Artigo de Revisão

A ESPECIALIZAÇÃO DO PERITO AD HOC À LUZ DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Como citar: Jundi SE, Pisoni A. A especialização do perito ad hoc à luz da legislação brasileira. Persp Med Legal Pericia Med. 2024; 9: e240308

https://dx.doi.org/10.47005/240308

Recebido em 11/01/2024
Aceito em 18/03/2024

Os autores informam não haver conflito de interesse.

THE SPECIALIZATION OF THE AD HOC EXPERT IN LIGHT OF BRAZILIAN LEGISLATION

Sami El Jundi (1)

http://lattes.cnpq.br/7494905972127066https://orcid.org/0000-0002-5047-9596

Alessandra Pisoni (2)

http://lattes.cnpq.br/1161410943090810https://orcid.org/0009-0009-2565-4717

(1) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Direito, Porto Alegre -RS, Brasil.
(autor principal)

(2) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Direito, Porto Alegre -RS, Brasil.
(autora secundária)

samieljundi@risk-0.com

RESUMO

O presente artigo se constitui em uma revisão integrativa das normas processuais aplicáveis à atuação do médico perito na esfera cível, com ênfase na necessária especialização do perito ad hoc em ações de responsabilidade civil. Destacamos a existência de previsão legal para a atuação de um profissional com adequada qualificação e abordamos as alternativas fáticas e jurídicas para a escolha da especialidade do perito, sopesando a complexidade das diferentes áreas médicas e a importância de um conhecimento profundo do objeto da perícia.

Palavras-chave: perito, laudo pericial, especialização, responsabilidade civil, objeto da perícia.

ABSTRACT

This article is an integrative review of the procedural rules applicable to the work of the medical expert in the civil sphere, with emphasis on the necessary specialization of the ad hoc expert in civil liability suits. We highlight the existence of legal provisions for the work of a suitably qualified professional and address the factual and legal alternatives for choosing the expert’s specialty, taking into account the complexity of the different medical areas and the importance of in-depth knowledge of the subject of the expert opinion.

Keywords: expert witness, forensic report, specialization, civil responsibility, subject matter.

1. SOBRE A NECESSÁRIA ESPECIALIZAÇÃO DO PERITO

No que concerne à especialidade do perito ad hoc, aqueles que atuam no contencioso das ações de responsabilidade civil se enfrentam com entendimentos os mais diversos, plasmados em decisões tanto de 1º quanto de 2º graus sem nenhuma uniformidade: ora se decide pela necessidade de um especialista, ora que ele é desnecessário e que a lei não o prevê.

Salvo engano, a imensa maioria das decisões é no sentido da desnecessidade da especialidade, com lastro em diferentes argumentos: tanto o vetusto “o juiz é o destinatário da prova”, que confunde o juízo de primeiro grau com a própria jurisdição em seus diferentes graus, esta sim destinatária da prova (nem que falar na parte adversa) quanto o igualmente ultrapassado argumento de autoridade, de que “o perito é da confiança do juízo”, confundindo o pré-requisito (condição mínima) com a suficiência, enquanto conjunto de requisitos que permitem a nomeação de determinado perito em uma causa específica. A seguir, decisão proferida nos autos do processo 0301050-69.2019.8.24.0004 da Comarca de Araranguá/SC na qual, valendo-se deste argumento, o juízo nomeou médico especialista em psiquiatria para realização de perícia em processo cujo objeto está relacionado à cirurgia plástica, o que levou à elaboração de laudo que não atende aos requisitos do art. 473 do CPC:

As partes impugnaram a nomeação do perito, afirmando que o mesmo não possui aptidão para avaliar as consequências dos procedimentos realizados.

Contudo, tenho que para realização do laudo, com a resposta dos quesitos, não vejo necessidade de nomeação de perito especialista em cirurgia plástica, pois isto somente ocorreria se fosse preciso a realização de alguma análise ou exame, com equipamento que só um especialista possuísse.

Aliás, quando o CPC determina que o perito seja ‘especializado no objeto da perícia’ ele está se referindo a área como um todo (no caso, a medicina) e não a uma especialidade dentro desta área maior (ortopedia, cirurgia, pediatria, etc…).

Além disso, o perito nomeado é de extrema confiança deste juízo e, em sendo o caso de o mesmo não possuir condições técnicas de realizar a perícia, certamente comunicará nos autos para posterior substituição.

