Artigo aprovado para apresentação na Conferência Internacional de Ciências Forenses (Interforensics 2023), na modalidade pôster. A autora informa não haver conflito de interesse.
WEAKNESSES IN UNDERSTANDING THE TYPIFICATION OF SEX CRIMES AND ITS REFLECTIONS ON NOTIFICATIONS OF VULNERABLE RAPE
Flávia Danielle Amaral de Brito (1)
http://lattes.cnpq.br/8175619949253201 – https://orcid.org/0000-0001-7511-473X
(1) Polícia Científica do Paraná, Unidade de Execução Técnico-Científica de Francisco Beltrão, Departamento de Medicina Legal, Francisco Beltrão-PR, Brasil. (autor principal)
Email: flavia.amaral@policiacientifica.pr.gov.br
RESUMO
Introdução: Lacunas no entendimento da tipificação penal dos crimes sexuais pelos profissionais de saúde podem comprometer a notificação dessas ocorrências, distanciando os registros epidemiológicos oficiais e a realidade. Objetivo: Analisar o entendimento da natureza penal das condutas sexuais envolvendo menores de 14 anos de idade na área de abrangência da 8ª Regional de Saúde do Paraná (8ª RS/PR) pelos profissionais do nível assistencial, bem como suas repercussões. Material e Método: Análise comparativa entre as verificações de violência sexual executadas pela Unidade de Execução Técnico-Científica de Francisco Beltrão (UETC-FB) e os registros do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), obtidos via levantamento das notificações de violência interpessoal/autoprovocada no ano de 2021. Resultados: Em 2021, a UETC-FB executou 102 exames em menores de 14 anos, contra 73 ocorrências reconhecidas como violência sexual, 45 ocorrências reconhecidas como estupro e 10 ocorrências reconhecidas como exploração sexual notificadas no SINAN, além de 39 notificações reconhecidas como assédio sexual. O perfil epidemiológico das vítimas foi similar em ambas as bases de pesquisa, corroborando os dados da literatura. Discussão: Os resultados evidenciam fragilidades na distinção entre as condutas delitivas sexuais por parte dos profissionais do nível assistencial, mesmo quando diretamente envolvidos no cuidado à pessoa em situação de violência sexual, impactando nas notificações de estupro de vulnerável. Conclusão: Os objetivos da pesquisa foram atingidos e sinalizam urgência de aprofundamento intersetorial no tema, a fim de qualificar a notificação da violência e, sobretudo, de ampliar a eficácia das ações preventivas e protetivas.
Palavras-chave: estupro de vulnerável, código penal, violência sexual, medicina legal, perícia forense.
ABSTRACT
Introduction: Gaps in the understanding of the criminal classification of sexual crimes by health professionals can compromise the reporting of these occurrences, distancing official epidemiological records and reality. Material and Method: Comparative analysis between sexual violence checks carried out by the Technical-Scientific Execution Unit of Francisco Beltrão (UETC-FB) and records from the Notifiable Diseases Information System (SINAN), obtained via a survey of violence notifications interpersonal/self-inflicted in 2021. Results: In 2021, UETC-FB carried out 102 exams on children under 14 years of age, against 73 incidents recognized as sexual violence, 45 incidents recognized as rape and 10 incidents recognized as sexual exploitation reported on SINAN, in addition to 39 notifications recognized as sexual harassment. The epidemiological profile of the victims was similar in both research bases, corroborating data from the literature. Discussion: The results highlight weaknesses in the distinction between sexual criminal conduct by professionals at the care level, even when directly involved in caring for people in situations of sexual violence, impacting notifications of rape of vulnerable people. Conclusion: The research objectives were achieved and sign the urgency of intersectoral deepening of the topic, in order to qualify the notification of violence and, above all, to increase the effectiveness of preventive and protective actions.
Keywords: rape of vulnerable, penal code, sexual violence, legal medicine, forensic expertise.
1. INTRODUÇÃO
A violência sexual é um crime contra a dignidade da pessoa humana. O direito à dignidade, à segurança e à incolumidade é assegurado pela Constituição Federal de 1988 (1), estando também salvaguardado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (2) em se tratando de menores de idade. As violações a esse direito são tipificadas pelo Código Penal Brasileiro (3), que vem, ao longo dos anos, sendo objeto de diversas alterações a fim de adequar o instrumento legal à realidade contemporânea.
