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Artigo Original

IMPASSE PERICIAL: BURNOUT, PSEUDOCIÊNCIA INSERIDA NA CID 11 PELA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE

Como citar: Lima EV. Impasse pericial: burnout, pseudociência inserida na CID 11 pela Organização Mundial da Saúde. Persp Med Legal Pericia Med. 2024; 9: e240307

https://dx.doi.org/10.47005/240307

Recebido em 07/01/2024
Aceito em 02/03/2024

O autor informa não haver conflito de interesse.

EXPERT IMPASSE: BURNOUT, PSEUDOSCIENCE INCORPORATED IN ICD 11 BY THE WORLD HEALTH ORGANIZATION

Estevam Vaz de Lima (1)

https://lattes.cnpq.br/8517158965622339https://orcid.org/0000-0001-7018-8772

(1) Tribunal Regional do Trabalho da 2a Região, São Paulo-SP, Brasil. (autor principal)

RESUMO

O autor apresenta uma análise crítica do conceito de burnout e discute as consequências da introdução de uma nova definição do fenômeno (síndrome de burnout) na CID 11. Para tanto, procede a uma pesquisa bibliográfica entre os mais importantes autores da área. Ilustra o funcionamento do MBI, Maslach Burnout Inventory, do qual emergiu o conceito atual de burnout. Apresenta os problemas relacionados a essa ferramenta. Discute a introdução do conceito de MBI/burnout na CID 11 e suas consequências.  Além das questões científicas, discorre sobre o atrelamento da pesquisa sobre burnout a uma ferramenta protegida por direitos autorais e o viés comercial envolvido. Conclui que a Organização Mundial inseriu pseudociência na Classificação Internacional de Doenças.

Palavras-chave: Burnout, pseudocência, OMS, MBI, impasse pericial.

ABSTRACT

The author presents a critical analysis of the burnout concept and discusses the consequences of introducing a new definition of the phenomenon (burnout syndrome) in ICD 11. To do so, they conduct a bibliographic research among the most important authors in the field. They illustrate the functioning of the MBI, Maslach Burnout Inventory, from which the current burnout concept emerged. They present the problems related to this tool and discuss the introduction of the MBI/burnout concept in ICD 11 and its consequences. In addition to scientific issues, they discuss the linking of burnout research to a tool protected by copyrights and the commercial bias involved. The author concludes that the World Health Organization has inserted pseudoscience into the International Classification of Diseases.

Keywords: Burnout, pseudoscience, WHO, MBI, expert impasse.

1. INTRODUÇÃO

“Burnout” ou “síndrome de burnout” é um tema amplamente discutido hoje em dia. Está presente quase diariamente nas diversas mídias, leigas ou profissionais, e o termo foi fortemente incorporado ao senso comum.

Milhões de pessoas referem-se a sofrimento psíquico relacionado ao trabalho, sugerindo um fenômeno mundial. O sofrimento dessas pessoas não pode ser ignorado, muito menos desqualificado. Entretanto, o que o perito médico encontrará ao bater às portas da ciência com a pergunta: “Afinal, o que é burnout?” É o que veremos neste artigo, com enfoque em particular sobre o papel da Organização Mundial da Saúde nesse cenário.

 2. MÉTODOS

Para realizar esta análise crítica, utilizaremos uma abordagem baseada em revisão bibliográfica de obras essenciais sobre burnout. Reuniremos informações de estudos sobre o tema e publicações acadêmicas, iniciando pelo aspecto histórico do desenvolvimento do conceito. Analisaremos os critérios estabelecidos pela OMS para o diagnóstico de burnout, examinando sua consistência com as evidências científicas disponíveis.

3. HISTÓRIA

3.1. FREUDENBERGER

Burnout é um termo que reúne a ideia de “burn” (queimar) e “out” (fora). Os primeiros passos que levaram ao desenvolvimento do conceito atual foram dados dentro de uma free clinic. As free clinics surgiram nos anos 60 e 70 e proviam abrigo e cuidados para pessoas desassistidas, dentre eles usuários de drogas, em meio à ebulição do movimento de contracultura hippie.