É imperioso destacar, que a autora informou nos autos (evento 113) que está residindo fora do País. Ora, é ônus da parte comparecer aos atos do processo. Portanto, é preciso ver se o perito efetivamente é capaz de realizar a sua incumbência sem contato presencial com a autora.

Assim, intime-se o perito nomeado para informar, em 15 (quinze) dias, se há possibilidade de realizar a perícia somente com os documentos acostados nos autos e com o uso de videoconferência.”

Outras decisões, na mesma linha da desnecessidade da especialidade, buscam em pareceres e resoluções do sistema CFM/CRMs o argumento de que, se a todo médico é lícito exercer qualquer especialidade, lhe é lícito também atuar como perito em qualquer questão que exija conhecimentos médicos[1]. Novamente, se confunde o pré-requisito com a suficiência, o que não é sanado pelos inúmeros pareceres exarados pelo CFM e CRMs nesse sentido, quando contrastados com a doutrina especializada[2]:

Presume-se imperito o médico ginecologista – sem habilitação em cirurgia plástica – que se aventura a realizar intervenções próprias da especialidade para a qual não se qualificou.”

Por óbvio que não se questiona a liberdade profissional constitucionalmente garantida, tampouco os requisitos legais para o exercício profissional, dentre os quais o simples registro no órgão regulador do exercício profissional[3]. Inobstante isso, reconhece a maioria da doutrina que, àquele que não detém especialização no objeto específico de questionamento cabe a imposição de um ônus probatório agravado, quando se tratar da prova de que não agiu com imperícia.

Mutatis mutandi, a mesma presunção aplicada ao médico que responde por sua atuação profissional atinge ainda maior relevo quando se tratar de perito do juízo, em especial nos casos de responsabilidade profissional: quando chamado a avaliar a conduta de outro profissional, não pode o perito possuir qualificações profissionais inferiores ou distintas daquelas requeridas para atuar – com presumida perícia – na área, procedimento ou conduta objeto da perícia.

Portanto, o posicionamento do CFM sobre o direito do médico ao amplo exercício profissional não pode se confundir com prerrogativas semelhantes no âmbito processual, sob pena de irreparáveis prejuízos, eventualmente não demonstráveis ante a redundância dos raciocínios lastreados nos argumentos acima questionados: o perito é confiável porque é da confiança do juízo, e é da confiança do juízo porque é confiável. A confiança do juízo – pré-requisito – é argumento de ordem moral que não supera o problema da qualificação do perito para atuar em uma causa específica.

Nesse sentido, afirma Knijnik[4] que,

(E) o opressivo poder de convencimento da prova pericial na formação da convicção judicial sob hipótese nenhuma pode ser negligenciado, de modo que, num esforço inclusive de autocontenção, é preciso evitar a contaminação do processo com pseudoperícias, realizadas com pseudométodos, que entregam pseudoresultados, muitas vezes justificados apenas com recurso à formulação retórica de que se cuida do perito do juízo, depositário de sua confiança e equidistante das partes.”

Ocorre que essa questão não foi ignorada pelo legislador pátrio, conforme se verifica em um simples exercício de interpretação gramatical, teleológica e sistemática das previsões contidas em diferentes diplomas legais. Senão, vejamos.

De acordo com a Lei Nº 12.842/2013, que dispõe sobre o exercício da Medicina (grifos nossos),

“Art. 4º São atividades privativas do médico:

(…)

XII – realização de perícia médica e exames médico-legais, excetuados os exames laboratoriais de análises clínicas, toxicológicas, genéticas e de biologia molecular;

(…)”

Portanto, consoante jurisprudência prévia e firme nesse sentido, a Lei Nº 12.842/2013 não fez mais que garantir aos médicos a exclusividade na realização de perícias médicas, as quais não poderão ser cometidas a outros profissionais sob nenhuma hipótese. Isso, por óbvio, inclui toda e qualquer análise sobre atos médicos ou praticados por médicos, sob pena de violação dos dispositivos do mesmo diploma legal.

Já a Lei Nº 13.105/2015, que instituiu o atual Código de Processo Civil pátrio, assim estabelece (grifos nossos):

“Art. 156. O juiz será assistido por perito quando a prova do fato depender de conhecimento técnico ou científico.