Recentemente, inúmeras nações tem se empenhado em uma agenda global de combate à violência em suas múltiplas formas. Nesse painel, a violência contra crianças e adolescentes tem sido objeto de atenção crescente, bem como de investimentos proporcionais tanto no campo da tecnologia em segurança pública quanto na formação de recursos humanos capacitados para o reconhecimento das ocorrências de violação dos direitos dessa população, entre as quais se destacam as ofensas contra a dignidade sexual.
A par da criminalização das condutas relativas à exploração sexual de crianças e adolescentes de modo geral, novas tipificações vieram reforçar a opção do Estado brasileiro – na linha de similar esforço mundial – de combater todo tipo de violência, sobretudo a sexual, contra crianças e adolescentes.
1.1. EVOLUÇÃO DOUTRINÁRIA
Após reformas penais de menor grandeza, como a da Lei n. 10.764/2003 – a qual alterou o art. 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que trata do crime de produção e divulgação de imagens de menores em cenas de sexo explícito) (4) – a Lei n. 11.829/2008 efetuou importante alteração na Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, “para aprimorar o combate à produção, venda e distribuição de pornografia infantil, bem como criminalizar a aquisição e a posse de tal material e outras condutas relacionadas à pedofilia na internet” (5). Outra importantíssima alteração legislativa a destacar, ocorrida no Código Penal por meio da Lei n. 12.015/2009, baniu a possibilidade de relativizar a presunção de violência do antigo artigo 224 do Código Penal, ao inovar, em técnica legislativa, o tratamento jurídico penal dos “crimes contra os costumes”, que passaram a se denominar “crimes contra a dignidade sexual”, prevendo-se, como “estupro de vulnerável”, na letra do art. 217-A, a conduta de “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”(6). Registre-se, ainda, a recente edição da Lei n. 12.978, de 21 de maio de 2014, que acrescentou inciso ao art. 1º da Lei n. 8.072/1990, para classificar como hediondo o crime de favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (7). Esse lento, porém, constante, progresso rumo à proteção integral da criança e do adolescente não se deu aleatoriamente; ao contrário, é justamente por se estar caminhando em direção a uma sociedade cada vez mais atenta à formação e ao desenvolvimento psíquico e emocional saudável dos futuros adultos que o Direito, como braço jurídico do Estado, constrói todo esse complexo normativo.
A figura do crime de estupro contra vulnerável veda a prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos, sob pena de reclusão de 8 a 15 anos (6). No § 1º do mesmo artigo, a condição de vulnerável é entendida para as pessoas a quem falta o necessário discernimento para a prática do ato, devido a enfermidade ou deficiência mental, ou que por algum motivo não possam se defender. Antes da Lei 12.015/09, havia dois delitos: o de estupro, no art. 213, e o de atentado violento ao pudor, no art. 214. Em ambos, o meio de execução era a violência ou grave ameaça, admitindo a presunção de violência ainda que o agente não empregasse violência real contra a vítima em virtude da idade dela. Por repousar em frágil alicerce, o termo presunção levava a inevitáveis questionamentos a respeito da existência ou não do consentimento, do histórico sexual da vítima e de um eventual envolvimento afetivo entre esta e o autor; com o advento da Lei 12.015/09, qualquer discussão nesse sentido foi encerrada, pois o critério idade passa a ser objetivo (8). Note-se, da redação do artigo, que a prática de atos libidinosos diversos da conjunção carnal contra vulnerável constitui a consumação do delito de estupro de vulnerável, não admitindo, sob o fundamento de aplicação do princípio da proporcionalidade, relativizações ou desclassificação do delito para a forma tentada em razão de suposta menor gravidade da conduta. Por fim, o § 3º e § 4º do artigo 217-A preveem aumento de pena quando o estupro contra vulnerável resulte em lesão corporal e morte, penas de 10 a 20 e 12 a 30 anos de reclusão, respectivamente (9).