Herbert Freudenberger, um psicólogo de origem judia nascido na Alemanha foi uma figura central nesse cenário. Com a ascensão do nazismo, ainda menino teve que fugir, passando por situações dramáticas, envolvendo risco de vida, penúria, medo e convivência com estranhos. Ajudou a fundar uma free clinic em Nova Iorque, dedicando-se intensamente ao trabalho com essas populações (1).

Foi nessa clínica que os voluntários notaram que os pacientes atendidos empregavam a gíria “burnout” para se referir a alguns deles quando apresentavam problemas graves de saúde devido ao abuso muito pesado de drogas. Posteriormente, os próprios voluntários passaram a usar o termo entre si, quando algum deles entrava em estados de desalento, desânimo, cansaço e angústia com o trabalho. Freudenberger interessou-se pelo tema, encontrou muitas pessoas que se identificavam com o fenômeno e em 1974 publicou o artigo “Staff Burn-Out”, considerado fundador do conceito de burnout (2). Os escritos de Freudenberger eram informais e espontâneos. Assim, “Staff Burn-Out” é um texto com considerações variadas, reflexões e elementos autobiográficos. Freudenberger não pretendeu propor a identificação de um novo transtorno, não há ali uma proposta de sistematização e estudo semiológico, nosológico e nosográfico do fenômeno. Freudenberger logrou chamar a atenção para o problema, entretanto não se pode dizer que exista um conceito de burnout proposto no artigo. A ausência de um conceito sobre a alegada doença irá perdurar indefinidamente na obra de muitos autores posteriores.

3.2. MASLACH, SCHAUFELI E LEITER

Em 1981. uma psicóloga social da Universidade da Califórnia, Christina Maslach, apresentou um questionário para identificar burnout, denominado MBI ou Maslach Burnout Inventory. (3) O conceito atual de burnout nasce do MBI e ambos são considerados sinônimos pela própria autora: “Na prática, o conceito de burnout coincide com o MBI e vice-versa”. (4, p. 211). Kristensen, pesquisador dinamarquês e crítico do MBI, diz que “Burnout é o que o MBI mede e o MBI mede o que é burnout”. (5, p.193). A ferramenta é baseada na psicologia psicométrica, portanto, em Estatística.

Em sua primeira tentativa de publicação, Maslach recebeu os originais de volta com um bilhete do editor: “Não publicamos psicologia pop.” (“We do not publish pop psychology”). (6, p. 139) Apesar desse percalço inicial, o MBI fez sucesso e é usado em mais de 90 por cento das pesquisas sobre burnout no mundo.

Essa ferramenta é um questionário de 22 perguntas, divididas em três blocos. Cada bloco corresponde a uma das pernas do “tripé multidimensional da síndrome”, conforme nomeado por Maslach. O tripé corresponde às variáveis do burnout – EE (exaustão emocional), DE (despersonalização ou cinismo) e PA (realização ou eficácia profissional).

Wilmar Schaufeli e Michael Leiter são autores e pesquisadores sobre o assunto, com frequência publicam em parceria com Maslach. São coautores de duas versões do MBI, que hoje são cinco. Schaufeli é certamente o principal teórico do campo. É autor de um livro que é a principal referência sobre o assunto  – “The Burnout Companion for Study and Practice – a Critical Analysis” (7). Foi prefaciado por Maslach que ali registrou – “é a única fonte verdadeira à qual você deve se referir.” (7, p. X)

4. COMO O MBI FUNCIONA

A identificação ou o “diagnóstico” de burnout é detalhadamente explicado no Manual do MBI, atualmente em sua 4ª edição. (6). O MBI é rigorosamente protegido por direitos autorais e seus detentores não permitem a reprodução das tabelas do questionário para fins de análise crítica, mesmo que se pague para isso. Ou seja, não está disponível para livre discussão no mundo científico. Assim, vamos apresentar somente o arcabouço do MBI e, separadamente, a essência dos quesitos. Apresentaremos somente o primeiro bloco, EE, exaustão emocional, considerada a variável mais importante do fenômeno. Os argumentos que discutiremos sobre este bloco se aplicam igualmente aos outros dois, DE e RP.