§ 1º Os peritos serão nomeados entre os profissionais legalmente habilitados e os órgãos técnicos ou científicos devidamente inscritos em cadastro mantido pelo tribunal ao qual o juiz está vinculado.

(…)”

Observe-se que o dispositivo contido no caput do artigo 156 determina a obrigatoriedade – estabelecida pela literalidade do predicado nominal “será” – da realização de perícia sempre que a prova do fato “depender de conhecimento técnico ou científico”, retirando do juízo a faculdade de decidir se haverá ou não perícia.

Exceção está prevista no art. 472, CPC, que dispõe sobre a dispensabilidade da prova pericial pelo juízo se “as partes, na inicial e na contestação, apresentarem, sobre as questões de fato, pareceres técnicos ou documentos elucidativos” considerados suficientes pelo julgador. Nesse caso, dispensa-se a prova pericial, mas não a prova técnica em si, que deverá ser produzida pelas partes de forma suficientemente esclarecedora.

Já o §1º do mesmo artigo, em franco diálogo com a Lei Nº 12.842/2013 e outros dispositivos regulamentares semelhantes, estabelece o pré-requisito da habilitação legal para o exercício da profissão que se ocupa do objeto da perícia em questão, ou do fato a ser provado.

Portanto, é da interpretação sistemática das previsões da Lei Nº 12.842/2013 em conjunto com o art. 156, CPC, que deriva a obrigatoriedade de que a perícia médica seja realizada por médico legalmente habilitado, sendo este um pré-requisito para funcionar como perito em qualquer feito que verse sobre matéria médica.

Já os termos do art. 465, CPC, são diversos e não se confundem com o que até aqui foi apontado (grifos nossos):

“Art. 465. O juiz nomeará perito especializado no objeto da perícia e fixará de imediato o prazo para a entrega do laudo.

§ 1º Incumbe às partes, dentro de 15 (quinze) dias contados da intimação do despacho de nomeação do perito:

I – arguir o impedimento ou a suspeição do perito, se for o caso;

II – indicar assistente técnico;

III – apresentar quesitos.

§ 2º Ciente da nomeação, o perito apresentará em 5 (cinco) dias:

I – proposta de honorários;

II – currículo, com comprovação de especialização;

III – contatos profissionais, em especial o endereço eletrônico, para onde serão dirigidas as intimações pessoais.”

Observe-se que o legislador já não se refere ao perito enquanto profissional legalmente habilitado, mas sim acrescentando-lhe outro requisito: o de ser “especializado no objeto da perícia”. Ainda, o disposto no art. 157, § 3º, in fine, reforça o necessário conhecimento especializado ao estabelecer que as nomeações de peritos serão realizadas de forma equitativa, “observadas a capacidade técnica e a área de conhecimento”, que não se confundem com a habilitação legal.

Por certo que, salvo se entenda que a lei contém palavras vazias e que “legalmente habilitado” é sinônimo de “especializado”, o legislador quis exigir do perito um especial estatuto, qual seja, o de deter conhecimentos específicos, aprofundados e especiais sobre o fato ou circunstância que se pretende demonstrar através da prova pericial, e que caracteriza o objeto da perícia, do qual trataremos brevemente mais adiante.

Cumpre referir ainda que o Código de Processo Civil de 1973 previa em seu art. 145, § 3º que “nas localidades onde não houver profissionais qualificados que preencham os requisitos dos parágrafos anteriores, a indicação dos peritos será de livre escolha do juiz”, não havendo no atual diploma processual dispositivo equivalente. Assim, ao retirar do juiz a possibilidade de livre escolha do expert, o legislador reforçou a sua opção por um profissional especializado no objeto da perícia, mesmo em localidades com menor número de profissionais.

Por óbvio que, sendo especialista no objeto da perícia, o perito se equivalerá em qualificações e conhecimentos àquele cuja conduta estará avaliando, não sendo admissível que o faça desde uma perspectiva de inferioridade de conhecimentos, sejam eles decorrentes de formação acadêmica (especializações senso lato, senso estrito ou titulações) ou de comprovada experiência profissional.

E, para arrematar esse entendimento, o legislador exigiu que o perito nomeado apresentasse, no prazo de cinco dias da ciência de sua nomeação a devida “comprovação de especialização”.