De acordo com a classificação doutrinária, o estupro de vulnerável consiste em crime comum, material, de forma livre, instantâneo, comissivo, unissubjetivo e plurissubsistente. O objeto jurídico é a dignidade sexual do vulnerável, e não sua liberdade sexual, uma vez que, neste crime, não se discute se a vítima consentiu ou não com o ato sexual (8). A Súmula 593 do Superior Tribunal de Justiça – STJ (10) prevê que, para a configuração do delito de estupro de vulnerável, são irrelevantes a experiência sexual ou o consentimento da vítima menor de 14 anos, bastando que o agente tenha conhecimento de que a vítima é menor de 14 anos de idade e decida com ela manter conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso. A literalidade da Lei Penal em vigor denota clara intenção do Legislador de proteger a dignidade sexual do menor de catorze anos, infligindo um dever geral de abstenção, porquanto se trata de pessoa que ainda não atingiu a maturidade necessária para assumir todas as consequências de suas ações, levando em especial consideração seu incompleto desenvolvimento físico e psíquico para impor um limite objetivo para o reconhecimento da voluntariedade do ato sexual.
A Lei 10.224, de 15 de maio de 2001, acrescentou um artigo (o Art. 216-A) ao Código Penal para definir o crime de assédio sexual como o de “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função” (11). A importunação sexual, por sua vez, é caracterizada por qualquer ato libidinoso praticado contra alguém sem sua anuência para satisfazer o próprio prazer ou de terceiros, situações que, até setembro de 2018, eram caracterizadas por “importunação ofensiva ao pudor” e não eram consideradas crimes, mas uma contravenção penal – o que não previa a manutenção da prisão por ter menor potencial ofensivo. A Lei nº 13.718 entrou em vigor naquele mês e alterou o Código Penal, estabelecendo o crime de importunação sexual ao acrescer o artigo 215-A (12) – o qual difere do crime do estupro por não requerer emprego de violência ou grave ameaça.
1.2. VIOLÊNCIA COMO AGRAVO DE NOTIFICAÇÃO COMPULSÓRIA
Todas as violências passaram a fazer parte da Lista Nacional das Doenças e Agravos de Notificação Compulsória desde a publicação da Portaria nº 104 de 25 de Janeiro de 2011 (13). Portanto, a notificação dos casos suspeitos e confirmados de violência é obrigatória/compulsória a todos os profissionais de saúde de instituições públicas ou privadas, sento efetuada através do preenchimento da Ficha de Notificação Interpessoal/ Autoprovocada – documento que deve conter os dados sobre o agravo, unidade notificadora, variáveis relacionadas ao paciente (nome, sexo, idade, escolaridade, entre outros) e dados de residência. As notificações deve ser encaminhadas aos serviços responsáveis pela informação ou e/ou vigilância epidemiológica das secretarias municipais de saúde, que devem repassar semanalmente os arquivos em meio magnético para as Secretarias Estaduais a fim de alimentar o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) (14) – compondo um banco de dados essencial para o entendimento de como essas violências se processam em cada localidade do território brasileiro, para a compreensão da vitimologia, para a análise das características dos perpetradores e para a elaboração de políticas públicas eficazes, voltadas à prevenção, proteção e instrução da população vulnerável, bem como de seus cuidadores.
No estado do Paraná, protocolos de cooperação técnica entre as Secretarias de Saúde e de Segurança Pública vem sendo progressivamente implementados a fim de assegurar, às vítimas, qualidade, agilidade e humanização do cuidado (15). A Polícia Científica – órgão central de perícia oficial de natureza criminal, unidade de execução programática da Secretaria de Estado da Segurança Pública – SESP, integrante operacional do Sistema Único de Segurança Pública – SUSP nos termos da Lei Federal nº 13.675, de 11 de junho de 2018 – tem como finalidade exercer com exclusividade as Perícias Oficiais de Natureza Criminal em todo o estado, ressalvada a competência da União (16). É descentralizada em 19 Unidades de Execução Técnico-Científica (UETC); A UETC de Francisco Beltrão (UETC-FB) até 2021, atendia 28 municípios do sudoeste do Paraná e, dentro desta área de abrangência, as verificações de violência sexual ocorridas em até 72 horas e com indicação de profilaxia pós-exposição (PEP) são realizadas no Hospital Regional do Sudoeste Walter Alberto Pécoits, enquanto as situações passadas há mais de 72 horas, bem como aquelas decorridas em período de tempo inferior, porém sem indicação de PEP, são atendidas nas dependências da UETC-FB (17).