Nas linhas são dispostas as perguntas, que o indivíduo responde, dando notas nas colunas conforme a frequência com que vive as experiências descritas. No caso de EE, os escores podem variar de zero (respostas “Nunca” em todas as linhas), a 54 (respostas “Todos os dias” em todas as linhas).

A seguir, listamos a essência dos quesitos apresentados no bloco “Exaustão Emocional”. São experiências sempre associadas ao trabalho. Não apresentamos a Tabela original do MBI nem o texto original dos quesitos devido a restrições relativas a direitos autorais.

São estas, portanto, as vivências exploradas no bloco EE:

– sentir-se emocionalmente esgotado,

– sentir-se consumido,

– sentir-se exausto no final do dia,

– sentir tensão entre outras pessoas,

– sentir-se cansado pela manhã,

– sentir-se frustrado,

– sentir-se sobrecarregado,

– sentir que as pessoas são uma fonte de estresse,

– sentir que está no seu limite.

5. A CLÍNICA DO BURNOUT

Um dos pontos que chama a atenção dos leitores da literatura sobre burnout é a profusão de sintomas associados ao fenômeno.

Kaschka, Korczak e Broich, em revisão de 852 publicações, registram:

Existe uma associação entre burnout e doenças cardiovasculares, musculoesqueléticas, cutâneas e alérgicas e, no sentido prospectivo, com diabetes mellitus tipo II e hiperlipidemia… Alguns autores relatam alterações neuroendócrinas, hemostáticas e inflamatórias em pacientes com burnout, que não diferem essencialmente daqueles encontrados em outras condições de estresse crônico, transtorno de estresse pós-traumático ou depressão. (8, p. 785).

Trigo et al., em revisão da literatura, relatam:

O indivíduo pode apresentar fadiga constante e progressiva; dores musculares ou osteomusculares (na nuca e ombros; na região das colunas cervical e lombar); distúrbios do sono; cefaleias, enxaquecas; perturbações gastrointestinais (gastrites até úlceras); imunodeficiência com resfriados ou gripes constantes, com afecções na pele (pruridos, alergias, queda de cabelo, aumento de cabelos brancos); transtornos cardiovasculares (hipertensão arterial, infartos, entre outros); distúrbios do sistema respiratório (suspiros profundos, bronquite, asma); disfunções sexuais (diminuição do desejo sexual, dispareunia/anorgasmia em mulheres, ejaculação precoce ou impotência nos homens); alterações menstruais nas mulheres. (9, p. 23).

Schaufeli, em seu livro seminal, foi mais longe e fez uma compilação dos sintomas de burnout na literatura internacional. Encontrou 132 sintomas. (7, p. 19) Encontramos mais oito, perfazendo, portanto, 140 sintomas. (10, p. 70)

Schaufeli, evidentemente, não endossa essa lista, mas faz uma crítica a ela: “Existem miríades de sintomas e definições possíveis de burnout… o conceito pode ser facilmente expandido para significar qualquer coisa, de tal modo que, ao final, há o perigo de que acabe por não significar absolutamente nada.” (7, p. 19).

6. ASPECTOS EPIDEMIOLÓGICOS

Outros números que chamam a atenção na literatura são os resultados das pesquisas sobre prevalência. Encontra-se desde resultados mais discretos, como 4,5% entre trabalhadores alemães (9), até 93%, como é o caso da pesquisa de Borges em dois hospitais universitários do Rio Grande do Norte, com prevalência de 93 por cento de burnout moderado e grave em um deles (11).

O estudo mais amplo e robusto que conhecemos foi publicado em 2018 no JAMA. Trata-se de uma revisão sistemática de 181 publicações sobre burnout em médicos, cobrindo de 1991 a 2018, abrangendo 45 países e uma população pesquisada de 109.628 indivíduos.