Em um exercício contrafactual, se o perito nomeado já deve ser alguém legalmente habilitado (inteligência do art. 156), ou seja, no caso concreto já deve ser um médico, por que o legislador lhe exigiu que comprovasse a especialização se, ao mencioná-la no caput do art. 465 estivesse a tratar do mesmo requisito: simplesmente ser médico?

Por certo que salta aos olhos a incongruência das interpretações que equivalem a simples habilitação legal (art. 156) com a especialização do perito (art. 465), esvaziando o propósito do legislador quando da inclusão de tais previsões no Código de Processo Civil em lugares diferentes, e com uso de expressões de sentidos nitidamente diversos.

Nem que falar na possibilidade de uma interpretação que remeta ao espírito do atual CPC, cujos dispositivos relativos aos peritos e ao laudo pericial foram claramente inspirados nos critérios Daubert[5], oriundos da jurisprudência penal dos EUA e incorporados ao art. 473 do CPC/2015, onde se menciona explicitamente os “conhecimentos especializados… do perito” (primeiro critério para admissão da prova pericial). O aprofundamento desse aspecto foge aos propósitos desta análise e pode ser feito a partir das obras citadas.

Nesse sentido, os precedentes do e. TJMG e do e. TJSP:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO – NOMEAÇÃO DE PERITO – PERÍCIA MÉDICA – ESPECIALIDADE EM CIRURGIA PLÁSTICA – INOBSERVÂNCIA – SUBSTITUIÇÃO DO PERITO – POSSIBILIDADE. Proposta ação indenizatória diante de alegado erro médico em procedimento de cirurgia plástica, necessária a realização de prova pericial requerida pelas partes. Tendo sido nomeado perito médico, especialista na área ginecológica e medicina do trabalho, não lhe sendo conferido conhecimento técnico acerca da especialidade em cirurgia plástica, mostra-se necessária a sua substituição por perito especializado em cirurgia plástica. (TJ-MG – AI: 10000140567629002 MG, Relator: Mônica Libânio, Data de Julgamento: 08/09/2016, Câmaras Cíveis / 15ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 14/09/2016)”

“Agravo de instrumento – Seguro saúde – Obrigação de fazer – Prova pericial – Alegação de que o perito não tem especialidade na área de neurocirurgia, como o caso requer – Perito especialista em pediatria – Substituição autorizada, dada a falta de conhecimento técnico ou científico – Aplicação do inciso I do artigo 568 do Código de Processo Civil – Decisão reformada – Recurso provido.
(TJSP;  Agravo de Instrumento 2241274-23.2023.8.26.0000; Relator (a): Enio Zuliani; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 27/10/2023; Data de Registro: 27/10/2023)”

2. SOBRE A ESCOLHA DA ESPECIALIDADE

Resolvida a questão da necessária especialização do perito no CPC/2015, o problema se volta para o critério de escolha da especialidade.

Antes, importa recordar que o CPC oferece às partes a possibilidade não apenas do chamamento do feito à ordem (inciso IX, art. 139, CPC) em face de nomeação de perito de forma contrária à previsão legal, mas também de escolher perito de comum acordo (art. 471, CPC). Ora, se as partes podem escolher o perito de comum acordo, com base no mesmo princípio “a maiori, ad minus” admite-se que possam transigir quanto à especialização do perito nomeado pelo juízo, se entenderem prudente.

No que concerne especificamente à especialidade do perito médico, a questão é um tanto mais complexa do que o usual. A uma porque a Resolução CFM Nº 2.330/2023[6] de 03/03/2023, que atualiza a relação de especialidades e áreas de atuação médicas reconhece a existência de nada menos que 55 especialidades e 61 áreas de atuação (a chamada “subespecialidade” ou especialidade dentro da especialidade); e, a duas porque um mesmo evento adverso em saúde trazido à apreciação do judiciário pode abarcar mais de uma especialidade e extrapolar a própria atuação médica, abrangendo serviços hospitalares (p.ex. hotelaria, serviços administrativos e de segurança, higienização), diferentes profissões da área da saúde (p.ex. enfermagem, farmácia, fisioterapia) e até mesmo insumos (p.ex. próteses, órteses, equipamentos, medicamentos).