O abuso sexual infantil é considerado importante fator de risco para vários problemas de saúde na infância e na vida adulta, que impactam sobremaneira a saúde física e principalmente psicológica das vítimas, demandando também ônus substancial ao sistema de saúde. Estimar sua prevalência é fundamental para determinar a extensão do problema e possíveis intervenções, sendo a organização da notificação desse agravo imprescindível para uma atenção integral às pessoas em situação de violência. Devido à inclusão relativamente recente dos dados referentes à violência sexual no Sistema de Informação de Agravos de Notificação como via de universalização da vigilância contínua, utilizá-lo de forma sistemática é a melhor forma de avaliá-lo e melhorá-lo. Contudo, as lacunas no entendimento da tipificação penal dos crimes sexuais pelos profissionais da linha de frente na assistência às vítimas podem constituir um importante viés na fidedignidade da notificação de tais ocorrências, amplificando a distância entre os registros epidemiológicos oficiais e a realidade.
1.3. A IMPORTÂNCIA DA CLAREZA CONCEITUAL PARA O COMBATE AO ABUSO SEXUAL CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE
A comunicação tem papel crítico nos esforços para asseverar, proteger e implementar a dignidade sexual da criança e do adolescente. As recentes mudanças nos termos existentes podem induzir confusão ou incompreensão e obstacular a prevenção eficaz e a identificação do abuso sexual contra menores, reinvindicando estratégias a fim de que a assimilação das transformações terminológicas ocorra de forma coletiva, uniforme e adequadamente subsidiada. Nessa direção, é imprescindível um diálogo multilateral que envolva as vozes de uma multiplicidade de intervenientes em todos os níveis, moldando um entendimento comum, cada vez mais importante no esforço global para erradicar tais violações de direitos.
Desta forma, o presente estudo possui, como objetivo geral, mensurar a confiabilidade dos registros epidemiológicos de estupro de vulnerável envolvendo menores de 14 anos de idade na área de abrangência da 8ª Regional de Saúde do Estado do Paraná (8ª RS/PR) – tendo, como objetivos específicos, proporcionar a análise comparativa entre os registros do Sistema de Informações de Agravos de Notificação e os exames forenses realizados no mesmo ano pela Polícia Científica do Paraná, Unidade de Execução Técnico-Científica de Francisco Beltrão (UETC-FB); avaliar a compreensão da normatividade penal relacionada às condutas delitivas do espectro das agressões sexuais pelos profissionais da assistência; identificar as vulnerabilidades no preenchimento das notificações; proporcionar reflexões sobre as causas e consequências das fragilidades observadas; e apresentar estratégias de enfrentamento capazes de impactar positivamente na qualidade das informações epidemiológicas.
2. MATERIAL E MÉTODO
Pesquisa aplicada, exploratória, qualitativa, pós-positivista/ interpretativista, retrospectiva, através de análise comparativa entre os exames de verificação de violência sexual executadas pela UETC-FB em menores de 14 anos de idade e os registros do SINAN, obtidos através do levantamento das notificações de violência interpessoal/ autoprovocada no ano de 2021. As notificações de violência sexual foram compiladas a partir de levantamento no portal DATASUS, no período de janeiro a dezembro de 2021, utilizando as variáveis data, sexo, idade, natureza da violência informada, nível de proximidade do abusador e sexo do abusador. A revisão dos laudos de exames de verificação de violência sexual do serviço de Clínica Médico-Legal da UETC-FB, acautelados em arquivo digital da instituição, foi autorizada pela chefia da unidade, tendo sido revistos 146 laudos de mulheres, crianças e adolescentes, de janeiro a dezembro de 2021. Compilaram-se os seguintes itens: data, sexo, idade, tipo de exame, sexo do agressor e histórico alegado pela vítima (relação vítimas/agressores), reduzindo-se a amostra final a 102 casos.