As duas principais concluões desse estudo são as seguintes:

“A prevalência geral de burnout variou de 0% a 80,5%. As prevalências de exaustão emocional, despersonalização e baixa realização pessoal variaram de 0% a 86,2%, 0% a 89,9% e 0% a 87,1%, respectivamente.” (12, p. 1131)

e

“Essas pesquisas usaram pelo menos 142 definições exclusivas para atender aos critérios gerais de burnout ou das subescalas de burnout, indicando discordância substancial na literatura sobre o que constitui burnout.” (12, p.1131)

7. DISCUSSÃO

“Burnout” tem sido referido como doença, enfermidade, moléstia, patologia ou síndrome pelos autores da área. O objetivo desta discussão é demonstrar que não há suporte científico para burnout, implicando num impasse insolúvel em termos médicos, particularmente periciais, conforme veremos. Os materiais bibliográficos que apresentamos são suficientes, a nosso ver, para levantar questionamentos sobre a “síndrome de burnout” enquanto entidade clínica. Em nossa opinião, trata-se de uma noção pseudocientífica mergulhada em confusão.

Temos afirmado que há ao menos oito argumentos que são suficientes, cada um deles, isoladamente, para permitir essa conclusão, além de dezenas de argumentos acessórios. Vejamos alguns deles.

7.1. OS PROBLEMAS DO MBI

Segundo o Manual do MBI (6), o terço inicial do Inventário, à esquerda, corresponde a burnout leve, o terço médio a burnout moderado e o terço final a burnout grave. Ou seja, mesmo que o respondedor assinale a coluna “Nunca” ou “Uma vez por ano”, indicando a frequência com que vive as experiências descritas nas linhas, será considerado em “burnout leve”. Consequentemente, o MBI rotula como burnout – no mínimo burnout leve – 100 por cento dos respondedores. Conclui-se que a tensão mínima de estar trabalhando já caracterizaria algum grau de burnout.

Portanto, não há critério de exclusão para burnout. O MBI não permite concluir que alguém “não está burned out”. Temos aqui, então, o primeiro grande problema: não há como falar em “doença” para a qual não existe possibilidade de exclusão diagnóstica.

O segundo grande problema é que os quesitos do bloco EE são muito simples e correspondem a queixas comuns no dia a dia da prática da psiquiatria e da clínica geral. Um psiquiatra, um clínico geral ou mesmo uma pessoa de bom senso que se depare com esses quesitos e considere que a pessoa apresenta tais experiências todos os dias (coluna 6), irão concluir, num primeiro olhar, que “aquela pessoa não está bem” e um exame mais detalhado revela que, de forma geral e inespecífica, apontam para humor polarizado para depressão. A maioria dos críticos do MBI/burnout diz que burnout se confunde com depressão, no singular. Há que se considerar, entretanto, que “depressão” não é uma entidade clínica única. Existem cerca de duas dezenas de categorias diagnósticas psiquiátricas com humor polarizado para depressão. O resultado disso é que o MBI vai rotular como “burnout” todos os diagnósticos psiquiátricos em que haja humor polarizado para depressão. Ou seja, cerca de 20 categorias diagnósticas da psiquiatria.

Dentre esses, podemos citar as quatro formas clínicas de episódios depressivos, as quatro formas clínicas do transtorno depressivo recorrente, a distimia, os episódios depressivos do TAB e dos transtornos esquizoafetivos, o transtorno misto ansioso-depressivo e os transtornos de estresse, dentre outros.

Além disso, o leitor pode observar que o MBI rotula transtornos psiquiátricos como burnout quando as respostas concentram-se à direita do questionário – ou seja, quando essas vivências são frequentes a ponto de indicar um transtorno mental. Entretanto, quando as respostas se concentram mais à esquerda, irão incluir experiências comuns e mesmo esperadas na vida humana, mas com baixa frequência, e, portanto, insuficientes para caracterizar um transtorno mental. Esses respondedores também receberão o rótulo de “burnout”, seja leve ou moderado. Logo, experiências comuns da vida e transtornos mentais específicos irão, todos juntos, para dentro de um saco sem fundo do MBI/burnout, sendo indiscriminadamente rotulados como “burnout”.