Além disso, dentre as 55 especialidades, há uma que se dedica especificamente a atender as demandas da justiça, a Medicina Legal e Perícia Médica. Assim mesmo, à exceção daqueles que cursaram os raros programas de Residência Médica existentes no país, os critérios de titulação dessa especialidade pela entidade autorizada[7] são organizados por áreas tradicionais de atuação dos profissionais, que não estão expressamente previstas pelo CFM e não constam do rol da Resolução CFM Nº 2.330/2023: previdenciária, trabalhista, civil e penal (nesta, a Medicina Legal propriamente dita).

Para não aumentar o imbróglio, não há que se confundir o especialista de que nos fala o CPC com o Perito Médico-Legista assim intitulado por ocupar o cargo de Perito Oficial nos termos da Lei Nº 12.030/2009. Este é assim intitulado por ter sido aprovado em concurso público para o cargo, que tem como único pré-requisito a habilitação legal para o exercício da medicina, não podendo apresentar-se como especialista fora do âmbito administrativo – órgão pericial oficial – ao qual pertence, nos termos da Resolução CFM Nº 2.336/2023[8].

Em qualquer caso, devemos nos recordar do papel específico do especialista em Medicina Legal e Perícia Médica (ML&PM) na lição de Genival Veloso de França[9],

“Daí não bastar, como diz Hélio Gomes, um médico ser simplesmente médico para que se julgue apto a realizar perícias, como não basta a um médico ser simplesmente médico para que faça intervenções cirúrgicas. Por isso, lhe são indispensáveis educação médico-legal, conhecimento da legislação, prática de redação de documentos e familiaridade processual.”

Por tudo isso, haveria duas possibilidades: a da nomeação de um perito especializado em Medicina Legal e Perícias Médicas ou a da nomeação de perito da mesma especialidade do procedimento ou ato médico sub judice, garantindo um mínimo de isonomia entre os conhecimentos de quem analisa e de quem tem sua conduta analisada, o que se refletirá sobre a própria validade epistêmica da prova pericial.

Ocorre que, como já demonstrado, nenhuma dessas opções é isenta de limitações próprias. A especialidade em ML&PM não garante, por si só, que o perito tenha conhecimentos suficientes para dar conta do problema colocado, posto que pode vir de área de atuação completamente alheia aos fatos em questão (p.ex. um especialista que atua exclusivamente na área trabalhista, chamado a avaliar um caso envolvendo ato cirúrgico). E nem perito com a mesma especialidade do profissional que praticou o ato questionado é garantia de que conheça, minimamente, os pressupostos e procedimentos analíticos para encontrar adequada solução para problemas pretéritos que pode, ele mesmo, não compreender.

Assim, à primeira vista, pareceria que a opção mais adequada ao atendimento da previsão processual seria a de um “duplo especialista”, que reunisse conhecimentos processuais com conhecimentos específicos da área, fato ou procedimento objeto da demanda. Um especialista, por exemplo, em ML&PM e em Cirurgia Plástica para dar conta de periciar um caso envolvendo uma mastopexia com prótese mamária.

Ocorre que, em que pese num plano ideal as limitações logísticas (de disponibilidade de peritos com dupla especialização para atender todas as varas do país) não devessem servir de constrangimento à melhor interpretação da norma processual, especialmente se isso implicar em prejuízo real ou potencial para qualquer das partes, a realidade requer moderação.

De fato, as máximas da experiência comum demonstram que, como regra, os especialistas em ML&PM com experiência prévia e comprovada na área em questão se saem melhor no atendimento às demandas processuais do que os especialistas sem formação no campo pericial, apesar de seu conhecimento mais aprofundando do tema específico. Portanto, na falta do “duplo especialista”, a nomeação deveria recair preferencialmente sobre os titulados em ML&PM que, além de apresentar currículo com a comprovação da especialização, podem demonstrar sua formação na área específica objeto da demanda (p.ex. trabalhista, previdenciária, cível ou trabalhista).

Como segunda e derradeira opção, a nomeação recairia sobre um profissional que, não sendo especialista em Medicina Legal e Perícia Médica, o seja na mesma especialidade do profissional demandado na ação, ou dentro da qual recaia o fato ou procedimento controvertido. Como já visto, nomear médicos sem qualquer especialização não é uma opção acorde à lei processual.

