe facial rubber bullet injuries: Less lethal but extremely harmful weapons. Injury. 2010 Jan;41(1):73–6.
- Kobayashi M, Mellen PF. Rubber Bullet Injury. American Journal of Forensic Medicine & Pathology. 2009 Sep;30(3):262–7.
- Mahajna A, Aboud N, Harbaji I, Agbaria A, Lankovsky Z, Michaelson M, et al. Blunt and penetrating injuries caused by rubber bullets during the Israeli-Arab conflict in October, 2000: a retrospective study. The Lancet. 2002 May;359(9320):1795–800.
- Biagioni RB, Miranda GC, Mota de Moraes L, Nasser F, Burihan MC, Ingrund JC. Femoral vessel injury by a nonlethal weapon projectile. Journal of Vascular Surgery Cases, Innovations and Techniques. 2018 Jun;4(2):175–7.
- Kim HJ, Ali S, Kelly LD. Ocular foam round injury: A case report and literature review. American Journal of Ophthalmology Case Reports. 2021 Sep;23:101149.
- Dhar SA, Dar TA, Wani SA, Maajid S, Bhat JA, Mir NA, et al. Pattern of rubber bullet injuries in the lower limbs: A report from Kashmir. Chinese Journal of Traumatology. 2016 Jun;19(3):129–33.
- Millar R, Rutherford WH, Johnston S, Malhotra VJ. Injuries caused by rubber bullets: A report on 90 patients. British Journal of Surgery. 1975 Jun;62(6):480–6.
- Missliwetz J, Lindermann A. Gunshot Wounds Caused by Fiocchi Anticrime Cartridges (Plastic Bullets). The American Journal of Forensic Medicine and Pathology [Internet]. 1991 Sep 1 [cited 2023 Mar 1];12(3):209. Available from: https://journals.lww.com/amjforensicmedicine/abstract/1991/09000/gunshot_wounds_caused_by_fiocchi_anticrime.8.aspx
- Noel A, Castellant P, Gilard M, Mansourati J. Acute myocardial infarction due to left anterior descending coronary artery dissection after rubber bullet shooting. International Journal of Cardiology. 2015 Apr;184:653–4.
- Phillips JG. Plastic bullet injury: A case report. British Journal of Oral Surgery [Internet]. 1977 Mar 1 [cited 2023 Mar 1];14(3):199–202. Available from: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/0007117X7790021X
- Barnes AC, Hudson LE, Jain N. Rubber Bullet Ocular Trauma. Ophthalmology. 2020 Sep;127(9):1190.
- Rezende-Neto J, Silva FD, Porto LB, Teixeira LC, Tien H, Rizoli SB. Penetrating injury to the chest by an attenuated energy projectile: a case report and literature review of thoracic injuries caused by “less-lethal” munitions. World Journal of Emergency Surgery. 2009;4(1):26.
- Guenther TM, Gustafson JD, Wozniak CJ, Zakaluzny SA, Utter GH. Penetrating thoracic injury from a bean bag round complicated by development of post-operative empyema. Journal of Surgical Case Reports. 2020 Apr 1;2020(4).
- Rocke L. Injuries caused by plastic bullets compared with those caused by rubber bullets. The Lancet. 1983 Apr;321(8330):919–20.
- Soulat G, Puymirat E, Mousseaux E. Blunt Cardiac Injuries Due to Rubber Bullets. Circulation: Cardiovascular Imaging. 2020 Oct;13(10).
- Guérant M, Vaz M-A, Peoc’h M, Gaillard Y, Boyer B. Suicidal shot in the mouth with rubber bullets. Legal Medicine. 2018 May;32:52–6.
- Sutter FKP. Ocular injuries caused by plastic bullet shotguns in Switzerland. Injury. 2004 Oct;35(10):963–7.
- Wahl P, Schreyer N, Yersin B. Injury pattern of the Flash-Ball®, a less-lethal weapon used for law enforcement: Report of two cases and review of the literature. The Journal of Emergency Medicine. 2006 Oct;31(3):325–30.
- Wani ML, Wani S, Singh S, Ahangar A, Ganie F, Lone G, et al. Pattern, presentation and management of vascular injuries due to pellets and rubber bullets in a conflict zone. Journal of Emergencies, Trauma, and Shock [Internet]. 2013 [cited 2020 Jun 9];6(3):155. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/23960369/
- Whitlock RIH, Gorman JM. Some missile injuries due to civil unrest in Northern Ireland. International Journal of Oral Surgery. 1978 Aug;7(4):240–5.
- Yellin A, Golan M, Klein E, Avigad I, Rosenman J, Lieberman Y. Penetrating thoracic wounds caused by plastic bullets. The Journal of Thoracic and Cardiovascular Surgery [Internet]. 1992 Feb 1 [cited 2023 Mar 1];103(2):381–5. Available from: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0022522319350421
- Burrows C. Operationalizing non‐lethality: A northern ireland perspective*. Medicine, Conflict and Survival. 2001 Jul;17(3):260–71.