O mesmo raciocínio se aplica aos outros dois blocos. Os quesitos do bloco DE (despersonalização) apontam para problemas e disfuncionalidades nas relações dos respondedores com a clientela e o trabalho. Num extremo (à direita) poderão incluir transtornos de personalidade. Mais à esquerda poderão abranger, tal qual no bloco EE, experiências comuns da vida humana. Aqui, também, transtornos de personalidade e características pessoais que não caracterizam um diagnóstico psiquiátrico irão, todos, para o saco sem fundo do MBI/burnout.

No bloco RP há uma inversão do cálculo: quanto maior o escore, mais leve o burnout, pois os quesitos indicam experiências positivas com o trabalho. O extremo direito do bloco poderá rotular como burnout quadros de hipomania e assemelhados e à esquerda casos de depressão.

Os três blocos irão rotular cerca de trinta diagnósticos psiquiátricos como “burnout”.

Outro aspecto crítico dessa ferramenta, e em certa medida surpreendente, é que ela estebelece relação causal com o trabalho, sem considerar que os indivíduos podem funcionar de certos modos devido às suas características intrínsecas de personalidade, ou seja, devido àquilo que são como seres humanos. Pessoas podem ser mais ou menos deprimidas, terem maiores ou menores dificuldades nas relações interpessoais, serem pouco ou muito otimistas e animadas a depender de suas características psicológicas intrínsecas. Isso tudo é ignorado nas teorias do MBI/burnout. Cem por cento dos indivíduos receberão o rótulo de burnout e em cem por cento dos casos o fator causal exclusivo é o trabalho.

Há muitos argumentos ainda sobre o MBI que poderiam ser aqui discutidos.  O que apresentamos acima, entretanto, parece suficiente para ao menos uma conclusão importante: uma ferramenta de medição que rotula como “burnout” cerca de trinta categorias diagnósticas da psiquiatria e incontáveis experiências comuns da vida humana não se sustenta como ciência séria e introduz pseudociência no campo da Medicina, em particular da Psiquiatria.

7.2. A CLÍNICA DO BURNOUT

Segundo o Manual do MBI, a identificação ou “diagnóstico” de burnout pode ser feito pelo próprio indivíduo em poucos minutos. (6) Trata-se, portanto, de autodiagnóstico. Efetivamente, depende daquilo que o indivíduo sente, ou seja, de sintomas e, portanto, de elementos subjetivos. Não há um conjunto de sinais e sintomas que permita o diagnóstico e diagnósticos diferenciais. Em síntese: não existe semiologia médica para burnout.

A lista que Schaufeli apresenta revela certo despropósito, pois ali aparecem cerca de 25 doenças gerais como “sintomas” de burnout, além de mais de uma centena de sintomas como manifestções próprias da “síndrome”, revelando o caráter difuso e inespecífico dessas teorias. (7, p. 57)

As soluções sobre a clínica e o diagnóstico de burnout propostas pelos autores da área às vezes surpreendem. Schaufeli, a certa altura em seu famoso livro, em capítulo intitulado “Burnout e Neurastenia”, após discorrer sobre neurastenia propõe que “[…] a neurastenia relacionada ao trabalho pode ser considerada o rótulo psiquiátrico formal mais adequado para o burnout. (ibid p. 57)  Ou seja, resolve-se o “problema médico” da classificação do burnout com a simples escolha arbitrária de um diagnóstico da CID 10.