Esta segunda alternativa, por sua vez, oferece alguns problemas próprios: por um lado, há importante sobreposição entre as diferentes especialidades médicas e diversos atos e procedimentos podem ser abarcados por mais de uma especialidade; por outro, alguns casos podem ter caráter transversal e abarcar mais de uma especialidade médica. São exemplos do primeiro diversos atos cirúrgicos que podem, por exemplo, ser da alçada da Ginecologia ou da Cirurgia Geral, da Traumatologia ou da Neurocirurgia, da Dermatologia ou da Cirurgia Plástica; e exemplos do segundo os atendimentos em Emergência ou UTI, as complicações do nascimento ou mesmo aquelas que extrapolem o próprio ato original, como uma lesão vascular ou neurológica durante um procedimento ortopédico, a requerer a intervenção de outras especialidades tanto no manejo da intercorrência quanto no seguimento posterior do paciente.

Amiúde, enquanto o evento adverso pode ter ocorrido dentro do âmbito de uma especialidade, os danos e sequelas podem ser parte da atuação de outra especialidade, como no exemplo do dano vascular ou neurológico durante uma cirurgia ortopédica: o ato questionado se dá em uma especialidade, enquanto as sequelas são avaliadas por instrumentos de outra.

Portanto, a par do especialista em ML&PM, estabelecer a especialidade do perito certamente não é tarefa fácil para o julgador. Em qualquer caso, essa escolha depende essencialmente do claro estabelecimento do objeto da perícia, que deverá ser explicitado no laudo pericial nos termos do inciso I, art. 473, CPC, posto que vinculante da atividade do perito.

Ressalve-se que a prerrogativa do juízo de nomear mais de um perito para os casos de “perícia complexa” (art. 475, CPC) não resolve os problemas acima apresentados: mesmo para que se decida pela necessidade de mais de um perito, definir as especialidades necessárias continua exigindo adequada ponderação.

3. SOBRE O OBJETO DA PERÍCIA

De acordo com o art. 473, CPC (grifos nossos):

“Art. 473. O laudo pericial deverá conter:

I – a exposição do objeto da perícia;

II – a análise técnica ou científica realizada pelo perito;

III – a indicação do método utilizado, esclarecendo-o e demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da área do conhecimento da qual se originou;

IV – resposta conclusiva a todos os quesitos apresentados pelo juiz, pelas partes e pelo órgão do Ministério Público.

(…)”

Vez que não é nosso objetivo analisar o inteiro teor das previsões desse que é um dos mais importantes artigos do CPC no que concerne à atividade pericial, nos ateremos àquela que, em nosso entendimento, determina sobre qual especialidade recairá a nomeação do perito: a exposição do objeto da perícia, prevista no inciso I.

Em termos jurídicos, objeto designa “aquilo sobre que incide um direito, uma obrigação, uma regra de conduta, um contrato, uma demanda em juízo etc.[10]. Em termos processuais, objeto da ação equivale a pedido, o segundo elemento da ação[11]:

“Os elementos da ação são os seguintes: (i) partes (o autor, que pede a tutela jurisdicional, e o réu, em face de quem tal tutela é pedida); (ii) pedido (que corresponde ao bem da vida pretendido pelo autor, geralmente denominado de pedido mediato, e à providência jurisdicional apta a outorga-lo, usualmente chamado de pedido imediato); e (iii) causa de pedir (que corresponde às razões de fato e de direito que embasam o pedido, usualmente denominadas, respectivamente, de causa de pedir remota e causa de pedir próxima).”

O objeto da perícia, portanto, não é determinado pelo perito e não se confunde com a própria fonte de prova[12], que pode ser tanto o periciado quanto os registros assistenciais e, mais frequentemente, ambos.

O objeto da perícia, enquanto aquilo que se espera que o perito esclareça (o pedido a ele dirigido) deriva do próprio objeto da ação, ou seja, do pedido da parte autora e da resistência que lhe oferece a parte ré, ambos desaguando em: (a) os quesitos das partes (inciso III, §1º, art. 465, CPC), que refletem as teses que pretendem ver exploradas e devidamente esclarecidas pela perícia, bem como os do juízo (inciso II, art. 470, CPC); e (b) as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória (pontos controvertidos) e que somente poderão ser esclarecidas pela prova pericial (inciso II, art. 357, CPC).