Foram estabelecidos como critérios de inclusão: violência notificada na área de abrangência da 8ª RS/PR; idade até 14 anos; ausência de deficiência intelectual, transtorno mental, restrição ao leito ou outra condição médica que determinasse rebaixamento de nível de consciência ou déficit cognitivo; exame de verificação de violência sexual realizado por perito médico legista integrante do quadro de servidores da UETC-FB. Não obstante a definição atual de estupro de vulnerável incluir maiores de 14 anos absoluta ou relativamente incapazes para o consentimento, este grupo de examinandos não foi objeto do presente estudo. A análise do perfil sócio-econômico-cultural dos indivíduos examinados não foi contemplada devido a consistir em variável não informada nos boletins de ocorrência e nos laudos periciais. A fim de evitar um possível viés, a variável raça/ cor não foi selecionada visto o perfil étnico populacional ser predominantemente branco. Em respeito ao sigilo na tramitação legal e à ética, os periciados não foram identificados.
A análise das variáveis deu-se a partir da catalogação dos dados disponíveis em cada uma das bases de pesquisa; o processo de seleção objetivou proporcionar compreensão da vitimologia e elucidar de que forma a violência sexual é reconhecida e nomeada pelo profissional de saúde, motivo pelo qual preteriu-se o aprofundamento estatístico. Os resultados foram apresentados na forma de tabelas e gráficos e correlacionados com os dados da literatura científica obtidos a partir da leitura de livros-textos, da legislação relacionada e de artigos científicos indexados nas principais bases de pesquisa.
3. RESULTADOS
Em 2021, a UETC-FB executou 102 exames de violência sexual em menores de 14 anos, quantitativo correspondente a 69,86% do total de vítimas examinadas por este órgão de perícia oficial – contrastando com apenas 73 ocorrências reconhecidas como violência sexual, 45 ocorrências reconhecidas como estupro e 10 ocorrências reconhecidas como exploração sexual notificadas no SINAN, além de 39 notificações equivocadamente reconhecidas como assédio sexual (tabela 1). As condutas reconhecidas como violência sexual no campo 56 da Ficha de Notificação de Violência Interpessoal/ Autoprovocada receberam pelo menos uma tipificação no campo 58, tendo sido contabilizadas 60 ocorrências as quais foram classificadas em, pelo menos, dois delitos (gráfico 1).
A partir dos dados coletados dos exames forenses, foram definidas as seguintes categorias para a variável “nível de proximidade do ofensor”: pai; padrasto; avô; primo; tio; irmão; namorado/ companheiro; pessoa do convívio próximo (indivíduo não consanguíneo com proximidade afetiva ou territorial, como padrinhos, vizinhos, amigos, professores e cuidadores habituais não consanguíneos, exceto padrasto); conhecidos (contactantes eventuais não consanguíneos, sem proximidade afetiva ou territorial); desconhecidos (indivíduos sem história de contato prévio); sem informação. Não houve relato de mães e madrastas entre os abusadores. Com relação aos dados compilados do SINAN, foram estabelecidas, para a mesma variável, categorias em conformidade com as seleções disponíveis no TABNET, consistindo em: pai; mãe; padrasto; madrasta; namorado; irmão; amigo/ conhecido; desconhecido; cuidador; outros vínculos. Ao passo que padrastos e pais biológicos foram relacionados como os ofensores mais frequentes nos boletins de ocorrências e exames forenses, os registros do SINAN elencaram conhecidos e indivíduos possuidores de outros vínculos de convivência com a vítima como principais molestadores (gráfico 2). Tal dissenso pode se justificar pelo fato de que as informações coletadas dos boletins de ocorrência e exames forenses possibilitaram a distribuição da variável em categorias mais específicas, contemplando, por exemplo, familiares colaterais, enquanto a forma de tabulação dos registros no SINAN condensa estes e outros agentes em uma única e heterogênea seleção.