7.3. A EPIDEMIOLOGIA DO BURNOUT

A revisão sistemática que citamos, que revela prevalência de burnout variando de zero a 80 por cento e a identificação de 142 definições para o fenômeno, soma-se ao quadro que nos leva a concluir que as teorias sobre burnout estão mergulhadas no que temos chamado de “estado de confusão”. Renzo Bianchi, pesquisador franco-suíço crítico do MBI/burnout publicou um artigo cujo título tem o mérito de sintetizar em poucas palavras boa parte do espectro de problemas envolvendo esse fenômeno: “Síndrome de burnout: da indeterminação nosológica ao absurdo epidemiológico”(14). Ou seja, se não temos a “doença” devidamente conhecida, delimitada e descrita, as conclusões epidemiológicas sobre ela serão absurdas, tal qual demonstra a referida revisão sistemática apresentada acima.

7.4. EXISTE UMA DOENÇA CHAMADA BURNOUT?

Inclinamo-nos a acreditar que burnout existe, no mínimo, como fenômeno cultural. Sua emergência parece ter ocorrido de forma mais intensa na década de 70 nos Estados Unidos, durante o declínio da classe média americana, com menos renda e mais trabalho. Foi chamada de “the malady decade” pelo ex-presidente Jimmy Carter.

O escopo deste artigo, entretanto, não é este. Portanto devemos nos voltar para o plano individual e propor uma indagação: existe um estado de exaustão relacionado especifacamente ao trabalho que pode produzir alterações da saúde humana e o desenvolvimento de uma doença (ou trastorno, nomenclatura mais apropriada para transtornos mentais)? A resposta é “não sabemos”. Não sabemos porque as teorias sobre esse fenômeno são surpreendemente frágeis ou, em uma palavra, pseudocientíficas. As pessoas se queixam e muitas delas se identificam com as ideias sobre burnout. Se essa condição existir, sua caracterização exigiria que pudesse ser identificada sem se confundir com dezenas de outros agravos da saúde. Em outras palavras: seria necessário poder fazer diagnósticos diferenciais. Seria necessário poder distingui-la, sobretudo, dos transtornos de estresse. Sabemos que fatores estressores no trabalho produzem adoecimento, às vezes muito graves. O que não sabemos é se existe outro agravo de saúde específico ou outra forma clínica de transtorno de estresse, distinta das demais e até aqui não identificada.

7.5. A ADOÇÃO DA “SÍNDROME DE BURNOUT” PELA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. (BURNOUT: FENÔMENO COBERTO POR DIREITOS AUTORAIS?)

“Burnout” está presente na Classificação Internacional de Doenças da OMS desde 1989, data da adoção da CID 10. Estava inscrito em “Problemas com a organização de seu modo de vida”. Na CID 11 passou para “Problemas com o emprego e desemprego”. Ambos pertencem a uma categoria que não codifica doenças, denominada “Fatores que influenciam o estado de saúde e o contato com os serviços de saúde”.

A mudança feita pela OMS traz à tona questões críticas sob uma ótica minimamente científica.

Um dia após apresentar a CID 11 em coletiva de imprensa, os técnicos da entidade, ao ler as manchetes, se deram conta da confusão que havia se formado em torno do burnout. Foram à página oficial da OMS e publicaram a seguinte nota:

Burn-out está incluído na 11ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11) como um fenômeno ocupacional. Não é classificado como uma condição médica.

Está descrito no capítulo: ‘Fatores que influenciam o estado de saúde ou o contacto com os serviços de saúde’ – que inclui as razões pelas quais as pessoas contactam os serviços de saúde, mas que não são classificadas como doenças ou problemas de saúde.” (14)

Na sequência, apresentam a definição do fenômeno:

Burn-out é uma síndrome conceituada como resultado do estresse crônico no local de trabalho que não foi gerenciado com sucesso. É caracterizada por três dimensões:

– sensação de esgotamento ou exaustão de energia;

– aumento da distância mental do trabalho ou sentimentos de negativismo ou cinismo relacionados ao trabalho; e

– eficácia profissional reduzida.

Burn-out refere-se especificamente a fenômenos no contexto ocupacional e não deve ser aplicado para descrever experiências em outras áreas da vida.” (14, 15)

Schaufeli, ao se deparar com a definição, publicou:

“Para aumentar a confusão, a definição de burnout de Maslach e colegas é adotada, declarando implicitamente que o MBI deve ser usado para avaliar esse fenômeno ocupacional.” (16).