Os quesitos, como se depreende do inciso IV do mesmo art. 473, CPC, acima mencionado, são vinculantes da atividade pericial: deverão ser todos respondidos, independentemente de quem os tenha formulado. Evidentemente, se os quesitos devem ser todos respondidos, o que deles constar será parte inalienável do objeto da perícia, construído pela contribuição das partes e até mesmo do próprio juízo, quando este apresentar quesitos.

Nessas condições, não cabe ao perito decidir quais quesitos irá ou não responder, até porque não necessariamente conhece as teses que as partes irão consolidar após a vinda do laudo pericial aos autos. E, ainda que as conhecesse e delas discordasse, não lhe compete sobre elas opinar, salvo quando expressamente provocado nesse sentido, sob pena de ultrapassar os limites de sua designação (§2º, art. 473, CPC).

Em nosso entendimento, a previsão de indeferimento de quesitos impertinentes pelo juízo (inciso I, art. 470) deve ser utilizada com parcimônia e apenas em casos em que os quesitos sejam alheio

s ao próprio objeto da perícia, sob pena de cerceamento de defesa. Não é demais recordar que a necessidade da perícia decorre justamente da falta de conhecimentos técnicos ou científicos pelo juízo, não raro faltando-lhe elementos para reconhecer a eventual (im)pertinência de teses cujos fundamentos ignora e que as partes não estão obrigadas a revelar antes da vinda do laudo pericial.

A definição das questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória (pontos controvertidos), por sua vez, tem expressa previsão processual (grifos nossos):

“Art. 357. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo:

I – resolver as questões processuais pendentes, se houver;

II – delimitar as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos;

III – definir a distribuição do ônus da prova, observado o art. 373 ;

IV – delimitar as questões de direito relevantes para a decisão do mérito;

V – designar, se necessário, audiência de instrução e julgamento.

(…)”

Além da quesitação das partes e do próprio juízo, este é ponto fundamental sobre o qual se assenta a atividade pericial, posto que delimitador daquilo que deverá ser esclarecido pelo perito, ou seja, o objeto da perícia.

Na ausência de pontos controvertidos, o perito não terá objeto definido de trabalho – exceto os quesitos, quando existentes – podendo “navegar” sobre as fontes de prova como bem lhe aprouver, apontando ou deixando de apontar o que achar pertinente, por vezes ignorando controvérsias relevantes, o que resulta em laudos periciais potencialmente insuficientes, incompletos e inconclusivos. Desnecessário ressaltar o custo disso para as partes e para o próprio aparelho judicial, com idas e vindas de laudos periciais que pouco ou nada esclarecem.

Não é incomum que, na ausência de adequada delimitação do objeto da perícia, se veja peritos tratando de questões alheias aos pedidos da parte autora, como documentos financeiros, normas sanitárias ou mesmo consentimentos. Nem que falar quando a perícia se aventura a valorar sequelas que a parte sequer mencionou nos autos, que não fazem parte da causa de pedir e que não compõem os pedidos, incorrendo a perícia no risco de criar obrigações novas, quiçá demandas extra petita.

Portanto, o adequado saneamento do processo, nos termos do art. 357, CPC, é fundamental para que se delimite o objeto da perícia, a partir do qual se poderá decidir qual ou quais as especialidades médicas a ele afeitas e, consequentemente, qual a especialidade do perito a ser nomeado.

4. SOBRE A ESPECIALIDADE DO PERITO

Como se viu, o legislador não previu a nomeação de um perito qualquer, alguém meramente habilitado a exercer legalmente a profissão sob a qual recai o objeto a ser periciado[13]. De fato, o CPC prevê a nomeação de um especialista na matéria a ser esclarecida no curso da instrução processual, no âmbito da produção da prova pericial.

Compreendido o imbróglio referente à questão da especialização, resta evidente que a escolha da especialidade depende do prévio estabelecimento dos fatos e questões controvertidas que serão levados à apreciação pericial.

Nos termos do art. 465, CPC, o perito deverá decidir se aceita o encargo (§2º, prazo de 5 dias da intimação) antes de conhecer os quesitos das partes (§1º, prazo de 15 dias da nomeação). Isso resolve o problema da arguição de impedimento ou suspeição do perito (também prazo de 15 dias, conforme inciso I, §1º) e permite que se requeiram os necessários ajustes à decisão interlocutória no que concerne à especialização do perito, chamando o feito à ordem se for o caso.