A vitimologia desenhada a partir do levantamento dos exames realizados pela UETC-FB apontou que a vítima costuma ser uma criança do sexo feminino, submetida a abuso recorrente no ambiente intrafamiliar, perpetrado por cuidador do sexo masculino, consanguíneo ou não consanguíneo, ou por outro masculino de sua confiança e pertencente ao seu círculo íntimo (gráficos 3 a 9). Em 6 dos casos examinados, as vítimas mantinham um relacionamento amoroso com os abusadores; em um desses casos foi constatada a gestação da vítima e em outros 2 casos os autores dos abusos eram menores de idade. Foram constatados, ainda, 2 casos de exploração sexual (gráfico 10), 2 casos com história relatada de emprego de substâncias facilitadoras de abuso e 5 casos nos quais a violência foi cometida por dois ou mais perpetradores. Agressoras do sexo feminino foram identificadas em apenas dois casos, nos quais as vítimas também eram do sexo feminino. O maior quantitativo de relatos de conjunção carnal foi verificado entre os 10 e os 13 anos de idade, enquanto em lactentes, pré-escolares e escolares jovens a ocorrência mais frequente foi ato libidinoso diverso da conjunção carnal – levando ao vislumbre de um padrão em que as vítimas de tenra idade são objeto de toques inapropriados, carícias íntimas e exibição corporal com finalidade erótica, entre outras práticas libidinosas, passando a ser submetidas à cópula vaginal quando o abusador identifica, nesta vítima, sinais de amadurecimento sexual do ponto de vista biológico (gráfico 11).
Em 41 casos o abuso aconteceu na residência da vítima, cometido mais frequentemente pelo padrasto ou pelo pai; em pelo menos 36 casos, os abusos ocorreram na residência do agressor, mais frequentemente identificado como pai biológico de vítima inserida em família monoparental, avô, familiar colateral, conhecido ou vizinho (gráfico 12). Dos 23 casos nos quais o padrasto foi o perpetrador, 17 ocorreram na residência da vítima e em 13 destes a violência se mostrou recorrente. O banco de dados do SINAN apontou violência recorrente em 47,9% dos casos, inferior ao quantitativo observado na investigação dos exames forenses. Nas vítimas mais jovens, a frágil compreensão sobre natureza dos abusos e a ausência de vestígios físicos na quase totalidade dos casos foram identificados como os principais facilitadores de violência recorrente, enquanto nas pré-púberes e púberes os facilitadores mais comuns foram sentimento de culpa e ameaça à integridade física dos integrantes do grupo familiar. Em ambos os bancos de dados o número absoluto de ofensores superou o número absoluto de casos, sinalizando para ocorrências nas quais as agressões sexuais foram consumadas por mais de um autor. Embora tenham sido constatadas discrepâncias relacionadas à assimilação das terminologias, o perfil epidemiológico das vítimas foi bastante similar em ambas as bases de pesquisa, corroborando os dados da literatura (18 a 24).
4. DISCUSSÃO
Os resultados traduzem os óbices na compreensão teórica das condutas delitivas sexuais por parte dos profissionais da atenção à saúde envolvidos no cuidado à pessoa em situação de violação da dignidade sexual, comprovada ou suspeita, em especial, crianças e adolescentes – podendo comprometer a obtenção de estimativas dessas violências, dada a falta de uniformidade conceitual e metodológica, e contribuir para que alguns casos sejam subestimados enquanto outros são superdimensionados (23).
A discrepância entre o número de exames realizados pela UETC-FB e o quantitativo de notificações de violência sexual no SINAN alerta para uma subnotificação em torno de 28,43%, consubstanciando a preocupação com a confiabilidade dos registros qualitativos e quantitativos. A constatação de que, nessa investigação, somente 61,64% das situações de violência sexual contra menores de 14 anos foram corretamente reconhecidas como estupro denota que parte considerável dos profissionais de saúde segue apartada dos fundamentos da normatividade jurídico-penal contemporânea, particularmente no que se refere ao advento do artigo 217-A do Código Penal Brasileiro – sugerindo que os atos libidinosos diversos da conjunção carnal continuam a ser assimilados como delitos de menor potencial ofensivo. Como agravante desta problemática, o preenchimento da Ficha de Notificação de Violência Interpessoal/ Autoprovocada usualmente ocorre durante o atendimento da vítima em serviços de pronto-atendimento, habitualmente superlotados e com demandas distintas e complexas, afetando a qualidade dos registros realizados sob essas condições. O estresse emocional do profissional encarregado do atendimento à criança e sua família – normalmente fragilizada pela revelação da violência – e a necessidade de cumprimento dos protocolos nos diferentes setores responsáveis por essa assistência, também podem interferir negativamente na qualidade do preenchimento da ficha de notificação (23).