A decisão da OMS implica em dois problemas consideráveis: o primeiro deles é que importou todos os problemas do MBI para dentro da Classificação Internacional de Doenças.

O segundo é que o MBI é um bem privado, com direitos autorais rigorosamente administrados pela empresa MindGarden Inc., da Califórnia. Para se realizar pesquisas sobre burnout usando os critérios da OMS, é necessário recorrer ao MBI, que é pago e requer autorização por escrito de seus proprietários. Não é exagero dizer, considerando que MBI e burnout são sinônimos, que a OMS atrelou o fenômeno humano a uma ferramenta coberta por direitos autorais.

Evidentemente, a decisão da OMS implica na introdução de interesses comerciais nesse cenário, já por si só mergulhado em confusão.

Além da introdução de interesses monetários, há que se considerar as potenciais distorções de pesquisas sujeitas a tais fatores.

7.6. SÍNDROMES E “SÍNDROMES”

Há outro detalhe que contribui para a confusão em torno desse assunto.

Logo após declarar que burnout não é uma condição médica, não é doença e não é condição de saúde, a OMS refere-se ao fenômeno como “síndrome”, conforme exposto acima. Uma síndrome, no sentido médico do termo, é, de qualquer forma, uma condição médica e uma doença, pode-se dizer “doença complexa” devido à variedade de etiologias e outros fatores. Vide “síndrome de parkinsonismo” ou “síndrome de Down.” No caso do burnout, a OMS está, portanto, usado o termo lato sensu, como “um conjunto de fenômenos”. Ela o faz em outros momentos, como em “síndromes de maus tratos”. (CID 10 T74).

Para o público em geral, síndrome é sinônimo de doença. Infelizmente, muitos médicos também interpretaram a definição dessa forma. E, com isso, a OMS contribuiu para o material mais comum no território do burnout: desinformação.

8. IMPASSE PERICIAL

O “burnout” ou “síndrome de burnout” representa um sério impasse em Perícia Médica, seja forense, administrativa ou securitária.

Embora não seja considerado doença pela própria OMS, centenas de autores tratam o fenômeno como se doença fosse.

Além disso, o Manual do MBI afirma que o autodiagnóstico de burnout pode ser feito em poucos minutos pelo respondedor. Assim, como é composto apenas de sintomas e não de um conjunto de sinais e sintomas, o fenômeno é autodeclaratório. Isso cria mais um possível impasse em perícia médica, pois sabemos que a simulação de transtornos mentais é muito difícil e rara. O burnout, entretanto, é amplamente passível de simulação, pois seria, em síntese, uma “doença sem semiologia”. Hipoteticamente, o perito poderia ver-se diante de um indivíduo que declara ter preenchido o MBI e estar sofrendo de burnout. Vale lembrar que estaria amplamente amparado pela literatura da área. Como proceder frente a tal situação?

Trata-se de um considerável problema em perícia médica. O perito médico, sem negar o eventual sofrimento mental do periciado, terá que decidir qual orientação tomar. E talvez tenha que responder: fazer diagnóstico de burnout é erro médico?

9. CONCLUSÕES

A Organização Mundial da Saúde, ao adotar os critérios do MBI para burnout, ou seja, uma ferramenta que rotula como burnout mais de 30 categorias diagnósticas da psiquiatria; ao adotar o MBI, uma ferramenta protegida por direitos autorais, que torna a pesquisa sobre burnout dependente de pagamento e atrelada a interesses comerciais; ao adotar uma “síndrome” com mais de 140 sintomas, com índices de prevalência variando entre zero e 80 por cento e com 142 definições, está, em nossa opinião, introduzindo uma noção pseudocientífica na Classificação Internacional de Doenças (17).

Os danos que isso representa são graves e de variadas magnitudes – a começar pelo fato em si. Além disso, a OMS involuntariamente promove desinformação da opinião pública.


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