Mas impede que o perito exerça a autocontenção com plenitude, vez que aquilo que será levado à apreciação pericial repousa sobre dois pilares ou atos processuais que ocorrem em momentos distintos: o saneamento (art. 357, CPC) e a apresentação de quesitos pelas partes (inciso III, §1º, art. 465, CPC). Entre eles ocorre a nomeação do perito especializado (caput, art. 465, CPC).

Nessas condições, irremediavelmente a questão deverá ser resolvida pelo juízo, à luz dos mandamentos processuais quanto à necessária especialização do perito, escolhendo-a com base naquilo que estabeleceu enquanto objeto da perícia (ainda que parcial) na decisão saneadora que antecedeu a nomeação do perito, ainda que tudo isso conste do mesmo ato. A colaboração das partes é essencial nesse sentido, atendendo a um dos princípios reitores do novo Código de Processo Civil, devendo pedir os necessários esclarecimentos e ajustes no prazo que lhes assigna o diploma processual (§1º, art. 357, CPC), sob pena de preclusão.

Ainda, de observar que a substituição do perito por falta de conhecimento técnico ou científico (inciso I, art. 468) não se confunde com sua especialização, resolvida em outros lugares do diploma processual. Por óbvio que somente pode ser substituído aquele que foi nomeado em conformidade com os ditames processuais, o que, em tendo ocorrido, fará presumir que o perito detém os necessários conhecimentos para se desincumbir da tarefa que lhe foi cometida.

Deriva disso que a falta de conhecimento técnico ou científico do perito não pode ser aferida antes, mas somente depois da entrega do laudo pericial. Eventualmente, até mesmo depois das manifestações e pedidos de esclarecimentos pelas partes (art. 477, CPC), inexoravelmente desaguando na realização de nova perícia, nos termos do art. 480, CPC.

Finalmente, inexiste previsão processual para a figura do “assistente de perito”, um terceiro chamado pelo próprio perito para sanar sua falta de conhecimento técnico ou científico. Pelo contrário, o surgimento dessa figura em diversos laudos periciais, admitidos como válidos em verdadeiro exercício de teratologia jurídica, atenta contra a credibilidade, a validade epistêmica e a própria licitude da prova pericial: é componente essencial da credibilidade da perícia que o perito reconheça quando não detém os conhecimentos necessários ao deslinde da tarefa e recuse o encargo, sob pena de converter uma atividade essencial à administração da justiça em verdadeiro comércio.

Nesse sentido, há que se ter cautela – e verdadeira autocontenção – ante os verdadeiros poderes instrutórios contidos no §3º do art. 473 do CPC[14], posto que eles devem ser exercidos em conformidade com as demais regras processuais. Nomeadamente, não pode o perito realizar diligência sem comunicá-la com antecedência nos autos, permitindo a presença do assistente técnico, conforme prevê o §2º do art. 466[15]. Da mesma forma, não pode confundir o pedido de consultoria a um especialista (p.ex. um oftalmologista, chamado a emitir relatório de exame especializado) que deve se revestir de formalidades fiscalizáveis pelas partes, com a indicação de um “assistente de perito”, pois este último implicaria em usurpação de prerrogativa exclusiva do magistrado e de direito das partes, podendo incorrer em verdadeira nulidade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma interpretação sistemática do diploma processual cível deixa claro que o legislador espera que o perito seja mais do que legalmente habilitado para o exercício da profissão, exigindo-lhe que seja especialista no objeto da perícia, inclusive com comprovação dessa especialidade.

Em que pese a escolha da especialidade do perito seja tormentosa, principalmente considerando as carências enfrentadas pelas varas do interior do país, cabe ao magistrado da causa escolher a(s) especialidade(s) necessária(s) à melhor solução dos pontos controvertidos de fato, por ele mesmo estabelecidos em sede de saneamento. Dentre as 55 especialidades médicas, há uma que se dedica especificamente a atender as demandas da justiça, a Medicina Legal e Perícia Médica. Além de ser especialidade dedicada às perícias, a nomeação de perito com tal titulação se mostra vantajosa e deveria preceder a escolha de qualquer outra principalmente em face de perícias complexas, com potencial de exigir a intervenção de diferentes especialidades médicas.


Referências bibliográficas

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