Partindo do prisma da pesquisa científica enquanto catalisadora de transformações sociais e do pressuposto de que a violência precisa ser analisada na perspectiva da sociedade que a produziu – pois consiste em fenômeno que se nutre de fatos políticos, econômicos e culturais, traduzidos nas relações cotidianas e que, por serem construídos por determinada sociedade e sob determinadas circunstâncias, podem também por ela ser desconstruídos e superados (22) – os resultados deste estudo oportunizaram a elaboração de um projeto cuja perspectiva é subsidiar a capacitação dos profissionais de saúde nos três níveis de complexidade dos municípios da área de abrangência operacional da UETC-FB. Busca-se, com esta articulação, a pactuação de uma comunicação homogênea, harmônica e congruente com os esforços hodiernos da comunidade global em prol da luta contra o abuso sexual infantil (26) a ser estabelecida entre todos os atores envolvidos na consecução das ações preventivas e protetivas. Além de capacitação e estruturação de rotinas de notificações nos municípios, uma atualização do instrutivo de registro se mostra urgente e necessária, pois este, além de ainda não mencionar o estupro de vulnerável, favorece a inscrição de casos de violência em campos abertos, sugerindo a existência de estupro, sem que o campo relativo ao estupro tenha sido preenchido – viés também observado em estudo promovido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no ano de 2023 (25).
A despeito da relevância deste tema, não foram encontrados, na literatura científica nacional e internacional, estudos relacionados ao impacto do desconhecimento da terminologia jurídico-penal na qualidade e fidedignidade das notificações de violência sexual envolvendo menores de 14 anos – o estudo mais aproximado foi realizado no Rio de Janeiro, abrangendo as notificações de violência interpessoal/ autoprovocada sem distinção de idade e da natureza da violência, tendo encontrado inconsistências expressivas nas notificações, a ponto de comprometer a utilização da informação (20).
5. CONCLUSÃO
A análise comparativa entre os registros do Sistema de Informações de Agravos de Notificação e os exames forenses realizados no mesmo ano pela UETC-FB permitiu observar que a confiabilidade dos registros epidemiológicos de estupro de vulnerável envolvendo menores de 14 anos de idade na área de abrangência 8ª RS/PR é diretamente influenciada pelo desconhecimento, por parte dos profissionais do nível assistencial, da tipificação penal atinente às agressões sexuais, traduzida pelas distorções na interpretação das nomenclaturas.
Além da insuficiente compreensão da normatividade penal relacionada às condutas delitivas do espectro das agressões sexuais pelos profissionais da assistência, as vulnerabilidades no preenchimento das notificações decorrem também das condições nas quais o atendimento à vítima é realizado – as quais se relacionam tanto aos aspectos do trabalho propriamente dito quanto às subjetividades de cada profissional de saúde; do escasso investimento em capacitação contínua e uniformização das rotinas de notificações nos municípios; e na defasagem do instrutivo de registro, cuja atualização se faz imprescindível e premente.
Partindo do princípio de que as palavras afetam a forma como problemas são conceituados, questões são priorizadas e respostas, forjadas, o uso inconsistente da linguagem e das terminologias pode conduzir a contrapartidas políticas ineficientes sobre determinadas temáticas. Apesar da existência de definições legais para uma série de crimes sexuais contra crianças e adolescentes, oriundas das imprescindíveis reformas jurídicas empreendidas nas últimas décadas em reação às marcantes transformações sociais, ainda existe uma dubiedade considerável em torno das diferentes nomenclaturas relacionadas aos delitos sexuais perpetrados contra menores, e dessas distorções emergem (e se amplificam) inegáveis desafios – os quais fazem jus ao aprofundamento no tema, não obstante os objetivos desta pesquisa tenham sido atingidos em sua totalidade.
O termo “violência” é frequentemente usado em conexão com alguma forma de ato físico; em seu significado original, “violento” significa “ter um efeito marcante ou poderoso” (26). Mesmo que a terminologia “violência sexual contra crianças” possa ser empregada genericamente, é importante também manter um foco mais restrito sobre suas diferentes manifestações específicas (27), visando desenvolver estratégias de proteção e prevenção, além de respostas singulares para cada caso – a fim de que a tutela de direitos legitimada pela legislação, bem como as políticas públicas, sejam amplas e eficazes, não deixando espaço para lacunas e garantindo, efetivamente, a proteção contra danos.
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